Fugas - Viagens

Adriano Miranda

Pedra Furada e o livro dos caminhos cruzados

Por Sérgio C. Andrade, José Augusto Moreira

"Ser peregrino é um modo de vida", pode ler-se no livro de registos dos viajantes que, diariamente, passam e procuram guarida no restaurante Pedra Furada, perto de Barcelos. A Fugas foi folhear os livros e conhecer as histórias de vida que eles encerram

No "livro de honra" dos Caminhos de Santiago do restaurante Pedra Furada há palavras de agradecimento pela comida e pelo acolhimento. Há também testemunhos de encontros inesperados, pensamentos de índole existencial e mesmo algumas exortações espirituais. Mas o que há, sobretudo, é o registo de histórias de vida e de experiências que só os caminhantes vivem, façam-no ou não por motivos religiosos.

"Esta minha primeira experiência como peregrino terá como único sentido saborear e meditar sobre a riqueza que temos desperdiçado, e que poderemos usufruir a partir deste momento", escreveu um peregrino que este ano aportou ao Pedra Furada, uma casa que fica numa estrada interior entre Vila do Conde e Barcelos, e que é uma referência incontornável nos guias dos caminhos portugueses de Santiago entre o Porto e Compostela.

António Herculano, co-proprietário, com as duas irmãs e a mãe, desta casa de bem comer e de bem receber, não esconde o orgulho que tem ao mostrar, folhear e comentar estes livros de registos dos peregrinos que passam pela sua terra. Foi só no final de 2007 que se lembrou de reunir as fotografias e os postais que, de todo o mundo, lhe iam chegando pelo correio a evocar e a agradecer os bons momentos que os viajantes tinham passado no Pedra Furada (o restaurante assumiu, há mais de um quarto de século, o próprio nome da freguesia, que retém a lenda da mártir cristã Santa Leocádia, que, tendo sido sepultada viva, conseguiu sobreviver "furando" com a cabeça a pesada pedra que colocaram no seu túmulo - e que está instalada junto à igreja paroquial).

A decisão de criar este "livro de viagens" coincidiu com uma altura de progressivo aumento do número de peregrinos que trilhavam a serpenteante estrada regional por entre as casas, as vinhas e os campos de milho tão característicos desta terra minhota.

Só nos primeiros quatro dias do corrente mês de Julho, por exemplo, o livro - que vai já no terceiro volume - recebeu 28 notas de viajantes ou grupos. "Naturalmente que agora o número de peregrinos vem crescendo, todos os dias, mas tem sido assim desde há mais de uma década", diz António Herculano, recordando que no início dos anos 90 contava pelos dedos de uma mão o número anual de romeiros com destino à Galiza.

A mediatização e as campanhas turísticas e religiosas que nos últimos anos têm sido realizadas em volta do santo e da terra que é um dos centros históricos mais importantes do mundo católico, a seguir a Jerusalém e Roma, tiveram o condão de revitalizar os Caminhos de Santiago. 

Um casal polaco deixou no livro uma fotografia do Papa João Paulo II, e a inscrição "Que a estrela de Santiago ilumine"; outros, de diferentes proveniências confessionais, colaram um retrato do Dalai Lama, com o pensamento "Andam pelo caminho da vida longa"...

Mas "há um momento para caminhar, e outro para jantar", escreveu o porta-voz de um grupo italiano de Brescia. E Philippe, um francês de Montpellier, concordou: "Agora que o calor do sol me queima todas as minhas energias tornando o caminho difícil, a Providência fez-me passar pelo restaurante do António Herculano, cujo acolhimento me fez esquecer a fadiga". Dava assim expressão ao que é o denominador comum das mensagens que várias centenas de peregrinos já deixaram registadas no livro. E a maior parte delas - ou daquelas que conseguimos decifrar nesta autêntica babel de línguas e escritas - vai sempre dar à gastronomia, com mensagens a fazer rimar a devoção a Santiago e ao exercício de caminhar com o bacalhau e os rojões "estupendos" da Dona Angelina!

De França ao Nepal

"Raramente fiz uma paragem como esta. Esta refeição de peregrino [que António Herculano criou à margem do menu do restaurante, com um preço quase simbólico: 5,50 euros] é extra, como o acolhimento... Parti de Vezelay [localidade francesa da Borgonha] no dia 8 de Abril. Estive em Santiago no dia 15 de Junho, depois Finisterra. Vou agora a caminho de Fátima, depois Lourdes e a seguir o Vaticano. Espero chegar a Jerusalém dentro de nove meses. Mas o meu destino final é o monte Kailash, no Nepal. Serão dois anos de viagem. Ser peregrino é um modo de vida. Que Deus benza aqueles que ama e ajude os peregrinos", testemunha Alain, romeiro francês, cujo relato impressiona pelo que contém de determinação e de programa de vida.

Há muitas histórias por trás das mensagens simples e agradecidas que os peregrinos quiseram deixar no livro do Pedra Furada. Por cada página folheada, António Herculano é capaz de reconstituir a experiência de um encontro, como o daquela senhora sexagenária que, há dias, tendo entrado no bar do restaurante e reparando que em fundo estava uma música de Nat King Cole, lhe pediu que dançasse com ela essa canção. Ou a do jovem empresário alemão que, folheando o livro, descobriu que um seu tio também tinha passado por ali. Ou a ruidosa alegria adolescente de um grupo de estudantes sul-coreanos que vinham acompanhados pelo seu professor de Filosofia. Ou a jovem californiana e o jovem dinamarquês que se encontraram nos Caminhos e, um ano depois, lhe enviaram uma fotografia a mostrar-lhe o filho bebé de ambos...

Para além dos livros, há outros sinais dos Caminhos na parede do bar do Pedra Furada: a vieira, a cruz e o cajado de São Tiago, pequenas bandeiras-galhardetes de países distantes como o Chile, a Nova Zelândia ou a Austrália, ou o leque deixado por uma sul-coreana, cujo nome foi mais tarde identificado por conterrâneos seus como sendo uma importante escritora de literatura de viagens, e cujos livros os tinha levado a empreender o Caminho...

"Não me imaginava já a viver sem o contacto com esta gente de todo o mundo", diz António Herculano, antigo emigrante-aventureiro também por terras da Europa e do mundo. Simultaneamente, com as suas irmãs, desdobrava-se no atendimento aos clientes diários da terra, aos frequentadores do restaurante... e aos peregrinos que iam chegando. Durante a hora de almoço da última segunda-feira, mais de uma dezena de caminhantes - de Sagres, do Brasil, da Alemanha, de Itália... - foram chegando e pedindo a refeição do dia, e também informação sobre o resto do Caminho (mais 190 quilómetros e mais de uma semana de viagem até Compostela).

"Continuação de bom Caminho" - despedia-se, no fim do almoço, o dono do Pedra Furada. Com o conselho-advertência: "Chi va piano va sano e lontano"...


Crítica gastronómica por José Augusto Moreira
O galo assado que canta no Pedra Furada


Casa farta e de comida tipicamente minhota cuja fama há muito se alimenta de bacalhaus, rojões e afins, é também um dos melhores exemplos de genuinidade e critério na utilização dos produtos. José Augusto Moreira saboreou e as fotos são de Paulo Ricca

Muito para além dos peregrinos que periodicamente ali se acolhem, o Pedra Furada é um restaurante com fama (e proveito) construída ao longo de décadas. Casa farta e de comida tipicamente minhota, é também um dos melhores exemplos de genuinidade e critério na utilização dos produtos, sempre que possível oriundos da horta, quintais ou capoeiras da localidade. 

Além da qualidade das comidas, há ainda outra particularidade que o distingue dos demais restaurantes da região: o galo assado no forno, um pitéu que tem arrebatado prémios e só por si justifica a deslocação. E tal como orgulhosamente gosta de referir António Herculano - que com as irmãs Lina e Madalena gere o negócio - , Barcelos tinha o galo na lenda e na olaria mas faltava pô-lo também no roteiro gastronómico e isso foi conseguido pelo Pedra Furada.

O desafio começou com um concurso lançado pelo município para integrar também na cozinha aquele que é o símbolo do concelho e ícone do turismo nacional. Concorrem sempre dezenas de restaurantes, mas invariavelmente o prémio tem sido arrebatado pelo galo recheado no forno à moda de Barcelos do Pedra Furada. E mais uma vez o segredo está na genuinidade do galináceo e no cuidado tratamento que lhe é dado quando chega à cozinha

Há que dizer, antes de mais, que é um bicho de envergadura, tal como acontece com os afamados capões, só com a diferença que não foi capado na infância, ou seja, que não lhe foram tiradas as alegrias, como gostam de dizer os especialistas. Para se abastecer, a casa recorre a alguma produção própria e tem também já montada uma rede de abastecimento em capoeiras das redondezas. Depois de depenado, o galo estagia demoradamente numa marinada e em vinha de alhos antes de ser levado ao forno a lenha, onde lentamente é assado. Vai à mesa com um recheio à base de carnes de fumeiro e devidamente acompanhado com batatinha redondinha da assadura e um arroz do forno com os próprios miúdos.

Tal como cantava Camões, se bem que para outros contextos, melhor é experimentá-lo que julgá-lo. Por nós experimentámos e o que apetece mesmo dizer é que não chega a hora de repetir. Tresanda de sabor, a carne é tenra e suculenta a desfazer-se na boca. E o recheio uma gulodice.

É claro que um bicho destes não se arranja todos os dias, desde logo porque exige preparação antecipada. Em todo o caso, a procura é tanta que já parte da ementa para o almoço todos os sábados e domingos e também nos outros dias é possível saboreá-lo, mas desde que se encomende de véspera.

Mas nem só de galo se alimenta a fama do Pedra Furada. Nem por lá perto, até porque o petisco é coisa dos últimos anos. De respeito é igualmente o bacalhau à moda da casa que saboreámos na mais recente visita. Posta mais que generosa, três dedos de altura bem medidos e a descair em lascas bem temperadas e íntegras como mandam as regras da boa cozinha. Cebola macia e batata às rodelas compõem o saboroso cenário.

Provou-se, ou melhor dizendo, deglutiu-se mesmo, também uma travessa de rojões à moda do Minho, daqueles que já não é fácil encontrar por aí. Carne untuosa e a desfiar-se, tripa enfarinhada bem frita e sarrabulho. Faltaram apenas as batatinhas cozidas na banha, desta vez substituídas por uns modernos cubinhos fritos.

Como entradas, uma chouriça de vinho tinto assada e genuínos bolinhos de bacalhau, que acompanharam com um verde branco Quinta do Barco, que dá boa expressão à casta Loureiro e se portou à altura. No mais optou-se pela potência e complexidade de um reserva Douro da Quinta dos Aciprestes, já que tal exigia o conduto.

O serviço é diligente e simpático, copos correctos, sala ampla e as mesas devidamente aparelhadas com toalhas e guardanapos de algodão. Em noite amena, optou-se por saborear as sobremesas na esplanada exterior, para um final prazenteiro e que se tornou ainda mais agradavél com a simpatia da casa, que decidiu presentear-nos com um Porto LVB da casa Dow"s.

Restaurante Pedra Furada
Rua Stª. Leocádia, 1415
755-392 - Pedra Furada, Barcelos
Tel: 252 951 144 / 917 838 144
Cartões: aceita
Estacionamento: fácil
Encerra às segundas ao jantar

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