A experiência irrecusável das castas do Esporão
Há castas capazes por si só de fazerem grandes vinhos, ou os enólogos têm sempre a ganhar quando combinam num lote as complementaridades de diferentes variedades?
A pergunta é velha e interessante, mas perante a proposta da linha de monocastas da Herdade do Esporão da vindima de 2008 vale a pena colocá-la entre parêntesis e pensar um pouco na magnífica experiência que a prova da Touriga Nacional, da Alicante Bouschet, da Syrah e da nova coqueluche alentejana, a Petit Verdot, nos proporcionam. Em causa não estão vinhos pensados para o gross market, antes produtos de gourmet, com edições de cinco mil garrafas a preços relativamente altos (25 euros), que tanto hão-de interessar ao aprendiz das maravilhas das castas, dos terroirs ou dos prodígios enológicos, como aos mais experimentados nas andanças da enofilia. Para uns e outros, um encontro de amigos para uma prova e descoberta das particularidades de cada uma das castas é, sem dúvida, um excelente pretexto para se falar de vinho e de prazer.
Em relação a 2007, a edição dos monocastas de 2008 apresenta duas novidades: a Aragonês desaparece do catálogo e a Syrah e a Petit Verdot estreiam-se. Não se sabe se a suspensão da Aragonês é conjuntural ou se exprime a ideia cada vez mais consolidada que esta casta não é, afinal, tão ajustada aos climas da planície como se julgava. Pelo contrário, a Syrah plantada há 12 anos mostra-se já com um porte e uma dimensão de extraordinária qualidade, com notas de couro a acentuarem-lhe um perfil internacional, e a Petit Verdot, provavelmente de uma vinha mais jovem, acusa sintomas de grandeza mas não atinge o nível de refinamento que outras experiências alentejanas suscitam - não se julgue que o Verdot do Esporão não é muito bom, trata-se apenas de o relativizar face aos seus parceiros de outras castas.
Como seria de esperar, a casta porta-bandeira dos tintos alentejanos, a Alicante Bouschet, apresenta-se em muito bom nível: excelente estrutura, com taninos finos a pontuarem-lhe o volume, complexidade, aroma e boca marcadas pelo calor e pela fruta que distingue a classe dos vinhos alentejanos. Mas é a Touriga Nacional, curiosamente uma casta com solar no Dão e no Douro, que neste lote apresenta o grau máximo de refinamento. Aroma de bosque, com especiaria e barrica muito bem integrada, um vinho esplêndido na boca, com nervo, vibração e um magnífico final de boca.
É muito difícil fazer-se entre estes quatro magníficos vinhos uma hierarquia qualitativa que não seja contaminada pela subjectividade - pessoalmente, a Verdot fica um nível abaixo da média e a Touriga um nível acima. Mas é esta sujeição às marcas da casta e do terroir que torna a prova conjunta destes varietais um exercício útil de enorme prazer. Porque só uma casa com a excelência enológica da Esporão se pode dar ao luxo destes requintes, que afinal nos ajudam a convencer ainda mais de que o livro dos vinhos tem sempre algo mais para nos dar e deliciar.
Manuel Carvalho