Fugas - Viagens

O artista plastico Querubim Lapa no seu atelier

O artista plastico Querubim Lapa no seu atelier Pedro Cunha

Lisboa (desconstruída) por Querubim Lapa

Por Luís Maio

É o artista com mais obras em espaços públicos do país e nenhuma cidade tem tantas como a capital. Nome crucial do nosso modernismo, tem 84 anos e continua activo e a repensar a cidade. Continua, aliás, com genica mais do que suficiente para servir de cicerone à Fugas, numa visita guiada ao essencial da sua obra

O azulejo e a cerâmica foram desqualificados como "artes menores" pelo Estado Novo. Isto nos anos 40, precisamente na mesma altura em que sofriam uma completa revolução, levada a cabo por toda uma nova geração de artistas nacionais. Alguns foram depois reabilitados e convidados a intervir em espaços públicos, mas o preconceito nunca foi totalmente erradicado - o que em parte explica o abandono e a destruição que têm vitimado muitas dessas obras. Acaba, assim, por ser com alguma admiração que vemos turistas a fotografar fachadas de prédios ou paredes de metro pelas quais passamos sem reparar.

Mais uma razão para contrariar o preconceito e promover o património modernista português à atracção turística que merece ser. Nada melhor nesse campeonato que começar por Querubim Lapa, uma das figuras chave da azulejaria e da cerâmica nacionais do último meio século, e pela sua Lisboa, a cidade onde mais interveio ao longo da sua extensa carreira.

O que descobrimos através das obras e das palavras do mestre é outra cidade, ou melhor, toda uma série de espaços de modernidade que são fantásticos em Lisboa, mas a que raramente os próprios lisboetas prestam atenção. Só um aviso, antes de avançarmos: dispensámos a usual biografia prévia, na medida em que o artista se vai revelando através da revisão cronológica das suas obras principais.

As Meninas e Os Meninos, Escola Querubim Lapa

A primeira obra maior de Querubim Lapa teve de saltar vários obstáculos políticos para ver a luz do dia. Rebobinando: em meados dos anos 50, a Câmara Municipal de Lisboa lançou-se na construção de uma nova rede de escolas primárias. Para marcar a diferença em relação ao figurino monolítico das escolas semeadas pelo país inteiro, convocou um escol de modernistas desalinhados, incluindo Abel Manta, Dias Coelho, Júlio Pomar e o próprio Querubim. Era uma boa proposta de emprego, a chatice é que vinha do lugar errado. Só depois de uma noitada de discussão os artistas decidiram aceitar colaborar, vaticinando, e bem, que as suas obras haveriam de resistir à ditadura que as encomendara.

A Querubim calhou decorar o muro separador dos recreios de rapazes e raparigas, na Escola Primária de Campolide. Concebeu para o efeito um painel de cimento colorido, que submeteu ao arquitecto Raul Lino, na altura encarregado de apreciar as obras de arte a integrar em edifícios públicos. Recorda Querubim: "O Raul Lino chamou-me ao gabinete dele no Terreiro Paço e disse-me: 'Isto está muito bem desenhado, mas você pôs aqui umas meninas a apanhar borboletas. Ora isto é para uma escola primária, deve ter um fim pedagógico. Meninas a apanhar borboletas não pode ser, é melhor fazer outra coisa'. De maneira que desenhei uns miúdos com livros, uma composição estética com um certo lirismo e em azulejo, que foi logo aceite".

Hoje, Querubim considera que, em 1956, quando concluiu os dois longos painéis rectangulares que ganharam a designação de As Meninas e Os Meninos, já se tinha demarcado do neo-realismo. Reconhecem-se, no entanto, nesta obra claramente figurativa, certos traços identitários dessa estética, seja nas formas maciças das figuras, seja na representação das crianças descalças e de calças remendadas. Traços que não passaram despercebidos aos censores, como também lembra o artista: "Apareceu lá um PIDE a perguntar por que é que os miúdos estavam descalços. Eu respondi: 'Bom, estão descalços porque os sapatos são caros'".

Passado meio século, ou seja, em 2006, Querubim recebeu nova encomenda para a escola de Campolide. Desta vez, no entanto, realizou dois painéis abstractos, quase a antítese do modelo figurativo dos primeiros. Ele justifica: "Passaram 50 anos, eu tinha de andar, tinha de estar já a pensar de outra maneira".

Oliveira Martins, então ministro da Educação, gostou do contraste, tanto que anunciou a Querubim a intenção de dar o seu nome a uma nova escola secundária. O artista contrapôs, no entanto, que preferia uma escola primária, porque assim os miúdos aprendem a escrever correctamente o seu nome, coisa que os graúdos parecem ter mais dificuldade em fazer. Foi assim que a escola primária de Campolide, o espaço público em que o arco da obra do artista melhor se retrata, ganhou o nome de Querubim Lapa.

Loja das Meias (virtual)

Esta é uma daquelas peças que já foi à vida e pela qual Lisboa deveria vestir de luto. Data de 1960, ano em que a Loja das Meias entrou em remodelação, a cargo dos arquitectos Carlos Tojal, Manuel Moreira e Carlos Roxo, mais conhecidos pela estética pop que depois projectaram em várias casas comerciais da capital. Nesta estreia o chamado "Trio Maravilhas" contou com a colaboração plástica de Querubim, que assinou não apenas um grande painel lacado, à moda chinesa, mas também puxadores de porta exteriores e painéis mais pequenos, integrados à maneira de molduras artísticas. Este trabalho representou a sua descolagem definitiva do neorealismo, no sentido de uma figuração mais livre e sugestiva. Daí os embutidos de madrepérola no painel maior, a brilharem como se fossem seda, e as invocações da cosmética através de lábios, anéis e colares nos painéis inferiores.

A felicidade da solução de Querubim resultou em amizade com António Pedro, proprietário do estabelecimento. Uma amizade que acabou por se desfazer, no entanto, muitos anos depois. O relato é do próprio Querubim: "Lembro-me de o encontrar, já nos anos 90, e de ele me dizer: 'Olhe que vamos modificar a loja, mas preservamos a cerâmica'. Parece, no entanto, que ele quis passar o painel para o andar de cima e, como não cabia, mandou serrar a parte de baixo. Justificou-se com a dificuldade de tirar os azulejos, que estavam ligados com cimento e depois partiram-se. Eu achei que era um acto criminoso e até deixei de lhe falar. Sei que ele depois vendeu o espaço à Benetton e ainda me telefonou a perguntar por quanto é que podia vender o painel. Eu disse-lhe que estava tão chateado com ele que nem ia responder".

Sol Ardente, A Mexicana

"Comecei a modelar, porque o primeiro curso que tirei foi de escultura, mas a minha paixão era a pintura. Até costumo dizer que sou um pintor escondido atrás da cerâmica. A paixão pela pintura levou-me desde muito cedo a conjugá-la com a modelagem e foi isso que deu a cerâmica modelada. É o caso por excelência do painel Sol Ardente da Mexicana (1962)."

Assinada pelo arquitecto Jorge Chaves, esta casa de chá pastelaria no alto da Guerra Junqueiro é uma das obras maiores do nosso modernismo, conjugando linguagens arquitectónicas próximas do expressionismo e do cubismo. Respondeu-lhes Querubim desenhando um sol mexicano, um sol antropomorfizado de face amarela e raios verde-azulados, acompanhado por um cacto florido e estilizado, ambos relevados, sob um fundo de azulejos entre os quais também se destacam formas quadrangulares salientes. Hoje ainda a freguesia que faz salão nas mesas da Mexicana deve entreter-se a discutir que bicho terá mordido os proprietários para embarcarem em semelhante loucura.

Casa da Sorte, Rua Garrett e Rua Ivens

Querubim era já professor de cerâmica na Escola de Artes Decorativas António Arroio (onde leccionou durante 43 anos), quando decidiu juntar ao currículo o curso superior de pintura na ESBAL (diplomou-se em 1978). Boa parte dos professores tinham sido seus colegas em Belas Artes, mas o mais estranho é que para ganhar o diploma teve de tirar uma cadeira de cerâmica, na qual os docentes eram seus ex-alunos. Para ultrapassar o embaraço, Querubim propôs que a sua avaliação fosse feita na base do trabalho que acabara de realizar na loja da Casa da Sorte, no Chiado (1963). Outra maneira de dizer que se trata de uma das suas obras fundamentais, classificada como parte do património modernista de Lisboa (e isso significa que se o estabelecimento fechar, ou for remodelado, a peça deverá ser trasladada para o Museu da Cidade).

É uma das intervenções esteticamente mais arrojadas alguma vez impressa num edifício pombalino, efeito que em boa parte reconduz à singularidade da metodologia que lhe presidiu. Uma das muitas colaborações de Querubim com Conceição Silva, a loja da Casa da Sorte é um caso à parte, no sentido em que desta vez a arte não se submeteu à arquitectura, mas aconteceu o inverso. Na prática, Querubim começou por ir à Fábrica Viúva Lamego perguntar quais as medidas máximas que o processo de cozedura permitia. Responderam-lhe com um rectângulo de 20cm x 30cm e foi a partir desse módulo que o arquitecto definiu as superfícies murais, para evitar o corte das placas.

A lotaria não é um tema fácil de ilustrar, mas as placas cerâmicas que revestem a Casa da Sorte também não podiam ficar em branco. Nestas circunstâncias, o artista optou por uma composição à base números, evitando contudo quaisquer tentações esotéricas. O acento é colocado nas cores e se no exterior dominam os azuis e as cores claras, para aplacar o choque com o edifício pombalino, já no interior se verifica uma verdadeira orgia cromática. Como uma explosão psicadélica avant la lettre.

Brasília, Museu do Azulejo

Chorão Ramalho, arquitecto que já empregara Querubim noutros projectos, voltou a chamá-lo para a decoração da Embaixada de Portugal em Brasília (1976). Daí resultou outra ousadia, na verdade uma composição tão original que na época até motivou forte contestação por parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Pois o que lhe tinham encomendado eram dois painéis para os exteriores da embaixada e ele de facto entregou dois, mas reproduzindo a mesma composição azulejar, sempre na vertical, com a única diferença de serem colocados em posições inversas. Ou seja, é o mesmo painel, mas um, dependendo de qual se vê primeiro, está de pernas para o ar. O autor defendeu-se, porém, argumentando que é aí que reside a beleza da obra abstracta.

Abstracta e lúdica, uma vez que se trata de um reportório de rectas e diagonais, alternando com composições circulares, executadas com esmaltes azuis e amarelos intensos. É todo um jogo de contrastes subtis, invocando técnicas e motivos antigos, onde se pode divisar uma antecipação da pós-modernidade. Os painéis de Brasília persistem nas paredes da embaixada (sendo, por isso, pouco vistos), mas em contrapartida há uma reprodução da mesma composição à entrada do Museu do Azulejo, um dos mais visitados de Lisboa. Foi uma das obras oferecidas pelo artista àquela instituição, na sequência da retrospectiva da sua obra cerâmica aí levada a cabo, no contexto de Lisboa - Capital Europeia da Cultura 94.

Terraço, Avenida da Índia

Agora está fragilizado, quase abafado em publicidade, mas o Terraço já foi um dos painéis de azulejos modernos mais admirados de Lisboa. Começou com a oferta de uma sociedade farmacêutica à edilidade, então dirigida por João Soares. O político contactou o artista, que recorda: "Ele acabou por me propor aquele muro do recinto onde se recolhiam as camionetas do lixo, na Avenida da Índia. Eu fiquei logo um bocado desconfiado, a pensar que aquilo um dia vinha abaixo". Bom, a parede, que é muito antiga e se encontra bastante deteriorada, ainda está de pé, mas tudo o resto em volta foi demolido a pretexto de um projecto de Jean Nouvel que, afinal, nunca arrancou.

O certo é que o Terraço está por um fio e não há sequer possibilidade de transferi-lo para outro lado. A vantagem da azulejaria, no entanto, é que se pode reproduzir e é precisamente o que Querubim planeia fazer numa parede do novo edifício dos Serviços Sociais, que a edilidade abriu recentemente nas Olaias (2008). Faz sentido quando se trata de uma composição construída a partir de figuras avulsas e salpicadas (uma menina a brincar, um homem a tocar guitarra) que apelam a uma visão instantânea, não descritiva. O tipo de piscar de olhos que se realiza quando se passa em movimento, sem possibilidade de parar para ver, que é o que acontece na Avenida da Índia, ou nas Olaias, onde praticamente só se circula de carro. Claro que apostar nesta dinâmica de 'salpicos' é também recriar a história azulejar à medida da geração do clip e do zapping.

Estação de metro da Bela Vista e Escola António Arroio

Estas são as últimas intervenções de vulto de Querubim em espaços públicos da capital, o culminar do desenvolvimento de uma linguagem pessoalíssima, baseada na memória e na subversão da azulejaria portuguesa. Na Estação da Bela Vista do Metropolitano de Lisboa (1996), projectada pelo arquitecto Paulo Brito da Silva, coube-lhe todo o revestimento azulejar, um trabalho colossal, que ocupa desde os corredores de acesso até às bocas dos túneis onde transitam os comboios. Há figuras e paisagens diluídas, alternando com motivos abstractos e construções geométricas inverosímeis, pontos de partida ou de chegada para diagonais caprichosas, traçadas entre losangos que invocam o enxaquetado tradicional. Há manchas de cores vivas dispersas em grandes superfícies brancas, mas também figuras que projectam sombras e provocam a sensação de profundidade. Não será das decorações mais populares do Metropolitano de Lisboa é demasiado "fria" e conceptual para isso mas é o tipo de obra que exige tempo e diligência para se revelar como um condensado único da história do azulejo português.

O revestimento da estação da Bela Vista ganhou uma espécie de corolário na escola António Arroio. A linguagem de desconstrução da azulejaria é a mesma, a diferença é que na escola das Olaias se declina sob a forma de um painel vertical, ocupando toda uma parede do estabelecimento. À semelhança do que sucedeu na Avenida da Índia, este equipamento já foi demolido, mas o painel permanece de pé, apoiado numa base de cimento e vigas de ferro. O projecto de arquitectura não previa a manutenção da parede, mas o artista foi-se informar e acabou descansado: o painel da António Arroio está classificado como obra de interesse municipal, ou seja, é em princípio intocável. Resta saber o que falta para atribuir a mesma classificação ao conjunto da obra pública de Querubim Lapa, ou criar uma fundação dedicada à sua preservação.

O artista nos museus

Mais de uma dezena de obras cerâmicas de Querubim encontram-se em instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian, o Museu do Azulejo, o Museu Nacional de Arte Contemporânea e o Museu da Cidade de Lisboa, que as exibem (ou não) consoante a rotação das respectivas colecções permanentes. Não chegou, porém, a ter uma exposição individual no Museu do Chiado, porventura pelo (legítimo) pudor do ex-director Pedro Lapa, que é seu filho. A pintura é a outra grande paixão de Querubim e o artista está presentemente a preparar uma retrospectiva integrando mais de uma centena de quadros, a ser exibida no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira.

Mais dez Querubim em Lisboa e arredores

Azulejo de Padrão, Centro Comercial do Restelo, 1954
Coluna Cerâmica, Hotel Ritz, 1959
A Cultura, painel de azulejos, Reitoria da Universidade de Lisboa, 1961
Relevo cerâmico, Casino do Estoril, Estoril, 1967
Painéis de azulejos e baixo-relevo, Palácio da Justiça, 1969
A Ciência ao Serviço da Saúde, baixo-relevo, Instituto Ricardo Jorge, 1972
Painel de azulejos, baixo-relevo e coluna cerâmica, Hospital de São Francisco Xavier, 1973
Painel de azulejos, Banco de Portugal, 1986
Painel de azulejos, Rotunda das Olaias, 1999
Painel de azulejos, Museu José Saramago, Almada, 2009

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