O título deste texto não pretende ser ordinário mas antes constatar uma das principais sensações da Tomatina: a certa altura, parece que não há tomates que cheguem. Nessa batalha, que, na última quarta-feira de Agosto, leva sempre à localidade espanhola de Buñol milhares de jovens de vários países, os tomates não são tão abundantes quanto as imagens televisivas dão a entender pela sua posição privilegiada e o que apetecia era ter levado de casa alguns exemplares maduros, para fartura de munições.
Esta é, afinal, uma experiência que se vive em crescendo. Assim se explica que só no auge da festa nos apercebamos da real importância de ter tomates. O tamanho não é importante, é certo, mas convém que sejam em quantidade suficiente e apresentem a devida maturidade, porque, sem isso, passam-nos ao lado as alegrias de um envolvimento pleno.
Mas começando pelos preliminares, a chegada a Buñol faz-se de forma suave. A terra é pequena, os moradores estão concentrados na sua vida e só a quantidade de gente nova que circula pela rua em trajes menores faz adivinhar que qualquer coisa está para acontecer. Quando se encontra a Plaza del Pueblo, percebe-se então que será algo em grande, porque os prédios estão cobertos por plásticos, as lojas foram entaipadas com madeira e em todo o lado há cartazes a dizer que se alugam varandas e se guardam mochilas e roupas.
Na véspera da Tomatina, durante a tarde, há roulottes e carrinhas hippies estacionadas nos passeios mais largos, jogos de poker em mesas de campismo e gente que muda de roupa na sombra das árvores. O ambiente mantém-se relaxado à noite porque, estando todos a poupar energia para a batalha, não há grandes exigências: a malta senta-se nas esplanadas ou no meio das praças, vai bebendo qualquer coisa enquanto espera e dança mais ao ritmo do riso do que da música, porque os bares são poucos e só cá fora cabe toda a gente.
Às sete da manhã é que já se sente no ar o nervoso miudinho da expectativa. Aos poucos, a Plaza del Pueblo vai-se enchendo e os que sabem ao que vieram procuram situar-se num local com vista para dois pontos estratégicos: o palanque gradeado de onde vão sair mangueiradas de água para refrescar a multidão e o palojabón, o mastro untado de sabão no cimo do qual se pendura um presunto a saborear por quem conseguir chegar-lhe.
Até às 11 horas ainda falta muito tempo, mas ele passa-se bem a apreciar a paisagem: há quem chegue vestindo só um biquíni; há quem venha artilhado com macacões, óculos gigantes e capacetes; e há quem se fantasie de frasco de ketchup, hambúrguer, banana e tomate também. A playboys que ousem desfilar em blazer branco está reservado, contudo, um momento de particular deleite para o grupo de homens que, barrando a passagem de um lado ao outro da praça, rasgam a roupa aos que tentam escapar de peito vestido. A atitude é bruta, mas o público feminino agradece porque, afinal, poucas manifestações da tradição popular estarão tão bem servidas de corpos bem torneados assim ao alcance do tacto.
E eis então que a Plaza del Pueblo está lotada e soa o alarme das 11. Essa batalha campal que é a Tomatina recebe ordem para começar!
Apesar do aperto impressionante, a multidão consegue abrir espaço para os camiões e é daí que se lançam os primeiros tomates, que uns têm a sorte de apanhar à primeira e outros só alcançam após um ricochete de corpo em corpo, quando o fruto se arranca ao cabelo de um para ser atirado ao pescoço do próximo.
No repetir desse gesto, descobre-se a essência da Tomatina: o gozo primitivo e sádico de magoar o outro. O prazer de ouvir o tomate rebentar em sumo na pele alheia e de fazer soçobrar o inimigo quando o tiro foi em cheio e estávamos a olhar na direcção certa para o ver tombar. Mas, surpreendentemente, a Tomatina é também civismo: porque o tomate se desfaz nas mãos antes de ser projectado para uma pancada assim amortecida e porque a sua polpa se partilha com o desconhecido do lado quando nem um nem outro têm munições de reserva.
É por esta altura, no auge da festa, que se nota que os tomates foram poucos. Uma hora passa depressa e, entre arremessos que souberam a pouco, algumas fotografias e muitos ataques de riso, o segundo tiro ribomba na praça e a guerrilha dá-se por terminada. Respeitosa e ordeiramente, as tropas retiram-se, exaustas e avermelhadas.
No minuto seguinte, as equipas de limpeza públicas estão no terreno e os espectadores que hidrataram a multidão a partir de telhados e varandas transferem para a rua os seus baldes e mangueiras, para ajudarem ao banho das hostes. A Tomatina é primitiva, sádica q.b e um pouco masoquista, mas é também civil e ainda generosa. Quem é da terra gosta que lhes sujemos as ruas e nós regressamos a casa satisfeitos pelo contributo que demos para a liberdade de expressão. Nódoas negras? Há algumas. Mas exibimo-las com orgulho e carinho, já à espera de mais e a adivinhar a nostalgia da próxima salada mista que nos aparecer à mesa.
Manual de sobrevivência
Toda a gente deve enfrentar a Tomatina ao menos uma vez na vida, mas há alguns cuidados a observar se se quiser viver para contar-la:
# Antes de mais, faça a sua própria avaliação física - se é claustrofóbico ou tem aversão a germes, é melhor alugar uma varanda e ver a festa a partir dela do que ficar horas de pé entre milhares de pessoas coladas umas às outras e quase todas em tronco nu. Sol quente, peles alheias, suor e tomate não é realmente uma combinação para qualquer estômago e também é preciso um grande poder de encaixe para assimilar que, uma vez no meio da confusão, se precisar de ir a algum lado... não vai conseguir.
# Use roupa a que não tenha grande estima, porque nódoas de tomate são difíceis e rasgões acontecem. Aos machos recomenda-se peito nu porque os puristas não os deixarão ilesos se circularem vestidos, mas as meninas estão à vontade, que o cavalheirismo ainda não morreu por aqueles lados. Quanto a calçado, quer-se com boa aderência e fechado, porque o tomate é escorregadio e as calcadelas vão ser algumas.
# Prescinda de acessórios. A Tomatina não deixa de ser uma batalha e, quando os soldados tombam, arrastam consigo brincos, colares, etc. Com tanta proximidade, pequenos furtos também podem verificar-se, portanto jogue pelo seguro.
# Recorra aos acessórios de natação. O tomate parece inofensivo, mas arde bastante nos olhos e óculos de mergulho são uma boa estratégia para evitar perdas de visibilidade.
# Proteja a sua máquina fotográfica. Não tirar fotos na Tomatina é pecado, mas, depois dessa experiência, a sua câmara nunca mais será a mesma e, passados anos, ainda lá terá vestígios de tomate. Prefira bolsas próprias para mergulho ou descartáveis à prova de água.
# Faça o reconhecimento do local até às 8h00, o mais tardar, para escolher um bom posto de batalha na Plaza del Pueblo, que é algo estreita e afunila nos extremos. Opte por um local de onde possa ver o palanque dos mangueiristas e o palojabón, mas que seja afastado do eixo onde circulam os camiões.
# Mantenha-se no chão porque, se subir a postes, muros e outras elevações, estará a oferecer às tropas um alvo privilegiado e, lá do alto, a coisa pode acabar mal.
História da tradição
Na última quarta-feira de Agosto de 1945, estava na Plaza del Pueblo um grupo de jovens que, sem nada melhor para fazer, decidiu intrometer-se numa parada de artistas. O seu ímpeto fez com que um participante caísse e esse, em fúria, começou a agredir a vizinhança. A resposta da multidão foi acorrer a uma banca de legumes e disparar tomates para todo o lado, até que as autoridades acabaram com a festa. Um ano depois, os mesmos jovens muniram-se dos seus próprios tomates e retomaram a brincadeira, que foi proibida nos anos 50 e chegou a motivar prisões, mas nunca deixou de repetir-se. Em 1957 a lei autorizou finalmente a Tomatina e, dois anos depois, a autarquia assumia a organização anual do evento, cujos tomates fornece desde 1980.
Onde ficar
Em Buñol, o alojamento é modesto e quase todo está reservado com um ano de antecedência. O "La Carreta", no entanto, está a apenas 10 quilómetros e, mesmo na véspera da Tomatina, ainda tem disponíveis muitos quartos, aceitando até adiar o check-out para facilitar o banho dos hóspedes após a festa. Depois, há ainda a oferta de Valência: está só a 40 quilómetros e inclui de pensões baratas a hotéis cinco estrelas.
Motel La Carreta
Tem 80 quartos distribuídos por várias moradias, todas com entrada individual, garagem e jardim. Saída 34 da A3, na direcção Madrid-Valência, Chiva
www.hotel-lacarreta.com
Pousada Venta Pilar
É uma antiga estrebaria do século XVII e já alojou o pintor impressionista Joaquín Sorolla. Rua Benito Pérez Galdós, 5, Buñol
www.posadaventapilar.com
Como ir
O aeroporto mais próximo de Buñol é o de Valência, a menos de 40 quilómetros de distância, e, a partir daí, o melhor é alugar carro ou acelerar procedimentos num táxi. Em ambos os casos, o percurso terminará na periferia de Buñol, ao que se segue uma caminhada de um ou dois quilómetros até à praça da Tomatina.
Já em carro próprio, do Porto a Buñol são 900 quilómetros de boa estrada e a viagem faz-se bem com uma paragem em Salamanca e outra em Madrid. A partir de Lisboa, há que contar com mais 50 quilómetros no trajecto por Badajoz, que não tem os atractivos de Salamanca, mas fica a jeito para
Cáceres.
Outra vantagem do carro é que facilita a visita a Valência. A cidade tem um centro histórico cativante na sua traça cristã e muçulmana, respira já uma certa graça catalã e, junto à costa, renova-se com a Cidade das Artes e das Ciências, cujos edifícios testemunham a genial arquitectura de Santiago Calatrava. Além disso, a cidade acrescenta à sua lista de encantos o mérito adicional de ter praia: o areal é extenso e cuidado, a temperatura permite um bronzeado dos bons, a ondulação do mar não assusta ninguém e - cereja no topo do bolo - os banhos são na água quente do Mediterrâneo.
Site oficial: La Tomatina