Fugas - Viagens

"Como Eu Vi Todos os Países do Mundo (Menos Um)"

Conhecer o mundo com José Megre ao volante

Por Luís Francisco

Ler "Como Eu Vi Todos os Países do Mundo (Menos Um)" é viajar pelo planeta à boleia de José Megre. A Fugas sentou-se no lugar do pendura e entregou o volante ao homem sem fronteiras

É quase um lugar-comum dizer-se que a vida é uma viagem. Mas há pessoas a quem esta definição assenta como uma luva e José Megre é, certamente, uma delas. O português que cirandou pelo mundo num misto de viajante e aventureiro morreu há um ano, mas continua, como fez em vida, a transportar-nos até paragens longínquas, mostrando-nos lugares mágicos e gentes únicas. A diferença é que agora o faz em livro.

Ao longo de mais de 500 páginas, "Como Eu Vi Todos os Países do Mundo (Menos Um)" é o relato de uma vida itinerante, que teve capítulos ditados pelas exigências da sua actividade profissional (participou no Paris-Dakar como piloto e organizou várias expedições em todo-o-terreno, por exemplo), mas que se alimentou, sobretudo, da feroz necessidade de conhecer cada vez mais, até o mundo inteiro se tornar a sua casa. Escrito quando a doença já lhe tolhia a capacidade física, é um testemunho vivo do espírito e da irrequietude de um homem sem fronteiras.

Em 66 anos de vida, José Megre visitou todos os países soberanos do planeta excepto um, o Iraque, tornado inacessível pelos acontecimentos das últimas décadas. Um país que, curiosamente, poderia facilmente ter conhecido em ocasiões e viagens anteriores. Não o fez e perdeu a janela de oportunidade que ele próprio soube aproveitar em várias outras ocasiões - como aconteceu no Afeganistão, em 2006, fechado aos turistas logo após a sua passagem. E também na Birmânia ou na Coreia do Norte, só para dar mais dois exemplos.

Foi dos primeiros turistas a entrar em Timor-Leste, o que lhe valeu ter o passaporte validado não com o carimbo do país, mas sim das forças da ONU que zelavam pela segurança do território. No Butão, estima, terá liderado a primeira caravana automóvel a entrar no país, em 2001, no âmbito da expedição Terrano II Tibete.

De Portugal ao Haiti, o último estado soberano que visitou, em 2008, já numa altura em que assumira a missão de completar a lista de todos os países da Terra, José Megre nunca se contentou com a formalidade de carimbar o passaporte. Pelo contrário: por terra (na maior parte dos casos - e muito naturalmente, dado tratar-se de um apaixonado pela competição automóvel), por ar e por mar, ou de comboio, quis sempre conhecer realmente as terras que visitava.

Relatos de aventura

No livro e no seu site, a listagem dos países vem acompanhada pelos quilómetros percorridos e pelas estadias. Tudo somado, foram mais de 2,8 milhões de quilómetros percorridos no interior dos estados que visitou e onde passou 1759 dos dias da sua contagiante vida (e isto representa quase cinco anos fora de casa). Esteve em mais de metade das divisões administrativas de todos os países do mundo (quase 1900 das cerca de 3800 existentes) e cumpriu todos os grandes trajectos de cada continente, excepto uma travessia integral do México, outro dos (poucos) objectivos que a doença deixou por cumprir.

Ao longo do livro, Megre fala dos locais e das pessoas. Evita grandes reflexões sobre si e as suas emoções mais profundas, talvez por pudor, talvez por estar convencido de uma coisa que uma vez lhe disseram: "Escreves mal, mas contas bem!"

É verdade que nem sempre o bom contador de histórias emerge nesta necessidade, quase enciclopédica, de fazer um resumo de cada um dos países visitados. As primeiras impressões são mesmo descoroçoantes, porque o autor alinhou os continentes pela ordem em que foram concluídos e à cabeça aparece a Europa. É um continente rico e cheio de contrastes, mas onde já muito pouco cabe na noção de aventura. Torna-se, por isso, fastidioso ler as curtas notas dedicadas à maioria dos países europeus, sem pormenores, sem novidade.

Mas as coisas mudam logo a seguir. Até graficamente: depois de mais uma sucessão de entradas relativamente curtas sobre uma série de países de África (o segundo continente a ficar "completo"), o fundo das páginas muda de branco para preto. O título não engana ninguém: As Grandes Viagens em África. E é nestas páginas de fundo negro que iremos encontrar, ao longo do livro, os grandes relatos de aventura neste e noutros continentes, as odisseias por pistas impossíveis e fronteiras corruptas, o contacto próximo com locais e pessoas cheios de histórias para contar.

Viajar pelos sete continentes é, também, contactar de perto com a incrível herança histórica dos portugueses. Monumentos, nomes, hábitos. A marca de Portugal no mundo continua por aí, à espera de quem a queira encontrar. Foi o que fez José Megre, um português cuja filosofia de vida esteve bem à altura dos seus antepassados da era dos Descobrimentos.

Coleccionador inveterado

Megre não coleccionava carimbos no passaporte, mas, caramba, coleccionava quase tudo o resto! Seguindo os seus relatos, podemos vê-lo a comprar miniaturas de veleiros na Maurícia - "Fiquei de tal maneira 'vidrado' que comprei nada mais nada menos que 18 modelos de barcos diferentes, que mandei para Portugal de avião". Chegaram bem, mas... "As embalagens eram de tal forma grandes que tiveram de ser desmontadas na rua, pois não cabiam na porta do prédio!"

Já tínhamos sido avisados na página 29, quando o autor confessa, em Moscovo, a propósito das matrioscas e dos jogos de xadrez satírico-políticos, que há "um sem-número de curiosidades" que tem "a mania de juntar"... Por isso não surpreende que tenha "enchido uma mala com vários modelos" de automóveis, feitos a partir de latas de refrigerantes por hábeis mãos de Madagáscar.

Na Etiópia, foram banquinhos de madeira do povo Banna. Na Indonésia, "umas gaiolas lindas" num mercado de Jacarta e "uma série" de miniaturas de templos em Bali. E lá teve de comprar mais duas malas... No Afeganistão, alargou a colecção de jogos de xadrez com dois exemplares em lápis-lazúli.

Só por uma vez o instinto do coleccionador não levou a melhor. Chocado com o facto de se venderem chapas de identificação de soldados americanos (um dólar) e condecorações vietcongue (dois dólares) dos tempos da guerra do Vietname, Megre não alimentou o mercado ambulante das ruas de Ho Chi Minh City. Mas, já que falamos de recordações de guerra, anote-se que só mesmo a resistência do proprietário impediu o português de trazer para Portugal um tanque japonês. Foi na Micronésia.

Com tudo isto e mais as pequenas coisas que se trazem de qualquer viagem (como as primeiras notas da Eritreia, acabadinhas de imprimir), resta-nos imaginar como seria um museu de viagens de José Megre...

As pessoas e os sítios

Mas as viagens são, também, pessoas. Ilustres, como Jorge Amado, com quem se cruzou na esplanada de um bar de Salvador da Bahia, ou actores de Hollywood, fazendo as suas vidinhas em Los Angeles. Mas, principalmente, os anónimos. O casal de portugueses que chegou à Tanzânia de carro, via Ásia, e que tomava conta de um hotel longe de tudo. Os guardas de um forte português no Gana, chamados Cecília e Manuel. A jovem iraniana Sherazade, que os guiou na cidade de Esfahan e no fim lhes implorou que a tirassem do país...

Mas também Rebecca, 25 anos, norte-americana do Alaska: "Foi uma experiência inesquecível sermos conduzidos por aquela jovem empedernida e completamente instruída a não passar das 40-50 milhas ao longo dos 900 quilómetros da Dalton Highway. Foi um verdadeiro trauma. A Rebecca era totalmente inflexível, radical e by the book. Dramático! E não me deixava fumar. Parava e tocava a buzina em todos os stops, sem qualquer trânsito, e metia a segunda em todas as descidas!"

Adiante. Observador atento, José Megre anota características das tribos africanas com que se cruza, pormenores de comportamento que variam nas antigas repúblicas soviéticas da Ásia, traços físicos dos nativos das ilhas do Pacífico. Nota a reter: as mulheres da zona do Corno de África são as mais belas do continente.

Não foi (só) por isso que o intrépido viajante elegeu a Etiópia como um dos "mais preservados e originais" países africanos. As gentes, as paisagens e os monumentos deixaram-lhe uma impressão muito forte, tal como aconteceu, noutras paragens, com o Iémen, o Butão ou a Samoa. As fotos que ilustram profusamente o livro explicam uma parte deste fascínio. O resto... bom, o resto, só indo lá.

E sair do sofá não é apenas uma questão de estar disposto a gastar tempo e dinheiro. Há que ter a filosofia certa, não desesperar, aproveitar as oportunidades. No livro, Megre relata incontáveis desventuras nas fronteiras, às mãos da burocracia e da corrupção, mas também incidentes mais graves, ameaças de homens armados, rajadas de metralhadora e explosões. O mundo não é um lugar tranquilo.

Até por isso será preciso ter, também, um bocadinho de sorte. Estar em Nova Iorque apenas duas semanas antes dos ataques às Torres Gémeas ainda parece banal, mas passar pelo rancho de Waco, Texas, e 48 horas depois acontecer ali o massacre da seita dos davidianos, isso já faz mais impressão... Megre viajou num helicóptero da Força Aérea Peruana que se despenhou pouco tempo depois, matando todos os ocupantes, e no Pacífico ouviu a notícia da queda do avião que haveria de apanhar no dia seguinte.

Sim, ele enganou a morte várias vezes. Nas areias dos desertos que adorava mais do que tudo e nas lamas das assassinas estradas dos Andes, nos gelos dos Himalaias e nas sufocantes florestas tropicais. Seguiu sempre em frente. Quando os tratamentos ao cancro de pulmão já o enfraqueciam, ainda arranjou força para visitar alguns dos países que lhe faltavam e para ligar o Alaska a São Francisco em quatro rodas.

Em Fevereiro de 2009, no epílogo do livro, escreveu: "Se isto 'virar' e eu recuperar, publicarei uma separata com o que tiver conseguido fazer, especialmente o Iraque e o México Norte-Sul." Já não conseguiu. O relato das suas aventuras foi a última viagem de José Megre. E, como sempre, ele leva-nos consigo.

Como Eu Vi Todos os Países do Mundo (Menos Um)
José Megre
Ed. Accenture/Megre Motorsport
544 páginas 46 euros
www.josemegre.com

--%>