Fugas - dicas dos leitores

“Aquilo é o Faial?” — e o mapa da escola ganha vida à nossa frente

Por Pedro Cotrim

Pousamos na Dorsal Média do Atlântico, aterrando no Pico vindos de São Miguel. Há uma montanha à nossa frente que, paradoxalmente, não é o Pico, escondido pelas nuvens e pela orografia da ilha. A montanha é o Faial, uma mancha verde imensa que mergulha no céu a partir da água.

São Jorge já nos havia deslumbrado do alto enquanto a sobrevoámos no pequeno avião a hélice que nos trouxera de Ponta Delgada. Por isso, na pista do aeroporto, a ilha novidade convoca-nos o olhar e segura-nos a atenção de modo quase tirânico.

Murmuramos “Aquilo é o Faial?” enquanto sentimos que o mapa visto vezes sem conta desde a escola primária está a ser trazido à vida mesmo à nossa frente.

Fica-se a olhar para aquele Faial do outro mundo, com cores que nenhuma paleta ou máquina sofisticada pode reproduzir. Como é que a litosfera produziu aquelas ilhas no meio da tormenta oceânica, como é que gerou irmãs tão próximas e que milagre é este de fazer brotar um jovem arquipélago a mil milhas da Terra Mãe?

Siderados, fomos buscar o carro que tínhamos alugado há um par de dias a partir do sólido continente. Pisamos chão com 200 mil anos e mesmo olhos leigos o notam. Se a Europa fosse um homem de meia-idade, o Pico teria nascido na véspera. É um bebé bruto, escuro, misterioso e de volume aumentado. Os diálogos breves que entabulamos não devem diferir muito dos dos astronautas na Lua.

Viajamos até S. Roque do Pico pela estrada que bordeja a costa norte da ilha. São Jorge toma o horizonte e torna-se quase difícil conduzir na nossa ilha sem tirar os olhos da outra. À distância, que é de uma dezena de milhas, parece um dorso, uma coluna vertebral saliente. Por vezes assemelha-se ao monstro de Loch Ness, mudando continuamente de feição à medida que avançamos pela estrada da ilha que pisamos.

Deste lado a paisagem devora os poucos casarios que se encontram pelo caminho, não se podendo dizer que atravessamos vilas ou aldeias. São lugares, talvez a forma mais adequada de viver numa ilha pouco povoada e que ganha altitude com rapidez alpina.

À medida que escurece e o crepúsculo náutico toma o lugar do civil, São Jorge engrinalda-se. As constelações, fulgurantes naquele céu sem destroços de luz terrena, parecem cair sobre a ilha, metamorfoseando-se em vilas, aldeias, caminhos e recantos. Um encanto, um feitiço. Ali, a umas quantas braças de mar, está outro mundo, um mundo que apetece pisar, cheirar e provar.

Jantamos rapidamente num restaurante com uma vista que não cabe em papel e metemo-nos no carro dispostos a subir um pouco a montanha. O termómetro parece tomado da precisão de um altímetro e a cadência da descida da temperatura é impressionante.

O céu está nublado, mas ainda se vêem algumas estrelas e trechos de Via Láctea numa tonalidade indescritível. Orion parece à distância de um pulo mais vigoroso e Júpiter uma lanterna apontada para nós. As nuvens adensam-se e tomam o céu, parecendo sugerir-nos que nos recolhamos e que guardemos a subida para o dia seguinte.

Todos os dias há um novo dia a estrear, e a madrugada e a promessa da descoberta acordam-nos e empurram-nos com veemência para a rua. Repetimos a estrada de ontem, mas desta vez com a luz bendita da manhã.

Todas as tonalidades de verde, ouro e azul se passeiam por nós na subida. A estrada é estreita e preta e o piso irrepreensível. O tracejado branco do centro parece igual aos dos brinquedos. Somos os únicos passeantes e não se vê mais carro nenhum.

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