Fugas - Viagens

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Um safari no carrossel das montanhas

Por Amílcar Correia

Siza ajuda. Doc é o guia. Kwandwe é o lugar das garças azuis e também é o lugar das unopopanas. Esta reserva privada, no Cabo oriental, na África do Sul, tem dois lodges, duas casas, duas aldeias. Noluvo sabe o que quer. A Fugas também: um pouco da brisa do Índico e a chave do quarto número cinco

São 5h30 quando o telefone ecoa no quarto ainda às escuras.

- É a sua chamada para despertar - diz Doc, no seu inglês tímido e entaramelado.

Apenas se ouve o piar de um malachite sunbird, ainda dorminhoco, sob o tradicional telhado de junco prensado deste quarto de um lodge numa reserva do Cabo oriental.

A saída do quarto exige alguma precaução, como se algo mais intempestivo e imprevisível nos pudesse atropelar como castigo pela nossa intromissão. A verdade é que os nove quartos do lodge Great Fish River não possuem qualquer vedação que impeça a livre circulação dos animais no seu habitat. E o Great Fish River, precisamente lá em baixo, também não serve de barreira. Embora a copa das árvores esconda alguns hipopótamos mais reservados; apesar de, no século XIX, ter sido momentânea fronteira entre os recém-chegados colonos e os encurralados xhosas. É pela mesma razão que os hóspedes serão acompanhados mais tarde, quando a noite descer sobre Kwandwe, e quando o mais vulgar dos conselhos arreliar o mais incauto dos hóspedes:

- Se vir um leão, não corra, e faça o maior barulho que conseguir, dirá a corpulenta empregada que acompanha os hóspedes, após um dia inteiro de safari neste carrossel de montanhas cobertas de vegetação como se fossem de carapinha. Imagine-se o barulho que Livingstone terá feito quando foi atacado por um leão. O batedor do colonialismo inglês na África austral terá, decerto, berrado como um hooligan num estádio de futebol, mas não foi a estridência que o impediu de umas valentes amolgadelas. Mas isso fica para mais tarde. Agora, o melhor é não fazer esperar a dupla de rangers que nos irá conduzir pela reserva, quer de carro, quer a pé.

O promontório de Siza

Siza - e já vamos explicar o porquê do nome - espera-nos junto ao Land Rover verde, pronto a ocupar o seu lugar na frente do veículo, ao nível do pára-choques, num assento mais elevado, de binóculos na mão, e confiante na sua capacidade de encontrar a mínima pista que seja de um animal nos 22 mil hectares de Kwandwe. Do promontório de Siza ver-se-á com mais facilidade o rodopio dos pássaros ou o restolhar dos rinocerontes.

Esta reserva privada é uma das muitas parcelas divididas com outras reservas e fazendas do Cabo oriental, na África do Sul, a 160 quilómetros de Port Elizabeth. Enormes parcelas de território, vedadas, nas quais foram recentemente introduzidas algumas espécies, e não muito longe de uma das grandes atracções turísticas desta região sul-africana: o parque natural de Addo, conhecido por se tratar de um importante santuário de elefantes.

Kwandwe, além de ser uma reserva privada, um projecto pessoal de um casal norte-americano, Ted e Helen Birch, distingue-se por ser um projecto de ecoturismo, com dois lodges e duas casas no seu território, obedecendo cada qual a um determinado perfil de turista, e por alojar no seu perímetro duas aldeias... Foram necessários cinco anos e nove fazendas para completar o puzzle. E algum tempo para remover os 16 quilómetros de destroços de linhas de telefone e de fornecimento de energia, que maculavam a paisagem, e que desapareceram por completo, substituídos pelas plantas Karoo numnum ou pela Acácia Karoo, uma das mais vulgares árvores da região, de cujos espetos os elefantes são particulares apreciadores.

A concentração de vida selvagem em Kwandwe está longe de se equiparar à do gigantesco Kruger Park, no Norte do país, ou ao espectáculo impressionante que é a migração de animais selvagens entre Masai-Mara e Serengeti, ou seja, entre Quénia e Tanzânia. O que recomenda, então, um safari neste terreno acidentado, semi-desértico, às portas do Karoo sul-africano? Doc, motorista, guia e natural de Kwandwe, onde sempre residiu, explica que o que esta reserva permite é a observação da vida selvagem sem a confusão dos outros parques naturais, uma vez que "nunca mais do que três jipes se concentram num dado local de observação de um animal".

Numa reserva como esta, perder um animal como uma chita, devorada por leões por aparente stress causado por um magote de turistas num safari, é algo que perturba um guia como Doc. Uma reserva como esta não se pode dar ao luxo de perder alguns dos seus animais mais vistosos, sob pena de a mesma se tornar irrelevante, pois algumas espécies têm vindo a ser reintroduzidas neste cenário árido e montanhoso. Há cerca de um século que uma chita não percorria estas terras de Kwandwe - relatos referem que as duas últimas tinham sido mortas em 1888.

A fazenda das avestruzes

Kwandwe começou por ser a primeira fazenda de avestruzes no mundo, cuja pele na África do Sul tem várias utilidades e um preço elevado, antes de se tornar no que agora é. É deste modo que é identificada a Heatherton Towers, criada pelo colono britânico Arthur Douglass, em 1836. Bem, acrescente-se que Douglass era simplesmente o ministro dos comboios, ou algo que se pareça, da província do Cabo, pelo que alguns dos seus hóspedes nesses anos tumultuosos eram pessoas como Cecil John Rhodes ou Lord Milner. Sobre o primeiro já muito se disse. Sobre o segundo, convém relembrar que foi Milner quem construiu os hediondos campos de concentração destinados aos bóeres.

À semelhança de Milner, fazendeiros e caçadores fizeram, ao longo do século XIX, com a mesma competência e desfaçatez, aquilo a que se propunham: dizimar a fauna. E quase o conseguiram. A arte rupestre deixada pelos San no vale do Great Fish River e diários de alguns caçadores de elefantes comprovam que esta região teve, outrora, uma abundante presença de animais selvagens. Cerca de 150 anos depois, os animais selvagens obtiveram, por fim, a serenidade necessária.

Em todo o caso, Kwandwe oferece aos olhos e às objectivas o que todas as outras reservas mais relevantes também oferecem: a possibilidade de ver os big five no seu habitat. Mas importa dizer que um safari, por mais exclusivo que seja, como este é, não garante a colecção completa dos big five (leão, elefante, leopardo, búfalo e rinoceronte). Há quem venha desde os "States" para os ver e não consiga.

- Temos um postcard, diz, tranquilo, um dos turistas norte-americanos, vestido de caqui, chapéu e pele atrevidamente branca neste calor seco da Primavera.

O blue crane, a garça azul, não tem porte suficiente para figurar entre os cinco possantes animais deste top mais clássico. Todavia, este é o pássaro mais frequente na paisagem sul-africana. E sabem o que quer dizer Kwandwe? Exactamente: o lugar do blue crane. Siza não perde uma oportunidade para sinalizar um blue crane, uma ave com 120 centímetros de altura e a elegância das suas patas compridas. E se, por acaso, não descobrir onde se encontram os knysna turaco ou os shelduck, o melhor é pedir a Siza que volte a indicar onde estão. Siza, em xhosa, significa...?

- Help, diz o ranger, algo indiferente e incrédulo ao saber que o apelido tem tanto de xhosa como de português, muito embora ninguém pense em Siza quando pensa na palavra portuguesa ajudar.

O poder de Noluvo

Kwandwe equilibra-se a uma altura entre os 250 e os 490 metros acima do nível do mar, que é de onde vem esta brisa. A proximidade do oceano, do Índico, pois então, a cem quilómetros, ajuda a explicar esta variedade de vegetação que ladeia os caminhos mais apertados da reserva e que tão imprescindível é a animais como os elefantes, os kudos ou os rinocerontes negros que aqui habitam. Seis destes animais, cujo transporte foi o mais ambicioso e divulgado, vieram de KwaZulu-Natal. Mas todos eles encontraram aqui, num local de pouca densidade selvagem, digamos assim, a gastronomia mais abundante e recomendável.

O mais habitual numa reserva, seja ela privada ou não, é que exista uma insanável fricção entre a preservação da vida animal e a presença humana. John Reader, no seu célebre África, Biografia de um Continente, utilizava uma imagem que retrata bem uma evolução favorável à presença humana em detrimento da vida selvagem. Em tempos, os humanos eram ilhas rodeadas de elefantes, ao passo que as ilhas, hoje, são agora os elefantes, como se depreende, por exemplo, do parque de Addo.

Numa reserva como Kwandwe procura-se eliminar essa fricção. As reservas e a oferta hoteleira associada criam emprego, sedimentam populações, pelo menos aquelas que resistem ao apelo da mudança para uma township às portas da Cidade do Cabo, Pretória, ou mais frequentemente Joanesburgo, preservam a vida animal, blá, blá.

É óbvio que não está ao alcance de qualquer um adquirir 22 mil hectares de terra, com esta brisa do Índico a correr por rios, lagos e montanhas. É um luxo só possível em alguns, poucos, locais do planeta. Mas não existem alternativas viáveis numa região como o Cabo oriental, com a mais elevada taxa de desemprego nacional. Donde, Kwandwe acaba por ser uma fonte de emprego e de receita para quem vive na cidade mais próxima, Grahamstown, ou nas duas pequenas aldeias da reserva.

Siza mora com a família nesta aldeia, a maior das duas, habitada por pessoas que ainda vivem como ilhas, rodeadas de savana, de terra semi-árida, rios com hipopótamos e duas dezenas de elefantes. Ao contrário do que teria sido prática corrente ainda há alguns anos - e convém não esquecer que o apartheid é uma memória ainda a fumegar -, a população não foi deslocada para qualquer outro local, como numa cidade se deslocam aqueles que nos importunam ou nos impedem de aceder às paisagens mais luxuosas. "Como gerir dinheiro ou como liderar um grupo foram questões que foram trabalhadas com a comunidade", explica Tim Vuyk, manager da reserva. O que Tim quer dizer é que o projecto privado de exploração destas terras também inclui aquilo que hoje se pode, pomposa, mas acertadamente, traduzir por empoderamento, apesar de empowerment soar melhor...

The Angus Gillis Foundation, assim se chama a organização de caridade que trabalha com 12 aldeias do Cabo oriental, entre as quais esta onde vivem Siza e mais três centenas de pessoas. Foi graças a esta fundação, constituída em 2002 em Grahamstown, que foi estabelecido o fornecimento de electricidade ou de água potável.

Noluvo Sideba, uma mulher de idade indeterminada, mas invulgarmente determinada, explica como tudo isto aconteceu. Os habitantes chegaram à conclusão de que aquilo que lhes faltava e que mais necessitavam era de um infantário onde pudessem deixar as crianças durante o dia. A comunidade, liderada por Noluvo, organizou-se e, em colaboração com a administração da reserva, estabeleceu as suas prioridades e lançou os seus projectos. A começar pela pré-primária onde o pequeno Siza completa puzzles, aprende xhosa, inglês ou africânder, algo até há pouco impensável num país onde a língua dividiu mais do que juntou.

Tim, visivelmente aliviado, explica que algo mudou desde que a reserva foi criada, em 2001. "Nessa altura, as pessoas procuravam-nos para tentar resolver todo o tipo de problemas. E isso deixou de acontecer quando a comunidade se organizou. É a Noluvo", acrescenta, "que compete encontrar as soluções e ao lodge providenciar o que mais precisarem". No fundo, Tim foge dos paternalismos escusados:

- É a comunidade que decide o que é melhor para si.

O velho infantário de madeira, canhestro e desbotado, foi substituído por um novo edifício. E Kwandwe ganhou ainda uma oficina e uma sala bem dimensionada para reuniões ou acções de formação, inauguradas por Nontsikelelo Biko, viúva de um mártir, viúva de Steve Biko. As crianças têm transporte para a escola, depois de concluído o pré-ensino, as mulheres trabalham nos lodges - que empregam 120 pessoas - ou fabricam unopopanas, negras bonecas de pano vendidas a 200 rands, pouco mais de 20 euros. A procura supera a capacidade de produção. Talvez seja isso que explique por que é que as unopopanas não dormem no infantário, ao lado das suas colegas brancas e louras. Porque Kwandwe também é o lugar das unopopanas.

Da importância da vida selvagem

A vida selvagem é a sétima actividade de um turista estrangeiro na África do Sul. Os indicadores oficiais, do turismo sul-africano, quer os que são relativos ao ano de 2009, quer os que se referem já ao primeiro trimestre de 2010, dão conta da importância que o safari tem na decisão de viajar para o país de Nelson Mandela.As estatísticas são apresentadas segundo actividades, o que explica que compras, vida nocturna ou actividades sociais surjam à frente. O que ressalta desta estatística é a predominância da atracção das belezas naturais, a importância do património cultural e a vida selvagem na decisão de visitar a África do Sul. Quando se olham os dados em função dos turistas europeus, percebe-se que estes são quem mais valoriza as atracções naturais e os safaris, que surgem bem à frente das praias como factor de decisão. O Kruger Park é a reserva natural mais conhecida do país, na fronteira com Moçambique, na região de Mpumalanga.


Como ir

As duas principais portas de entrada na África do Sul são os aeroportos internacionais de Joanesburgo, a grande plataforma intercontinental africana, e da Cidade do Cabo. Em todo o caso, o aeroporto mais próximo de Kwandwe está localizado na cidade portuária de Port Elizabeth, a 160 quilómetros de distância, o que implica um voo interno caso o tempo de permanência seja reduzido. A British Airways voa, directamente, para a Cidade do Cabo, o que é sempre mais agradável do que transitar pela caótica e tempestiva Joanesburgo.`

Onde ficar

O Great Fish River foi o primeiro lodge a ser construído, em 2001, data em que foram reintroduzidos os primeiros animais selvagens. O lodge tem nove espaçosos bungalows de luxo, construídos em madeira e devidamente integrados na paisagem. A decoração é contida e cuidada. Canapés orientados para a savana; banheiras também. As largas janelas dão acesso a um terraço. Ao lado, há, em cada um dos quartos, uma pequena piscina exterior. O lodge tem partes comuns, igualmente confortáveis, recheadas de antigos tapetes asiáticos e sofás vintage. Uma lareira acesa, mal escurece, é uma boa recepção para quem sai de um safari quase nocturno.

O Ecca Lodge é uma alternativa, no interior de Kwandwe. O conforto é semelhante ao do Great Fish River, mas a decoração pretende ser mais moderna, o que o recomenda, à partida, para turistas e viajantes mais jovens. Trata-se de um lodge mais depurado, mas também mais pequeno (seis quartos), menos colonial no estilo e mais aproximado dos canônes de uma revista internacional de decoração de interiores. Seja como for, o décor do Great Fish River resulta mais adequado na relação entre interior e exterior.

Kwandwe oferece ainda uma outra hipótese: alugar uma casa. A reserva aproveitou antigas casas das quintas adquiridas, de arquitectura holandesa do Cabo, com algumas nuances mais livres, para criar a Uplands Homestead e a Melton Manor. A primeira das suas casas tem três quartos e uma lotação máxima de seis pessoas. Tem piscina, claro, está no meio da reserva, evidentemente e, se pergunta, também tem uma vedação eléctrica para descanso pessoal. A segunda tem quatro suites e capacidade para oito pessoas e atributos idênticos. Kwandwe é membro do Relais & Chateaux. Os preços dos lodges oscilam entre 385 e os 723 euros por noite, com tudo incluído, e as casas entre os 2400 e os 3400 euros, consoante a época do ano.
www.andbeyond.com | www.kwandwereserve.com

Recomendações

África do Sul não carece de visto, nem tão-pouco de profilaxia da malária, à excepção da região do Kruger Park, pelo que só é necessário levar o habitual: calçado apropriado, chapéu, óculos de sol, protector solar, etc. Uma lanterna pode dar jeito. E fato de banho também, para as piscinas. Aquilo que pode ser designado como a etiqueta do safari não convive bem com o consumo de tabaco, o que não necessita de explicação, e com a utilização de "telemóveis ou Blackberry", idem, aspas, aspas.

A Fugas viajou a convite da Embaixada da África do Sul

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