Entusiasmo por ir mas uma espécie de angústia pelo que se abandona. Não voltaremos iguais e muito menos encontraremos as coisas tal como as deixámos. No fundo, sabemos que viajar é uma mão aberta que possibilita acolher e abdicar.
A longitude que atravessa o mapa traz a expectativa do trailer do Lost in Translation: “Às vezes é preciso ir ao outro lado do mundo para pores fim a um ciclo”, mas acima de tudo um genuíno interesse pela cultura, pela gastronomia, pela beleza, pela geometria espacial dos gestos delicados, cheios de força.
Não me esqueço das primeiras sensações que tive em Tóquio enquanto caminhávamos a pé, à noite, para o hotel: escutar o silêncio! E percepcionei de imediato ordem, respeito, limpeza, segurança. Mesmo após quase 24 horas em viagem, senti em poucos minutos que os ombros ficaram menos tensos, mais relaxados e o coração com mais espaço para vibrar e se movimentar. Senti, nesse momento “o click” do interesse e da receptividade a ligaram-se entre si.
Iniciar a viagem em Tóquio traz a certeza de que o melhor está para vir e por isso uma maior descontracção para as coisas mais weird que nos fazem franzir a testa. Damos por nós a tentar equilibrar-nos entre o freak e o zen. A mediar, cordões humanos de japoneses alinhados que deslizam por espaços demarcados, que tentam camuflar-se e diluir-se na multidão, por trás dos seus smartphone ou da famosa BD japonesa “manga” ou de livros (sempre forrados a papel para que não se descubra que histórias se vivenciam) vestidos com roupas sóbrias, de cores escuras ou neutras, de cortes de cabelo moldados de linhas rectas, por vezes a carregarem chapéus de chuva transparentes e iguais, com ar apreensivo, cansado e mesmo esgotado, ao ponto de adormecerem em pé no comboio, sem causar admiração nos locais.
Os japoneses são o povo com a maior gentileza que conheço. Em que lugar do mundo temos um revisor do comboio a fazer uma vénia aos passageiros sempre que assomam junto de cada carruagem? Ou que, não sabendo falar inglês, abdicam do seu percurso para nos acompanhar aonde queremos chegar?
Há poucos japoneses a falar inglês, parece-me que por resistência e uma aparente teimosia. Na sua generosidade, os japoneses olham com desagrado para a massificação, para os turistas que não respeitam as regras, que ferem o silêncio. Por isso, acredito que o facto de muitas vezes não existir tradução dos caracteres japoneses é uma forma de protecção e resguardo, um filtro, uma forma de mediar e refrear a intensidade dos fluxos, um véu para manterem o mais intacto possível o seu legado ancestral.
Na sua génese, são movidos pelo rigor, pela honra. Mais do que que pela palavra, pelo gesto de honra. E há uma preocupação latente com o outro que é desconhecido, uma preocupação de passar sem deixar lastro, sem perturbar ou incomodar e deixar tudo imaculadamente limpo e arrumado tal como se encontrou. Nos transportes, é considerado rude alguém falar ou rir alto e por isso os telemóveis são usados no modo silencioso e muito raramente para executar chamadas. Contudo, algumas destas características podem ficar temporariamente desactivadas se os japoneses se abandonarem a si próprios nas famosas salas de jogo “psicadélicas” Pachinko.
Na ligação com o outro os japoneses são adeptos do contactless. Os cumprimentos são substituídos por vénias, as transações comerciais são servidas por uma bandeja e, em determinados momentos, chegamos mesmo a imaginar que temos superpoderes na palma da mão para accionar mecanismos para fazerem as coisas acontecerem.
No encantamento da vivência japonesa, encontramos efectivamente “poços de ar” que não entendemos e até antíteses e contra-sensos. Há coisas mais simples, como o facto de, mesmo sendo um país tecnológico, dominado pela comunicação digital, manterem concierges à porta das lojas ou até a percorrerem ruas circundantes, a segurarem cartazes e a apregoarem promoções. Estes elementos existem até em Shibuya, o “Picaddily Circus” em larga escala de Tóquio.
Outro tema que causou alguma estranheza foi o uso da tempura. Em alguns pratos é mergulhada num caldo fervente, abdicando de toda a crocância — não foi para isso que os portugueses levaram a tempura para o Japão. Sendo adeptos da discrição, é obrigatório sorver o famoso ramén com barullho, como sinal de satisfação e apreço.
A visita ao Japão é recomendada na Primavera, na altura da sakura (cerejeiras em flor), ou no Outono, pela paleta de cores que se encontram nos bosques e vegetação circundante. É necessário tempo, pois não se pode apreciar jardins zen ao jeito de um rally-paper.
A beleza do Japão, e sobretudo de Quioto, é colossal e chega a ser constrangedora. Acredito que no interior, e a Norte, possa ser ainda mais. É inevitável pensar como integrarmos esta beleza tão vívida e que efeito terá nas nossas vidas.
Tenho uma vontade genuína de conhecer o Japão, terei de voltar, acredito que este país é um “mil-folhas” por descobrir.