Acabou a especulação: o próximo Barca Velha não será do ano de 2007 (que já foi apresentado como Reserva Especial), nem de 2009 nem haverá mais uns anos de espera até se saber o valor do 2010. A nova edição do mais prestigiado vinho tranquilo de Portugal nasceu e cresceu ao longo do ano fresco de 2008. Nas caves da Casa Ferreirinha o lote que vai dar origem a 18 mil garrafas de Barca Velha foi identificado, aprovado e lá para Outubro vai chegar ao mercado. Será a 18.ª edição do vinho emblemático da Ferreirinha, do Douro e, de certa forma do país. A anterior foi o Barca Velha de 2004.
A agitação que rodeia cada anúncio de um Barca Velha explica-se com a combinação de muitos ingredientes. Por um lado, há um fenómeno de marketing que impulsiona a curiosidade pelos bens raros, caros e carregados de história. Por outro há o valor intrínseco de um vinho que geralmente suscita os maiores elogios dos consumidores e da crítica – o 2004 teve 99 pontos na prestigiada revista Wine Enthusiast. Depois, há ainda o mistério que determina que qualquer vinho destinado a ser Barca Velha tenha de esperar sete ou oito anos para confirmar a sua capacidade de resistir ao tempo.
A combinação destes factores faz com que o Barca Velha seja um fenómeno, em Portugal mas também em mercados como o Brasil ou Angola. Para narizes e palatos pouco habituados aos segredos do vinho, o Barca Velha não garante o deslumbramento da fruta intensa, do corpo sedoso ou da doçura atraente. Pelo contrário, é um vinho que sendo complexo, tenso, profundo e duradouro nos sentidos, não deixa de ter um lado austero que faz parte da identidade da Casa Ferreirinha. Muitos estreantes ficam defraudados quando o provam – o mito gera por regra expectativas sobrenaturais. Mas para os apreciadores, um Barca Velha como o de 2004 fica muito perto da perfeição.
Como beber ou oferecer Barca Velha é sinal de prestígio, e dado que a produção é limitada – embora esteja longe de ser um daqueles vinhos de garagem que se ficam pelas duas ou três mil garrafas -, o ícone da Ferreirinha é um vinho caro. Aliás, é juntamente com as preciosas edições do vinho do Porto Vintage Noval Nacional, o vinho mais caro do país. A edição de 2004 está à venda nas garrafeiras especializadas por cerca de 400 euros. Não se sabe qual será o preço de lançamento de 2008. Mas nunca será um vinho barato ou de custo médio – pelo menos para os hábitos do mercado nacional, porque se incluirmos na equação vinhos de Bordéus ou da Borgonha, o Barca Velha é até bastante “acessível”.
O nascimento do mito tem uma data: 1952. Nesse ano, Fernando Nicolau de Almeida, um enólogo irreverente e genial, decidiu fazer um vinho tranquilo num Douro centrado na exclusividade do vinho do Porto. Escolheu uvas de zonas altas para garantir frescura e recorreu à excelência do Vale Meão, junto ao rio, para garantir fruta, concentração e poder. Escolheu parcelas, levou gelo da lota de Matosinhos para controlar as temperaturas de fermentação e recorreu aos saberes da enologia nessa época em prática em centros de ciência como Montpellier ou Bordéus. Hoje, o Vale Meão é uma marca independente e os Barca Velha nascem na vizinha Quinta da Leda.
Desde essa data, foram feitos 18 edições de Barca Velha. Depois de Fernando Nicolau de Almeida, coube a José Maria Soares Franco (autor dos consagrados Duorum) manter o percurso do fundador. Hoje, a enologia da Ferreirinha está nas mãos de Luís Sottomayor, que explica assim o que distingue um grande vinho de um Barca Velha: “Os grandes vinhos revelam-se logo à nascença, mas os vinhos superiores, aqueles que ficam para escrever e contar histórias, esses precisam de provar que merecem um lugar na garrafeira e passar o teste do tempo”. Por vezes, esse exercício de avaliação é difícil e contestável. A segunda marca da casa, o Reserva Especial é em certos anos tão excelente como o Barca Velha – e, sendo caro, é apesar de tudo mais barato. O Reserva Especial de 1997 é ainda hoje um vinho fora de série. O 2007 também.
Ainda assim, para não serem Barca Velha é porque lhes falta um detalhe, por ínfimo que seja, no seu conjunto. Um aroma que se transforma, uma ligeira hesitação na boca, uma estrutura de taninos que ora se conserva mais dura ou mais plana, uma dúvida que seja, chegam para que a escolha não se faça. Manter um estatuto que alimenta uma imagem e legitima um preço não autoriza condescendências. Nessa escolha, quem manda é Luís Sottomayor, por muito que o departamento comercial da Sogrape gostasse de mais edições e de menos tempo de espera – nenhum vinho português passa oito anos de estágio antes de ser vendido.