Fugas - hotéis

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O dia em que o Jardim da Estrela foi um hotel

Por Fábio Monteiro

No sábado, o Jardim da Estrela alfacinha transformou-se num hotel ao ar livre, graças a uma campanha de marketing da Ikea. Havia por ali mais de duas dezenas de camas destinadas a muitos sonhos. E nós aproveitámos a ideia para dormir uma noite no jardim.

Cheguei ao Jardim da Estrela às 21h30 e a noite já tinha fechado as persianas ao dia. Estava a iniciar-se, no coreto, o concerto da Amanda Mair - uma jovem cantora sueca -, que tinha como responsabilidade dar ritmo e banda sonora à abertura - e encerramento - da única noite do "hotel" Ikea.  

Os efeitos da iluminação espalhada pelo parque criavam uma atmosfera nostálgica. Os jogos de sombras recortavam as folhas das árvores dando uma certa magia ao espaço. Afinal, não é todos os dias que um dos jardins mais emblemáticos de Lisboa se transforma num hotel tão exclusivo.

Os 4,6 hectares do Jardim da Estrela, em outros fim-de-semanas, são um recanto pacífico onde famílias passeiam, repousam, vão tomar café ou aproveitam para praticar desporto. No entanto, desta feita, o espaço alfacinha mostrava uma nova imagem. A Ikea utilizava o espaço para uma grande campanha de marketing e os têxteis da marca criavam uma nova dimensão no jardim, vestindo-o a rigor para uma noite tão "única".

Um hotel "ao relento", que abriu no sábado e fechou no domingo, só com 26 "quartos" disponíveis e em que o dinheiro nada podia fazer para conseguir uma estadia. Só a sorte mesmo.  

Fui o último hóspede a fazer check-in e, por coincidência do destino, foi-me atribuída a cama número um. Os restantes hóspedes, que ganharam a estadia - no passatempo do Facebook -, eram na sua maioria famílias que estavam a aproveitar o "prémio da sorte" para "tempo de qualidade" - pouco dispostos à entrada de um intruso no "quarto", o que é totalmente legítimo.

Encaminharam-me para uma secção do parque exclusiva para os "hóspedes", onde casais de todas as idades, com filhos ou não, e alguns até com o cão, desfrutavam da noite. A zona era um relvado preenchido com mantas, puffs e almofadas onde a palavra de ordem era cumplicidade. Apesar de ser muito difícil penetrar o ambiente familiar, as expressões faciais davam a resposta.

Os vários casais, sem filhos, trocavam olhares cúmplices ou falavam sussurrando - em jeito de namoro -, ignorando tudo que se passava à volta, como por exemplo, as 300 pessoas que tinham vindo assistir ao concerto ou estavam só de passagem no parque. Debaixo das mantas, aconchegados em "conchinha", desfrutavam do concerto.

Já as crianças, estavam encantadas com uma magia diferente. Apesar de o céu estar nublado, continuavam à procura do tecto de estrelas prometido pela organização. Contudo, só era possível observar parte das constelações de Cassiopeia e Cisne, e, claro, a estrela polar. Muitos moradores locais também vieram usufruir da atracção sem custo no jardim, onde tradicionalmente fazem as suas passeatas.

Depois do concerto, todos os hóspedes dispersaram pelo parque. Uns para os seus "aposentos", outros para passear e espreitar os cantos ao hotel. Tinha sido prometida uma "pequena ceia" às 24h para os hóspedes, quando o hotel já tivesse "expulsado" as visitas sem quarto reservado.

Como bom hóspede não fugi à regra e fui cirandar pelo jardim alfacinha e foi nesse momento que encontrei algumas das imagens mais interessantes da noite.

A Ikea afirma muita vezes que é uma empresa familiar e para famílias, mas mesmo assim não estava a espera desta imagem: Patrick Anthony, director de marketing da IKEA Portugal, sueco de gema, olhos azuis e cabelo loiro, a fazer a cama de um dos hóspedes.

Sim, a fazer uma cama. Pôr a fronha, esticar os lençóis, meter as pontas destes debaixo da cama, colocar por fim o edredão e as almofadas. A teoria estava a aplicar-se na prática.  

Porém, mesmo com o empenho da organização, a iniciativa não pareceu ter captado a credibilidade de todos. Um dos seguranças do evento, dava voz à sua opinião, explicando a um casal que nem tudo era bom nesta noite.

"Isto não é para a nossa mentalidade. Bom é para os alemães que saem à noite marido e mulher e depois voltam para casa separados como se nada fosse", descrevia. "Eu já trabalhei na Alemanha e já vi como é o Oktoberfest", acrescentou. Porém, enquanto hóspede do quarto n.º 1 e bisbilhotador oficial, não me deparei com nenhum cenário como o segurança descrevera.

Muitas pessoas que passeavam pelo parque cobiçavam as camas ou chegavam mesmo a deitarem-se nelas, nem que fosse para uma foto do Facebook. Os seguranças tinham de estar atentos para nada ser desviado.

Os dois cafés do jardim estavam apinhados. Estava a ser uma boa noite de negócio. com certeza, e não havia tempo para declarações. A cabeça já não conseguia acompanhar a velocidade das mãos.

Sentadas num banco, encontrei uma dupla de amigas que veio passar a noite ao "ar livre". Eram Maria, com 56 anos, e Isabel, com 58, mas à meia-noite a idade de uma delas ia-se alterar. Ambas nunca tinham acampado sequer.

"Que horas são? Por enquanto ainda tenho 58", disse em tom de brincadeira Isabel. "Foi uma coincidência vir passar aqui o aniversário. Mas também vai ser uma experiencia única", acrescentou a amiga Maria.

Depois da meia-noite, o jardim já pertencia em exclusivo aos seus hóspedes. Cada um apanhou a sua ceia e deslocou-se para o prometido quarto.

Houve três casais que ainda se juntaram a confraternizar perto do local onde era distribuída a ceia nocturna. No entanto, as conversas não passavam de um questionário informativo, num registo informal. Como vieram aqui parar? De onde são? Como souberam? Perguntas de curiosidade para conhecer os vizinhos com quem se vai partilhar o tecto. Pouco mais evoluíram.

Numa última volta ao espaço, antes de me encaminhar para os lençóis encontrei um senhor sozinho - que pediu para não ser incomodado -, deitado na sua cama e imerso nas suas leituras. Um cenário comum, não fosse ele estar no meio de um jardim e, em vez de uma luz para a mesinha de cabeceira,  estar a usar o candeeiro do parque para iluminar o livro.

As idas à casa de banho eram iguais às de um parque de campismo. Em passo acelerado com manta às costas e em chinelos.

Por fim, era o momento de entrar no ninho de lençóis. Já deitado, tinha-se direito a um tecto de palmeiras, pinheiros, choupos ou até às envergonhadas estrelas.

Ouvia-se o correr da água dos dois lagos, o canto dos pássaros que não queriam dormir, mas uns barulhos menos exóticos também. Por vezes os carros davam uma presença mais humana à envolvência sonora do local.


A manhã seguinte

Acordar é uma experiencia renovadora e neste hotel é bastante diferente do normal. Eram 7h da manhã e já passavam pessoas a fazer jogging matinal, em frente às camas. Inclino-me na cama e vejo cinco gansos a andar em fila, com as patas a fazer tac, tac, tac e o mais desajeitado de todos no final. Um momento em que a vida real reproduzia as histórias literárias, ou vice-versa.

Obviamente, as crianças foram as primeiras a acordar. "Alguém" se tinha esquecido de fechar as persianas. E já corriam pelo jardim, como se tratasse do seu parque de diversões privado.

Mas também era possível ver as diferentes rotinas matinais de cada hóspede. Um homem deitado na cama, em jeito de preguiça, com a mulher a mandá-lo levantar para fazer a cama. Pai, filho e mãe, por esta ordem, sentados na cama a contemplar o jardim e tudo o que estava a acontecer.

A algum custo, todos tinham de se dirigir para o pequeno-almoço. O discurso oficial era a língua monossilábica matinal. Só as crianças estavam em incumprimento com esta "lei".

Durante o pequeno-almoço, dois dos casais que na noite anterior tinham estado a falar, sussurravam o mistério do candeeiro desaparecido. "Quando fomos dormir estava lá, não estava? Era tão giro aquele candeeiro", dizia intrigada uma das hóspedes.

Por fim, ainda se levaram alguns "despojos" do hotel para casa. Cada hóspede tinha direito a levar os têxteis que preenchiam o seu mobiliário. Malas feitas e mais cheias, cada um rumou para casa.  

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