Fugas - Viagens

Luís Maio

Kutná Hora - A Praga que não chegou a sê-lo

Por Luís Maio

Rivalizou com a capital checa até se lhe acabar a prata. Agora é um esplêndido museu a céu aberto com uma capela do bizarro por anexo. A Fugas sugere que vale mais que a excursão de um dia fora de Praga

Praga é daquelas cidades que criam vício. Mas, quando se ganha o hábito de frequentar a capital checa, é natural que se comece a olhar em volta. Ora, não é preciso muito para se descobrir que ali quase ao lado há outra Praga, que ficou pelo caminho. Ou melhor, uma cidade que se desenvolveu em paralelo, que em certa época até chegou a rivalizar em protagonismo e monumentalidade com a actual capital da República Checa. No entanto, por razões históricas, sobretudo vicissitudes de ordem económica, acabou por não lhe acompanhar o andamento.

Esta Praga que não chegou a sê-lo chama-se Kutná Hora e fica no coração da Boémia Central, a apenas 65 quilómetros da capital. A planta do centro urbano, irregular e labiríntica, aparentemente sem ordem alguma, é uma das peculiaridades que primeiro saltam à vista. Acaba por fazer sentido quando se atende às causas do seu desenvolvimento na Idade Média, quando se começaram a explorar os ricos filões de prata, descobertos nas colinas circundantes, mas também naquela mesma em que assenta a cidade. Kutná Hora foi crescendo condicionada pela própria causa do seu crescimento, ou melhor, nos espaços livres deixados pela abertura de minas diz-se, aliás, que a prata era tão abundante que até se podia extrair nos sótãos das casas.

Anel de fantasia

Mas, para começar, a que se deveu esta "febre da prata"? Rebobinando: várias unidades monetárias conviveram durante séculos de indecisão na Europa Central, até a moeda de prata ser finalmente adoptada como corrente. Dada a riqueza dos jazigos de Kutná Hora, Venceslau II promoveu a cidade boémia a fábrica da moeda em 1308 e, um século depois, Venceslau IV foi mais longe e elegeu-a como residência real. Depois vieram as Descobertas, que trouxeram a concorrência da prata mais barata do Novo Mundo, ao passo que as minas checas caminharam para o natural esgotamento. Kutná Hora foi assim embalando numa plácida letargia de que não voltaria realmente a despertar. Tanto que se aponta o antigo Colégio Jesuíta, inaugurado em 1670, como a única adição de relevo introduzida no centro urbano nos últimos quatrocentos anos.

O reverso da medalha dessa dormência é o notável conjunto de edifícios góticos, renascentistas e barrocos que ainda hoje constelam o seu perímetro histórico. Foram classificados como património da UNESCO em 1996, promoção que teve o condão de subtrair a cidade ao ostracismo, mas não o suficiente para a fazer entrar na roda do turismo de massas. Com menos de 20 mil habitantes e poucos visitantes, Kutná Hora é a quintessência da antiga glória urbana museificada, ou da cidade monumental de província onde tudo ou quase está como estava na sua idade de ouro -que neste caso foi de prata. Já se sabe que Praga tem mais atractivos e joga noutro campeonato, mas esse tipo de nostalgia, que induz o visitante numa espécie de sonho medieval, é a mais-valia de encanto que oferece Kutná Hora.

O anel de fantasia é, no entanto, exíguo e compacto. Tudo o que há para ver na cidade boémia encontra-se num núcleo que em linha recta não terá mais de 500 metros de comprimento. Na ponta sudoeste fica a Catedral de Santa Bárbara, o edifício mais emblemático da cidade, mandado construir em 1388 pela corporação dos mineiros em honra da sua padroeira. O templo impressiona pela escala, elegância e pela forma de tenda do seu telhado. É uma peça de arquitectura grandiosa, mas também não é preciso ser especialista para perceber que não prima pela originalidade, oferecendo-se como uma declinação local e tardia do gótico francês. Tão ou mais interessantes são os interiores, onde se conjugam frescos medievais e vitrais Arte Nova.

A catedral abre-se sobre uma ampla esplanada, que oferece vistas deslumbrantes sobre a cidade e o vale frondoso, sulcado pelo rio Urchlice. A esplanada assenta, por sua vez, sobre a Capela de Corpo de Cristo, que data de finais do século XIV/inícios do XV e era suposto funcionar como catacumba, mas nunca foi acabada. Não tem nada que se veja lá dentro, para além de quatro grossas colunas e três grandes janelas, mas vale mesmo assim a pena descer a escadaria que lhe dá acesso para admirar um dos maiores e mais bem preservados salões góticos do mundo.

O lugar místico, pelo menos o mais concorrido de Kutná Hora, vem a seguir: é a Barborská Ulice, a rua empedrada que conduz ao centro da cidade medieval. De um lado corre a fachada do Colégio dos Jesuítas, do outro uma balaustrada empedrada, sobranceira ao vale. Nela se perfilam a espaços regulares 13 esculturas de santos em absoluto êxtase espiritual, imponente conjunto barroco certamente não isento de semelhanças com o da famosa Ponte Carlos de Praga.

Mais à frente encontra-se a Corte Italiana, que começou (1300) por ser casa da moeda, onde viviam os cunhadores originários de Itália, que lhe deram nome. Foi depois Paço Real com Venceslau IV, vindo a ser largamente reconstruída em estilo neogótico no século XIX. É agora um museu de moedas, onde a estrela é naturalmente o groschen checo, a tal moeda de prata que se tornou dominante na Europa Medieval.

A chamada Casa de Pedra, com uma fachada gótica profusamente decorada e o originalíssimo reservatório de água que domina Plackého Námestí, a praça principal da cidade, são outros edifícios que merecem ser destacados. São, no entanto, tantos e estão tão bem preservados que Kutná Hora mais parece um cenário de reconstituição histórica.

Intrusão do insólito

Kutná Hora é a prova cabal de que o insólito mora onde menos se espera. De facto, quem diria que a menos de três quilómetros do risonho centro da cidade mora uma das mais macabras fantasias à face da terra? Falamos da capela de Todos os Santos, mais conhecida por Igreja dos Ossos, alcunha a que por certo não é estranha a circunstância de ser decorada por tíbias, perónios e, na verdade, toda a espécie de ossos humanos. Serão entre 40.000 a 70.000.

Vê-se e mesmo assim quase não se acredita. Depois começam as perguntas. A primeira será como foi possível reunir tamanha quantidade de ossos humanos, sobretudo ali, no meio de nenhures. No princípio, ou melhor, em 1142, antes mesmo de Kutná Hora ser Kutná Hora, Sedlec acolheu um mosteiro cistercense, ao lado do qual nasceu a Igreja da Assunção. Radicalmente reconstruída no primeiro decénio do século XVIII, segundo um projecto do inclassificável arquitecto Jan Santini Aichel, a igreja é outro dos monumentos classificados da cidade boémia. A sua grandiosidade e mérito arquitectónico são ostensivos, mas não é menos claro que em termos de popularidade acaba por ser ofuscada pela vizinha mais modesta de Todos Os Santos.

A capela foi plantada no centro do cemitério, pequeno mas instantaneamente célebre, desde que foi fundado, em 1278, com terra colhida em Golgotha, o sítio da crucificação de Cristo. Ou seja, o cemitério foi promovido a terra santa e toda a gente de Kutná Hora e até de muito mais longe passou a elegê-lo para última morada. Depois veio a peste no século XIV, as não menos letais guerras hussitas no século seguinte e o exíguo recinto ficou a rebentar pelas costuras, inclusive com muitos cadáveres a descoberto. Primeiro o andar superior da capela e depois o seu subsolo foram então convertidos em armazém de ossos em excesso. Resta saber a que se deve o emprego de boa parte dessas toneladas de restos humanos em figuras decorativas, que mais frequentemente parecem ferir as regras do bom gosto e até do respeito aos mortos.

Há quatro enormes pilhas de ossos em forma de sinos nos quatro cantos da capela, do centro pende um monumental candelabro que integra todos os ossos do corpo humano, os tectos abobadados são decorados com grinaldas de caveiras. Para além dos depósitos onde milhares de ossos estão simplesmente empilhados, há muitos outros recriados para efeitos "artísticos", incluindo o brasão bordado com ossos da família Schwarzenberg, que adquiriu o terreno depois da extinção das ordens religiosas, e a assinatura Rint, que é o apelido do autor da obra, realizada por ordem daquela família, em 1870. Frantisek Riter era carpinteiro e gravador de madeira, não propriamente um artista de formação académica, o que justifica a sua representação da morte entre a estilização brejeira e a farsa das vaidades humanas.

Uma visão da morte muito gráfica e jocosa, que hoje não poderia estar mais de moda, e não é infrequente encontrar à porta da igreja dos mortos filas de jovens de "uniforme" gótico. Esta freguesia e mais legiões de curiosos roubam dramatismo ao lugar, de modo que nunca se chega a ter a sensação de estar num ossário pelo menos nada de semelhante ao frisson que provoca a "nossa" Capela dos Ossos, em Évora, ou a igreja de Santa Catarina, aos pés da montanha do Sinai. Parece mais o cenário de um desses filmes que toda a gente tem a certeza que já viu, mas quase ninguém recorda o nome. Tem razão de ser, quando o templo de Sedlec é regularmente visitado por equipas de filmagens (incluindo dos filmes Dungeons & Dragons e Blood & Chocolate), serviu de inspiração a muitos mais (Rob Zombie, Tim Burton?!) e até foi recriado por essa corporação da estranheza que é a rede de museus Ripley's Believe it or Not.

Centro de Informações (Informacní Stredisko)
Palackého nám. 377
Tel.: +420 327512378
http://www.kutnahora.cz/
Aberto diariamente das 9h00 às 18h00 de Abril a Setembro, no mesmo horário nos dias úteis do resto do ano. 10h00-16h00 aos fins-de-semana de Outubro a Março. Para saber mais antes de viajar (sobretudo para reserva de camas e mais dicas práticas) também se recomenda o site http://www.outsideprague.com/

Como ir

A TAP voa para a capital checa com preços que rondam os 229 euros, taxas incluídas. A viagem a partir da gare de Hlavní Nádrazí, em Praga, dura uma hora em comboio rápido (também há lentos, que levam o dobro do tempo) até à estação central de Kutná Hora, nas imediações da "Igreja dos Ossos", em Sedlec. Os autocarros partem da estação Florenc em Praga e demoram hora e meia a fazer o trajecto até ao terminal de Kutná Hora, próximo do seu centro histórico. De carro (saída do Museu Nacional em direcção à estrada 333) a mesma viagem dura cerca de 50 minutos.

Quando ir

A maior parte dos turistas (que até nem são muitos) visitam Kutná Hora em excursões de um dia a partir de Praga. Quer dizer que quem decidir ficar alojado na cidade tem praticamente só para si um majestoso cenário medieval, sobretudo faustoso quando as luzes dos monumentos se acendem ao fim do dia.

Onde dormir

Opat
Husova 138
Tel.: +420 327536900
Hotel de charme em edifício secular, no coração da cidade velha, porventura o melhor em Kutná Hora.
Duplos 40-50€.

U Kata
Uhelná 569
Tel.: +420 327515096
Pensão familiar, acolhedora, central e barata.
A partir dos 15€ por cabeça.

Onde comer

Pivnice Dacicky
Rakova 8
Tel.: +420 327512348
http://www.dacicky.com/
Cervejaria tradicional, que recria ambiências e ementas alquimistas, num casarão de inspiração renascentista. O cenário é um bocado "casamentos e baptizados", mas a cozinha é de confiança e os preços razoáveis.

U Kamenného Domu
Lierova 147
Tel.: +420 327514426
Se o Dacicky é sobretudo para quem vem de fora, já este restaurante é preferido pelos locais.
A sua ementa propõe todo um sortido de especialidades boémias a preços de amigo.

O que fazer

Castelos é o que não falta na República Checa e a região Kutná Hora não é excepção. Nas suas vizinhanças há pelo menos dois chateaux que justificam o desvio: o de Zleby, erigido pela família nobre de Lichteburg em meados do século XIII, mas largamente recriado em estilo neogótico inglês em finais do século XIX; e o de Kacina, espécie de castelo de fadas mandado construir em estilo Império pelo conde Chotek, em finais do século XIX. O castelo de Zleby está rodeado por um extenso parque onde se podem ver espectáculos de falcões treinados segundo os costumes medievais.

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