Fugas - Viagens

Antony Njuguna/Reuters

De Nairobi a Ngorongoro num camião chamado Cristina

Por Aníbal Rodrigues

É uma viagem deslumbrante para os amantes de vida selvagem, que atravessa os santuários mundialmente famosos do Quénia e Tanzânia. E, como se isso não bastasse, ainda conserva algum do sabor das épocas em que os exploradores europeus desbravavam o continente africano. A Fugas participou nesta aventura inesquecível

O camião parou, com o motor desligado. Ao fundo da estrada, à direita, está uma chita com a cabeça disfarçada pelo capim. Em cima da carroçaria do veículo, os passageiros silenciosos tentam captar imagens do felino ou observá-lo com binóculos. Carmen, a guia espanhola, sussurra, entre o ruído de fundo das cigarras, que o "guepardo" é o mais veloz dos animais terrestres, capaz de atingir entre 115 e 120 km/h de velocidade máxima.

A uns 50 metros da chita está um grupo de gazelas. A emoção aumenta e o predador não defrauda ninguém. Lança um arranque, não muito impressionante, diga-se, mas logo seguido de uma velocidade prodigiosa. Porém, de pouco lhe valeu tamanha celeridade porque as gazelas foram ainda mais lestas.

Um felino a caçar ao vivo, um privilégio que até a experiente Carmen tinha observado muito raramente. Após a tentativa frustrada, a chita passa junto à traseira do camião, como se desfilasse, esguia e elegante, para se juntar às suas três crias.

Estamos no Quénia, na Reserva Nacional Masai Mara. O nosso camião, um Scania de matrícula tanzaniana, baptizado Cristina, permite uma visão de 360º. Tem dois bancos corridos e, por baixo destes e do piso da carroçaria, há arrumos para as bagagens. À frente, sobre a cabine, tem uma área de repouso com um grande tecto de abrir por cima. Aqui, sob o tabuado, há uma arca congeladora com comida e gelo e, noutro compartimento, duas caixas de medicamentos variados e listas simplificadas com indicações e posologias.

A tripulação é constituída por três homens: condutor, cozinheiro e ajudante. Cristina só tem tracção traseira, o que em África é bem capaz de causar alguns problemas. mas já lá iremos. Carmen tem um colega, Óscar, também espanhol e, para além desta dupla, há mais doze passageiros portugueses nesta viagem de oito dias pelo Quénia e a vizinha Tanzânia.

Após um primeiro voo Lisboa-Amesterdão, o aparelho da KLM demorou cerca de oito horas entre a capital holandesa e Nairobi. Dormimos no Hotel Méridien que, apesar de modesto para os padrões europeus, tinha um "luxo", como iríamos perceber (e sentir) nos dias seguintes: água quente.

Vale do Rift e visita aos masai

Aquela manhã de Junho na capital do Quénia começou fria e chuvosa. O despertar foi às 5h30 (3h30 em Portugal), tal como nos restantes dias da viagem. Vê-se o vapor da respiração como num típico dia de Inverno europeu. Nas ruas, as pessoas vão para o emprego com agasalhos de cores escuras e o trânsito é caótico. O vermelho dos semáforos é apenas decorativo porque não impede ninguém de circular.

A estrada sobe e, à esquerda, começamos a ver os telhados de zinco do gigantesco bairro de lata de Kybera. Calcula-se que vivam aqui cerca de um milhão de pessoas. Não se sabe ao certo. A existência de Kybera não é reconhecida oficialmente pelo Governo queniano porque isso implicaria construir as infra-estruturas básicas que ali não existem.

As roupas das pessoas são velhas e sujas, a sensação de pobreza é uma constante, mas não há sinais de fome como em algumas imagens da Etiópia ou da Somália. E neste, como em vários outros aspectos, Quénia e Tanzânia são bastante parecidos.

Chegamos ao ponto mais alto da nossa viagem, 2600 metros em relação ao nível das águas do mar. Paramos para tomar o pequeno-almoço junto ao camião e a uma loja de artesanato. Convém avisar que sempre que descemos do veículo verde aparece alguém a vender algo, nomeadamente pulseiras, colares, mantas masai, animais esculpidos em madeira ou pedra e até lanças.

Aceitam os xelins locais, euros ou dólares. O melhor é regatear descaradamente e oferecer mais ou menos um terço do valor pedido pode ser um bom ponto de partida negocial. Outra regra diz que, a partir do momento em que o vendedor aceita a nossa proposta, então há que fechar negócio. Vêem-nos como caixas Multibanco e são bastante persistentes. Mesmo quando dizemos que não temos dinheiro, não hesitam em propor a troca das suas mercadorias pelos nossos relógios, peças de roupa ou calçado. Numa ocasião, mais tarde, foram bem-sucedidos. Zé Rui entregou as suas velhas sapatilhas de BTT e recebeu uma pintura.

Do ponto onde estamos observamos a imensidão verde do vale do Rift, de origem vulcânica. Prevê-se que, daqui a milhões de anos, este vale marque o ponto de separação de uma porção de terra que se irá desagregar do continente africano. No céu, o sol tenta furar entre as nuvens. Os locais chamam-lhe os dedos de Deus.

O camião dirige-se para o nosso primeiro acampamento. Fica nas proximidades da Reserva Nacional Masai Mara, mas ainda no exterior. Mostram-nos como montar as tendas, processo que exige espírito de entreajuda, algum esforço físico e, por vezes, alguns trilhar de dedos. Para além disto, os participantes nesta viagem lavam a louça, ajudam a carregar e a descarregar os apetrechos do camião e as bagagens. É uma boa forma de despertar os músculos de quem, por exemplo, passa muitas horas ao computador.

Encostados a Cristina há três alguidares para lavar a louça. Um com detergente e esfregão, o segundo para um primeiro enxaguamento e o terceiro para o enxaguamento final. Só que estamos em África e alguns insectos - volumosos, por sinal -, caem na água. Coisa para incomodar um espírito mais habituado ao dia-a-dia em Portugal, mas que acabamos por aceitar num ambiente africano.

Ao início da tarde fomos visitar uma aldeia Masai e começamos a ver gnus, impalas e gazelas. Jackson, o nosso afável guia, fluente em inglês, mostra-nos vestígios da presença recente de elefantes e excrementos de cor esbranquiçada. Explica que são de hiena e que a cor se deve ao facto de estas comerem ossos. Mais à frente chama a atenção para uma planta de folhas aveludadas, verde-claro. Conta, sorridente, que os Masai usam estas folhas de aroma suave como desodorizante e "papel" higiénico.

Jackson tem 25 anos, a sua mãe 40 e o pai 54. Talvez por estar a guiar um grupo português, afirma que gostaria de um dia conhecer a Alemanha e Portugal. Ressalva que não como emigrante, apenas como turista. Também aprecia Cristiano Ronaldo e apoia os clubes onde joga o craque português. As suas roupas, aos quadrados e em tons vivos de vermelho, são uma prova da histórica presença dos escoceses por aquelas paragens. Sendo membro de um povo guerreiro, ainda usa espada e lança, mas diz-me que os Masai já não têm de matar um leão como prova de entrada na vida adulta.

Os habitantes da aldeia Masai recebem-nos com cânticos. A dança, masculina, é constituída essencialmente por saltos vigorosos sem sair do lugar. Rui, o mais bemhumorado participante nesta viagem, não resiste e junta-se à dança, tentando saltar o mais alto possível. Primeiro calçado e depois descalço. Os dançarinos não entendem isto como uma eventual profanação de um ritual, mas antes acolhem com bonomia este estreante de bigode pouco comum naquelas paragens.

Andam por ali cabras, ovelhas, galinhas e centenas de moscas que não largam a cara das crianças, que já nem as espantam. As vacas estão a pastar noutro local. Jackson comenta que a base da alimentação Masai é constituída por uma mistura de leite com sangue de vaca, que lhes retiram sem as matar. Comer animais só mesmo em último recurso.

As casas dos Masai são feitas pelas mulheres com barro e madeira. Demoram cerca de seis meses a concluir e duram aproximadamente 15 anos, após o que são abandonadas. A área total não vai além da sala de um apartamento espaçoso. Está calor no interior porque há uma pequena fogueira acesa, apesar da tarde quente e de não estarem a cozinhar. A habitação tem três camas: uma para quando vem o marido (os Masai são poligâmicos), outra para a mulher e as crianças pequenas e a terceira para os filhos mais crescidos.

Mesmo com as roupas encardidas e as moscas que não as largam nunca, as crianças parecem mais felizes do que miúdos europeus rodeados de brinquedos que acharam engraçados apenas durante alguns minutos. A globalização também já chegou a este pedaço de África, apesar da vida despojada que os Masai levam. Nesta pequena aldeia havia uma moto de fabrico chinês, um relógio digital Casio, meias com a inscrição USA no canelado e um moderno telemóvel. Outro sinal: no fim da visita, Carmen recolhe dinheiro dos forasteiros para gratificar Jackson.

Reserva Nacional Masai Mara

À noite, o céu africano parece o mais bonito do mundo. Tem mais estrelas, que parecem mais próximas das pessoas. Os ruídos dos animais selvagens, a poucos metros das tendas, são outra impressão forte. E se dizem que as hienas costumam rir, aqui mais parece que protestam por estarem de estômago vazio (o melhor é confiar na tese que defende que, ao verem o grande vulto das tendas, as feras têm receio e afastam-se). E há também ruídos mais familiares, como o dos grilos, semelhante ao de qualquer recanto campestre português. Ou outro, de origem humana, provocado pelo sono "profundo" no interior das tendas.

As 5h30 locais chegam depressa. Lanterna de "mineiro" na testa, no percurso até aos balneários vêem-se excrementos frescos que denunciam a presença dos animais a meia dúzia de metros das tendas. O chuveiro está às escuras porque ainda não ligaram o gerador e o foco de luz da lanterna mostra uma grande aranha perto do gancho onde quero pendurar a roupa. Eventualmente, nada a temer. A aranha, apesar das dimensões avantajadas, parece do género de aracnídeo que se pode encontrar na Europa. Por isso limito-me a colocar a roupa um pouco mais ao lado sem perturbar a aranha.

A água está fria, o que altera um bocado o ritmo da respiração, mas, com a habituação, o banho até sabe bem e, depois, ajuda a suportar melhor o frio da alvorada. Basta vestir uma t-shirt, mas passado algum tempo o corpo volta a sentir frio e é melhor acrescentar o polar. Outros membros do grupo preferem não tomar banho, à espera que surjam melhores condições, mas como isso não acontecerá tão depressa são obrigados a tomar banho de água fria mais tarde.

Viajar em África não é o mesmo que percorrer uns bons quilómetros em solo europeu. O condutor sabe disso e, apesar de o camião ter apenas quatro anos e cerca de 73.000 km - uma ninharia para um pesado -, verifica os níveis do óleo e água antes de partirmos, ao nascer do sol.

Entramos na Reserva Nacional Masai Mara pelo portão Sekenani. A beleza da paisagem natural vale por si só, mas a certa altura paramos o camião para observar duas famílias de elefantes. Carmen explica que o período de gestação de um elefante é de 22 meses, o maior do reino animal. Um adulto come cerca de 300 kg de erva por dia e pode durar nove décadas. Mas é no momento em que a guia acaba de referir que o macho do elefante africano é maior e mais violento do que o asiático que um exemplar olha para o camião com ar ameaçador. Entre os passageiros notam-se expressões de alguma apreensão.

As girafas, com a sua forma de andar que parece em câmara lenta, suave e silenciosa, têm um ar francamente mais amistoso e até fazem poses para as nossas máquinas. Próximo da hora de almoço chegamos ao rio Mara, que faz fronteira entre o Quénia e a Tanzânia. Atravessamos a ponte e paramos do lado que tem mesas e casa de banho. Os seguranças avisam-nos para não nos aproximarmos da margem contrária por causa dos crocodilos, mas ainda não vemos nenhum destes répteis. Em contrapartida, avistamos três hipopótamos. Carmen avisa que, apesar do ar amistoso, os hipopótamos são o animal africano mais mortífero para os humanos porque, nas suas deslocações entre terra e água, atropelam tudo o que lhes surge pela frente.

O nosso almoço despertou a atenção de inúmeros pássaros e lagartos de tons vivos azuis e amarelos e pequenos macacos, mas era necessário voltar aos solavancos da "estrada". Paramos noutra secção do rio Mara. Outra vez os hipopótamos, mas também crocodilos. Um deles permanece imóvel na margem e as suas cores confundem-se com as da paisagem. Mesmo visto através de binóculos, para quem ainda só tinha visto este réptil em cativeiro, este exemplar afigura-se gigante.

Ao final da tarde, uma forte chuvada ensopa-nos a todos e obriga a acelerar a montagem das tendas, que se torna ainda mais difícil do que o habitual devido às lonas molhadas. Dificuldades que não anulam a boa-disposição. Eduardo, um dos membros do grupo, fica só em calções e ensaboa-se com gel de banho. A chuva continua, intensa, e é preciso montar um toldo agarrado ao camião para jantarmos.

Este acampamento, junto ao portão de Olo Olo Olo da Reserva Nacional Masai Mara, praticamente não tem infra-estruturas. A "sanita" é um buraco sujo e o cheiro nauseabundo afasta qualquer um. Os chuveiros são melhores, mas ainda assim pouco convidativos. Dois viajantes planeiam negociar um banho numa das casas dos rangers, mais acima, mas acabam por desistir, porque até aí as condições não são as mais aprazíveis.

Uma hiena - talvez uma daquelas que não se calaram durante a noite anterior -, observa-nos ao nascer do dia. Provavelmente tenta perceber quem eram aqueles seres que estiveram a fazer barulho, à volta de uma fogueira, apesar da chuva. Olha para nós, sentada, e de orelhas atentas, a cerca de 50 metros do acampamento. A aparência é a de um simpático cachorro, mas convém lembrar que a hiena tem a mandíbula mais poderosa entre os mamíferos.

Agora, após a saída da Reserva Nacional Masai Mara, o caminho é a subir e as "estradas" estão enlameadas. Carmen já previa difi culdades de progressão, mas a realidade encarregou-se de comprovar que uma viagem deste género é, de facto, imprevisível. Surge uma cova que é preciso tapar e todos saem do camião para apanhar pedras grandes. Uma espécie de aperitivo.

Noutra zona, a solução é passar num terreno paralelo à estrada, com os ocupantes do camião a caminharem durante cerca de 800 metros para facilitar a marcha do veículo. Talvez por me ver de bloco de notas na mão, Noah, um ancião, pergunta-me se tenho uma Bíblia. Digo-lhe que sim, mas que não está comigo. "Devia ter porque Deus está em todo o lado", aconselha.

Os contratempos de uns são a fortuna de outros e Damil, o dono dos terrenos por onde o camião passou, recebeu, em xelins, o equivalente a cerca de 20 euros, por deixar passar a viatura pesada na sua propriedade. E nós nem fomos os primeiros clientes do dia. O terreno é tão mau que o camião já não se limita a sacudir os seus ocupantes. Por vezes mais parece um navio em mar revolto, que ameaça tombar. É ainda frequentemente vergastado pelos ramos das árvores, obrigando os passageiros a "entrincheirarem-se".

A empresa espanhola que trabalha com a portuguesa Agência Abreu, que por sua vez comercializa esta viagem, tem 16 camiões como o Cristina. Mas Óscar menciona que não os usam, por exemplo, na Etiópia, porque lá os caminhos são bem piores e desempenham a sua actividade apenas com jipes.

Cristina atolada

Entretanto, acontece o que já se temia: o camião atola numa subida, junto a uma povoação chamada Lol Gorian e a cerca de 50 quilómetros da fronteira com a Tanzânia. Tentamos por todos os meios desbloqueá-lo, mas o chassis já bate no solo e as rodas traseiras (de tracção) estão bem enterradas na lama. Ainda por cima, as várias caixas de arrumos montadas lateralmente por debaixo da carroçaria funcionam como uma espécie de travão. A lama abunda e nem mesmo a ajuda de vários locais com pás e enxadas é suficiente para recolocar o camião em marcha.

Chama-se um tractor e, enquanto esperamos, improvisamos o almoço à sombra de uma árvore. Atum de cebolada enlatado, de origem tailandesa, com tomate, pepino, pimento e mais cebola acabada de cortar. Após a refeição, chega o tractor, uma oferta italiana ao Projecto de Desenvolvimento das Nações Unidas. Com um gancho forte a puxar o camião, as rodas do tractor patinam, mas o pesado nem se mexe.

Apesar de não trabalhar para nenhuma entidade pública queniana, John O'Singi, de 46 anos, coloca ramos de árvore no que resta de caminho paralelo ao camião para que outros veículos possam circular. É agricultor e produz cerca de 20 sacos de milho por ano. "Deus vai ajudar-nos", diz aos passageiros apeados. Tem cinco filhos e não fuma nem bebe bebidas alcoólicas por motivos religiosos. Frequenta a igreja de Lol Gorian duas vezes por semana. Pergunto-lhe se já foi ao estrangeiro, talvez por ele ter um boné do Inter de Milão na cabeça. "Não, mas se Deus quiser que vá, estarei pronto para ir", responde. Quer saber o meu nome e número de telefone e, depois de lhos indicar, dá-me o seu número e diz-me que somos amigos.

Às 15h00 locais chega um segundo tractor, mas mesmo assim o camião teima em não se mexer. O atraso obriga a alterar os planos e chamar táxis (normalmente, há rede de telemóvel, tanto no Quénia como na Tanzânia). Em vez de acamparmos uma noite junto ao mítico lago Vitória vamos agora para um hotel. O nosso táxi, uma velha Toyota Corolla só com tracção dianteira, progride indiferente às condições do piso. Apenas as pancadas das pedras no fundo do chassis indicam que aqueles caminhos não são apropriados a este veículo, mas antes a modelos todo-o-terreno.

A certa altura, sem qualquer explicação, o condutor pára ao pé de um casebre feito de tábuas escuras. É um daqueles momentos em que todos sentem algum receio, mas ninguém confessa. Estão três idosos sentados à porta da construção, como numa aldeia alentejana em dia de estio. Um deles saúda-nos quando o condutor entra dentro de casa. Passados uns momentos, este sai com um garrafão plástico transparente com cerca de quatro litros de um líquido escuro. Aproxima-se do bocal do depósito de combustível e despeja o conteúdo lá para dentro com uma garrafa de plástico mais pequena a fazer de funil.

Dezenas de quilómetros depois, trocamos de táxis. Explicam-me que os primeiros não têm dignidade para entrar no nosso hotel, em Kisi. Mas o melhor mesmo é que a estrada é agora alcatroada. Nestas é necessário muito cuidado porque, como as vias não têm passeios, as pessoas usam a berma para caminhar ou até mesmo a estrada propriamente dita. Outra especialidade local são as Toyota Hiace a circular sempre com muitos mais passageiros do que a lotação máxima e com o peculiar de ainda levarem um passageiro extra pendurado no exterior.

À chegada ao hotel, uma passageira pede a um companheiro mais corpulento para este retirar uma "lagartixa" da parede do seu quarto. "Preferia quantas vezes mais a tenda!", brada. Resultado: a "lagartixa" - na verdade uma osga -, não teve um final feliz. À noite, depois do jantar, Cristina já tinha sido libertada graças a muito trabalho braçal para retirar a lama.

Tanzânia e descida à cratera de Ngorongoro

No dia seguinte, entramos na Tanzânia. O visto custa 50 dólares norte-americanos (o dobro do Quénia). Para usar a "casa de banho" do posto fronteiriço é preciso pagar 200 xelins tanzanianos (cerca de 13 cêntimos ao câmbio daquele momento) para utilizar basicamente um buraco no chão. Não há água corrente nem lavatório e as mãos lavam-se num vaso com água e sem sabão. Os xelins locais são-nos vendidos por um homem que sobe ao camião com maços de notas. Prefere dólares, mas também não enjeita euros.

Avançamos para o interior da Tanzânia e almoçamos nas margens do lago Vitória, o maior de África, perto de um lodge dirigido por um casal holandês. Um mergulho nas águas do Vitória seria bastante bem-vindo, mas a holandesa, que fala espanhol, elucida-nos por que é que tal não é possível. "Porque há crocodilos, hipopótamos, sanguessugas e bactérias." Ok, não precisa de dizer mais nada. Mesmo assim valeu a pena ver aquela paisagem, não muito diferente de algumas áreas lacustres da zona de Aveiro, por exemplo, e com as inúmeras andorinhas a esvoaçar a reforçar ainda mais essa sensação de familiaridade.

A próxima etapa é entrar no Parque Nacional do Serengheti pelo acesso de Ndabaka. Aqui podemos percorrer quilómetros de paisagem sem animais. Também vemos várias queimadas, ateadas propositadamente para servirem como corta-fogos.

Mas quando os animais surgem torna-se bastante compensador e o Serengheti mostra por que é um dos santuários mundiais da vida selvagem. Cerca das 9h30 locais, avistamos uma leoa à sombra de uns arbustos. A poucos metros do nosso camião, o felino decide ir beber água, muito calmamente, a um pequeno ribeiro e, pelo caminho, satisfaz necessidades fisiológicas. Percebemos então que esta leoa lidera um grupo composto por mais três leoas e que está a ser monitorizada pelas autoridades do parque, como indica a coleira que traz ao pescoço.

No Serengheti existe tanta vida selvagem que, talvez devido ao acumular de quilómetros em cima do camião, acabamos até por prestar pouca atenção quando repetidamente avistamos elefantes, girafas ou até hipopótamos. Já ao final da tarde entramos no Parque Nacional de Ngorongoro e, à medida que o caminho sobe, a paisagem tem mais vegetação e o verde é mais viçoso e escuro, um pouco à semelhança dos Açores. Vamos em direcção ao Rhino Lodge - o mesmo é dizer da estadia mais confortável desta viagem.

Caçar leões e elefantes

No balcão do lodge, Vincent, um tanzaniano de 39 anos, que trabalha como guia turístico com o seu próprio Toyota Land Cruiser, expressa o seu desalento sobre a condição pátria. "Era suposto sermos um país rico, mas somos um país pobre." Para além do turismo, a Tanzânia tem diamantes e produz café, milho, arroz, bananas, chá e sisal.

Outra fonte de rendimento é a caça, autorizada fora das reservas nacionais. Algo que alemães e americanos apreciam, entre os meses de Julho e Novembro. E que, naturalmente, não está ao alcance de todos. Só a licença de caça custa 750 dólares, a que se soma o preço de cada peça de caça abatida. Vincent garante que um leão custa 12.000 dólares e um elefante 24.000.

Tem dois filhos. O mais velho tem 24 anos e estuda no Quénia "porque é mais barato do que na Tanzânia", onde estuda o mais novo, de 12 anos. Vincent também estudou o que deveria bastar para ser professor, mas não conseguiu. Já esteve no Quénia e no Zimbabué e não rejeita a possibilidade de voltar a emigrar. "O meu plano é ir para o estrangeiro, Europa ou Estados Unidos, para ver como a vida é melhor lá." A sua mulher é enfermeira e Vincent revela que o rendimento mensal de ambos não chega a 200 dólares.

Este guia interroga-se como é possível que, no século XXI, ainda existam os Tatoga, ou homens dos arbustos, que, segundo a sua descrição, não constroem casas e vivem em rochedos ou debaixo das árvores. Nunca vêem brancos e, se avistarem um, fogem. Bebem água das chuvas ou do orvalho nas árvores e comem bananas, raízes e carne crua de animais selvagens.

Na opinião de Vincent, a Tanzânia "precisa de construir fundações fortes" e "tem de apostar na educação". O que não será a melhor receita para o curto prazo porque os tanzanianos mais instruídos acabam por emigrar à procura das oportunidades de que não dispõem no seu país. Nomeadamente, para a África do Sul.

A nossa viagem aproxima-se do fim e na manhã seguinte vamos descer à cratera de Ngorongoro, uma área com tanta quantidade e variedade de animais que daria para organizar inúmeras Arcas de Noé. Não vamos de camião porque, dizem-nos, a descida não é apropriada para pesados. O grupo divide-se assim por dois Toyota Land Cruiser cujo tecto pode ser elevado para que os passageiros filmem, fotografem ou simplesmente se deslumbrem com os animais que a natureza concentrou em Ngorongoro.

No entanto, algo surpreendentemente, há alguns camiões a levantar pó na cratera e que participam na construção de mais uma estrada em terra batida para servir propósitos turísticos. Nada que perturbe um bando de flamingos com as patas dentro de água. Na cratera há tantos jipes a observar animais que os bandos mistos de gnus e zebras já nem se espantam com a sua presença. Estes quadrúpedes perceberam que a união faz a força e assim juntaram a grande capacidade de audição de uma espécie à boa visão da outra para melhor se defenderem dos predadores.

E o que é que quase dez jipes juntos significam na cratera de Ngorongoro? Isso mesmo: leão. Neste caso, não apenas um, mas dois reis da selva em atitude tão preguiçosa que, não fosse o tamanho, mais pareceriam dois gatos ao sol. Mas os bónus de Ngorongoro continuaram e ainda foi possível observar um rinoceronte, ao longe, e houve até quem afirmasse ter visto um leopardo de fugida.

No caminho para o aeroporto de Arusha, a obrigatória paragem num ponto em que era possível observar o cume do Kilimanjaro, naquele momento não completamente coberto por nuvens.

A somar ao cansaço da viagem esperavam-nos mais cerca de oito horas de avião até voltarmos a pisar solo holandês. O corpo também clamava por um banho para expulsar a poeira entranhada. Mas o que é que isso interessa perante a grandiosidade de termos vivido uma experiência única e provavelmente irrepetível? A Fugas viajou a convite da Agência Abreu

Preços, partidas e conselhos de viagem

A viagem Memórias de África Quénia e Tanzânia não tem, a priori, nenhuma limitação etária, mas aconselha-se que os participantes apresentem, no mínimo, uma forma física razoável e estejam dispostos a aceitar situações de algum desconforto. A Fugas participou numa versão encurtada desta proposta da Agência Abreu (metade, oito dias), em que o mais sensato seria, por exemplo, regressar durante um fim-desemana para o corpo recuperar o seu ritmo habitual.

No entanto, como referiu a guia Carmen, no modelo completo de viagem - 16 dias -, os ritmos das deslocações são mais pausados, o que permite acordar alguns dias mais tarde - 6h30 em vez das 5h30 locais -, e até algumas sestas na etapa do Serengheti. Por outro lado, a versão completa termina com quase quatro dias na ilha de Zanzibar, o que pressupõe já algum retemperar de forças.

Participar nesta viagem permite um inesquecível e aproximado contacto com a vida selvagem. No reverso da medalha estão, por exemplo, os constantes solavancos do camião (com capacidade para 19 viajantes) que, ao cabo de centenas de quilómetros, acabam por afectar o físico dos participantes, as deficientes condições sanitárias dos acampamentos ou a poeira que se entranha e não sai com simples palmadas. O facto de os dias começarem frios e depois surgir um sol intenso, que queima a pele, ou as contra-indicações da medicação que se deve fazer para evitar a malária, também contribuem para testar as capacidades físicas de cada um.

Memórias de África Quénia e Tanzânia custa 2459 euros por pessoa - conforme consta no site da Internet da Agência Abreu -, valor a que acresce o pagamento local de mais 280 euros e de 550 dólares norte-americanos. As partidas mais próximas serão nos dias 17,18, 20 e 31 e, já em Setembro, a 3, 5, 12, 14 e 17.

Para além da consulta do viajante, em que o mais provável é ser-lhe recomendada a profilaxia da malária, a agência de viagens faz uma série de recomendações ao nível de equipamento, "que deverá ser o mínimo necessário e imprescindível". Dentro desta premissa conta-se uma muda completa de roupa de abrigo adequada para o clima de Inverno, incluindo polar e corta-vento. Sandálias, chinelos, botas ligeiras/ calçado do tipo todo-o-terreno, mochila pequena para objectos pessoais, um saco de cama adequado para temperaturas de 5º e 15º, roupa cómoda e ligeira, impermeável, repelente antimosquitos e lanterna frontal tipo "mineiro" são outros artigos imprescindíveis.

A lista continua com cantil (min.1 litro), chapéu, óculos de sol, protector solar com índice de protecção alto, binóculos, máquina fotográfica ou de filmar, toalhitas húmidas e produtos de higiene, toalha pequena, papel higiénico para os dias de acampada livre, dinheiro pessoal em dólares e euros, cartão de crédito (para imprevistos), ainda que somente poderá ser usado em pontos concretos do itinerário (como Nairobi e Arusha).

Para além de uma mala principal, o restante equipamento e o resto da bagagem terão de ser levados apenas numa bolsa ou numa mochila não rígida. Especialmente em veículos todo-o-terreno, e nas avionetas que farão a ligação à ilha de Zanzibar, não existe espaço adequado para volumes que não sejam moldáveis. Deverá ainda ter em conta que o camião também apresenta um espaço limitado e, nesse sentido, aconselha-se uma mala principal com as medidas de 80cm x 60cm x 40cm. Para comodidade do grupo em geral e do próprio viajante, não deverá ultrapassar os 60 litros (15 kg) porque nos voos internos é este o peso limite. Nalguns pontos da viagem será possível lavar roupa.

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