Fugas - Viagens

Enric Vives-Rubio

Um dia com os gigantes de pedra imunes ao tempo

Por Nicolau Ferreira

Nicolau Ferreira quis ser rocha, paisagem. Permanecer em cada lugar. Mas no Geopark Naturtejo, na Beira Baixa, há trilhos para caminhar e saltos de quilómetros para ver o próximo monumento natural.

As rochas pediam mais horas, não nos deixavam recuperar o fôlego. Ainda assim, o geólogo Carlos Neto Carvalho puxava-nos para a próxima etapa que tinha metodicamente traçado. Nós seguíamos, a olhar para trás, com medo de perder as memórias que tinham acabado de ficar registadas: estratos de rochas recheados de marcas de vida, caos de blocos graníticos, uma garganta de escarpas no meio do rio Tejo. Na Beira Baixa, a paisagem geológica é monumental. O Geopark Naturtejo cobre uma área de 4600 quilómetros quadrados, abrange muitos locais que podem ser visitados e cada espaço oferece várias experiências. Um dia, mesmo que seja dos soalheiros e longos que Maio traz, não chega para sairmos da contemplação e passarmos a fazer parte da paisagem. Um dia é pouco.

Mas começámos cedo. Fugimos da A23 e entrámos nas estradas que unem as aldeias da Beira Baixa ainda não eram nove horas da manhã. O primeiro destino foi Penha Garcia, freguesia do concelho de Idanha-a-Nova, já na raia. No Largo do Chão da Igreja, encontrámos o geólogo de 34 anos que trabalha na câmara de Idanha-a-Nova, e faz a coordenação científica com a empresa Naturtejo, que gere o Geopark, a que também pertence.

Carlos diz que a memória dele já não é o que era, mas tem uma longa aula de ciências da terra preparada na ponta da língua. Sabe a história dos últimos 500 milhões de anos da região como se tivesse vivido tudo.

A rota dos fósseis em Penha Garcia foi o primeiro percurso que fizemos. "Há 480 milhões de anos estávamos no [período] Ordovícico, este oceano situava-se no círculo antárctico e envolvia o continente Gondwana", explicou Carlos e apontou para Sul, onde vimos uma planície que entra no Alentejo. Tentámos adivinhar um mar recheado de trilobites, um grupo de artrópodes que tinham uma carapaça estriada, muitas patas, rastejavam no fundo do mar e deixaram marcas nas rochas da região.

Subimos a aldeia em direcção ao castelo templário, construído em 1256. Parámos num miradouro que fica no patamar antes da subida para as ameias. Um vento fresco varria o local. À nossa frente estava a barragem de Penha Garcia alimentada pelo rio Pônsul. O caudal do rio corre depois por um vale, onde se vêem moinhos restaurados. Na encosta, do lado esquerdo, está parte da rota - um caminho empedrado que desce em S e atravessa o rio. Os montes à nossa frente são percorridos por estratos rochosos quase na vertical, originados pela acumulação de sedimentos no antigo mar. Parecem feridas na paisagem. São nestes estratos de quartzito que se encontram os icnofósseis. Antes, pensava-se que eram marcas de cobras na rocha, mas são o registo invertido dos caminhos feitos pelas trilobites. Existem milhares. "Conseguimos perceber como é que os animais ocupam o espaço ecológico e como é que se comportam", explicou o geólogo.

Subimos até ao castelo, para voltar a descer em direcção ao rio no caminho em S, que existe desde o século XVI. Carlos mostra onde se pode fazer slide, rapel, escalada e pára à frente da Laje das Cobras Pintadas, uma rocha com vários rastos de trilobites. A lenda da região conta que "na noite de são João aparece a moura encantada [presa na laje], que penteia os seus longos cabelos louros e guarda um tesouro para o homem que a beijar." O beijo quebra o encanto.

Atravessámos o rio e perguntámos pelo menos quatro vezes se a água é pura, antes de fazermos da mão uma concha e dar dois goles. Depois voltámos a passos largos para aldeia - "já estamos atrasados para o almoço em Monsanto", avisou-nos o geólogo.

De Tejo no Tejo

Abandonámos Penha Garcia de carro. Aqui, faz-se tudo de carro. Os percursos delineados pela Naturtejo são normalmente circulares, demoram não mais de três horas e terminam onde começaram, nas povoações. "As pessoas andam cada vez menos a pé", constatou Carlos.

Em 15 minutos chegámos a Monsanto, uma aldeia num cimo do monte com 758 metros de altitude. Em volta, um caos de blocos de granito. "Monsanto é um marco na paisagem", diz o geólogo. É verdade. Mas é a mesma paisagem que nos tira a fala, vista do cimo de Monsanto. E o cimo de Monsanto é por toda a parte. No parque de estacionamento logo à entrada, com a aldeia de Salvador e os montes à nossa frente. No restaurante Petiscos e Granitos que tem uma vista inacreditável até à serra da Estrela. No topo, junto ao castelo.

Monsanto é famosa por ser a "aldeia mais portuguesa de Portugal", definida por Salazar devido à "sua extrema pobreza bem relatada pelo [médico e escritor] Fernando Namora", explicou Carlos. Mas o que mais chamou a atenção é a sua simbiose perfeita com o relevo. Tudo está talhado na pedra e há vezes em que temos dúvidas se são as casas que nascem do granito se são os blocos a brotarem das casas.

A caminho do castelo, na Rota dos Barrocais, fomos reparando nos blocos imensos, arredondados, soberbos na paisagem. Os blocos não podem cair? Carlos aponta para as massas brancas solidificadas, fixas entre os pedregulhos, que são monitorizadas constantemente e quando estão rachadas indicam movimento das rochas.

Parámos no cimo, perto do castelo. Rodeados pelas ruínas da aldeia semi-desaparecida de São Miguel. A mais impressionante talvez seja a igreja matriz sem telhado, mas com uma portada trancada e paredes graníticas do século XII ou XIII. O contexto cultural intensifica as experiências das rotas. "O Geopark tem uma base científica e evolucionista, mas também olha para a sociobiologia das comunidades", refere o geólogo.

Subimos a um bloco granítico - Monsanto exige-nos isso - e ficámos com uma imensidão à nossa frente. Ao longe vimos Penha Garcia, à nossa frente a planície com os 500 milhões de anos de história. Foi com essa memória que percorremos os 84 quilómetros de distância para chegarmos a Vila Velha de Ródão, junto ao rio Tejo, a sul de Castelo Branco.

Às 17h30 entrámos no pequeno catamarã chamado Tejo, para descer o rio e passar pelo monumento natural de Portas de Ródão. Fomos levados naquele caminhar lento, típico dos barcos, em que o rio se amplia constantemente para ficar para trás. Aproximámo-nos das escarpas que alcançam os 170 metros de altura e afunilam o rio.

Do lado direito, na encosta, estava uma rara cegonha-preta em pé, no ninho. Não a perdemos do olhar até que atravessámos as Portas de Ródão e o rio se abriu, surpreendente. Ficámos mais uma vez sem fôlego. "Durante 2,6 milhões de anos, o rio Tejo foi escavando esta garganta de quartzito", explicou o geólogo.

Voltámos à vila a tempo de uma última paragem na torre templária plantada no cimo da "porta direita", no rio Tejo. Nisa fica do outro lado, num território povoado por javalis e veados. Olhámos para as escarpas, para o curso do rio. Ouvimos um comboio passar, enclausurado nas vertentes. De repente, no céu, uma sombra plana - a cegonha-preta. Saiu do ninho, das rochas, mas continuou a ser paisagem, com tempo, sem esforço. Ao contrário de nós.

Como ir

Castelo Branco é o epicentro do Geopark. A melhor forma de chegar de carro para quem vem do Porto é entrar na A1, sair para a A25 e entrar na A23. Quem vem de Lisboa deve apanhar a A1 e depois continuar pela A23. Quem vem de Évora deve apanhar a IP2 para depois convergir também na A23.

Onde ficar

Hotel Rural da Poupa
6060-454 Rosmaninhal
Tel.: 277 470000
herdade.poupa@gmail.com
Virado para o Parque Natural do Tejo Internacional, no concelho de Idanha-a-Nova. Quarto de casal a 100 euros de domingo a quinta e a 110, sexta e sábado, com o pequenoalmoço incluído.

Hotel Tryp Colina do Castelo
Rua da Piscina
6000-453 Castelo Branco
Tel.: 272 349280
Quarto de casal a 70 euros.

Casa do Forno
Rua de S. João
6060-501 Salvaterra do Extremo
Tel.: 277 455021; 965620092
No concelho de Idanha-a-Nova.
Quarto de casal entre 45 e 55 euros.

O que fazer

Durante as três semanas em que se comemoram os Geoparks, entre 22 de Maio e 13 de Junho, existem uma série de actividades como seminários, conferências e workshops. No terreno, durante estas três semanas, pode-se fazer geocaching nos geomonumentos do parque. A 6 de Junho existe um passeio de bicicleta aos geossítios do Orvalho, em Oleiros. Dia 12 de Junho vai haver um especial Rota dos Fósseis - Sonhos, Vivências e Mistérios, em Penha Garcia, que junta a realidade geológica com os mitos locais. As rotas tradicionais são outra opção: os trilhos da mina de ouro romana do Conhal do Arneiro, perto do monumento natural de Portas do Ródão. A rota dos fósseis em Penha Garcia ou a rota dos barrocais em Monsanto. Quem for mais adepto de exposições pode deslocar-se a Castelo Branco para ver o DinoExpo, que tem vários esqueletos de dinossáurios em tamanho real.Para ver toda a programação das três semanas, conhecer melhor as actividades, marcar visitas acompanhadas ou comprar pacotes de actividades pode aceder ao site www.naturtejo.com ou telefonar para o 707200065.

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