Fugas - dicas dos leitores

Cláudia Fernandes

Last call to Japan

Por Cláudia Fernandes

Antes de viajar para o Japão já sabia que seria inevitável regressar. Soube-o com a mesma verdade que se revela no sentimento que se instala antes de cada viagem.

Entusiasmo por ir mas uma espécie de angústia pelo que se abandona. Não voltaremos iguais e muito menos encontraremos as coisas tal como as deixámos. No fundo, sabemos que viajar é uma mão aberta que possibilita acolher e abdicar.

A longitude que atravessa o mapa traz a expectativa do trailer do Lost in Translation: “Às vezes é preciso ir ao outro lado do mundo para pores fim a um ciclo”, mas acima de tudo um genuíno interesse pela cultura, pela gastronomia, pela beleza, pela geometria espacial dos gestos delicados, cheios de força.

Não me esqueço das primeiras sensações que tive em Tóquio enquanto caminhávamos a pé, à noite, para o hotel: escutar o silêncio! E percepcionei de imediato ordem, respeito, limpeza, segurança. Mesmo após quase 24 horas em viagem, senti em poucos minutos que os ombros ficaram menos tensos, mais relaxados e o coração com mais espaço para vibrar e se movimentar. Senti, nesse momento “o click” do interesse e da receptividade a ligaram-se entre si.

Iniciar a viagem em Tóquio traz a certeza de que o melhor está para vir e por isso uma maior descontracção para as coisas mais weird que nos fazem franzir a testa. Damos por nós a tentar equilibrar-nos entre o freak e o zen. A mediar, cordões humanos de japoneses alinhados que deslizam por espaços demarcados, que tentam camuflar-se e diluir-se na multidão, por trás dos seus smartphone ou da famosa BD japonesa “manga” ou de livros (sempre forrados a papel para que não se descubra que histórias se vivenciam) vestidos com roupas sóbrias, de cores escuras ou neutras, de cortes de cabelo moldados de linhas rectas, por vezes  a carregarem chapéus de chuva transparentes e iguais, com ar apreensivo, cansado e mesmo esgotado, ao ponto de adormecerem em pé no comboio, sem causar admiração nos locais.

Os japoneses são o povo com a maior gentileza que conheço. Em que lugar do mundo temos um revisor do comboio a fazer uma vénia aos passageiros sempre que assomam junto de cada carruagem? Ou que, não sabendo falar inglês, abdicam do seu percurso para nos acompanhar aonde queremos chegar?

Há poucos japoneses a falar inglês, parece-me que por resistência e uma aparente teimosia. Na sua generosidade, os japoneses olham com desagrado para a massificação, para os turistas que não respeitam as regras, que ferem o silêncio. Por isso, acredito que o facto de muitas vezes não existir tradução dos caracteres japoneses é uma forma de protecção e resguardo, um filtro, uma forma de mediar e refrear a intensidade dos fluxos, um véu para manterem o mais intacto possível o seu legado ancestral.

Na sua génese, são movidos pelo rigor, pela honra. Mais do que que pela palavra, pelo gesto de honra. E há uma preocupação latente com o outro que é desconhecido, uma preocupação de passar sem deixar lastro, sem perturbar ou incomodar e deixar tudo imaculadamente limpo e arrumado tal como se encontrou. Nos transportes, é considerado rude alguém falar ou rir alto e por isso os telemóveis são usados no modo silencioso e muito raramente para executar chamadas. Contudo, algumas destas características podem ficar temporariamente desactivadas se os japoneses se abandonarem a si próprios nas famosas salas de jogo “psicadélicas” Pachinko. 

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