Fugas - Viagens

Luís Maio

Bruxelas - O orgulho e o preconceito da era colonial

Por Luís Maio

Santuário do coleccionismo e da ciência exótica, o Museu Real da África Central é um verdadeiro dinossauro da museologia e uma montra de como se fez a colonização belga. A Fugas foi visitá-lo antes da modernização e da correcção política

O Museu Real da África Central presta-se a sofrer uma metamorfose radical. A instituição situada em Tervuren, cerca de 12 quilómetros a leste de Bruxelas, detém a maior colecção de etnologia e de história natural da África subsariana. Inicia este ano um ambicioso processo de renovação, a começar pela construção de um novo pavilhão, à entrada do parque em que se situa. Um pavilhão envidraçado de dois pisos, da autoria da firma de arquitectos Beel, destinado a congregar bilheteira, loja, cafetaria e sala de conferências. Servirá também de nova entrada e os visitantes acederão a partir daí a um espaço subterrâneo com três salas de exposições temporárias, enquanto o museu actual será inteiramente consagrado à exposição permanente. O museu permanecerá aberto ao público mesmo assim, ou durante o período em que as obras decorrem.

É um lifting necessário, que peca quando muito por ser tardio. Mas se a modernização era desejada, por outro lado lastima-se, na medida em que vai seguramente limar, ou mesmo apagar, os traços anacrónicos que tornam este museu tão especial, tão diferente de todos os outros que na mesma especialidade existem por esse mundo fora. Porque o Museu Real da África Central é essa coisa hoje já tão rara na Europa que é um museu de etnologia à antiga, "um museu de um museu", que pouco ou nada mudou desde a Expo de 1958. Com esta particularidade: apesar da forte contestação à presença belga que já então agitava o Congo e dois anos depois levaria à independência do país africano, o museu fazia ainda finca-pé de uma visão idílica das relações belgo-congolesas.

O carimbo da propaganda colonialista foi depois rasurado ou recontextualizado, mas deixou marcas profundas em Tervuren. Este será o último grande museu onde se pode perceber como é que um regime colonial europeu provavelmente o mais cruel e sanguinário alguma vez imposto em África retratou o país colonizado e ao mesmo tempo se auto-retratou como potência colonizadora. Visões políticas à parte, o grande atractivo do Museu Real da África Central antes da renovação é o seu recheio e método expositivo. Uma colecção com peças fabulosas, sobretudo pródiga em artesanato congolês, apresentada a meio caminho entre a pedagogia e o exotismo, meio para instruir, meio para impressionar, segundo critérios científicos há muito fora de prazo. Nesta perspectiva, é como um monumental gabinete de curiosidades, milagrosamente preservado. Ora os gabinetes de curiosidade não poderiam estar hoje mais na moda.

Palácio das Colónias

O domínio de Tervuren é como uma Versalhes em ponto pequeno. Ou melhor, uma Versalhes inacabada, como já iremos ver. O museu está sediado num edifício monumental, decalcado do parisiense Petit Palais. Não tem nada a ver com etnologia, nem sequer com África, o que não deixa de ser um tanto insólito. Para ambientar os visitantes, há, em compensação, uma fila de elefantes feitos em tabuinhas, que conduzem até à porta do museu, ao longo de uma esplanada sobranceira a uma vasta zona ajardinada. À direita, um pouco recuado sobre a esplanada do museu, fica outro edifício elegante, mas bem mais discreto, o Palácio das Colónias. É por este mesmo que convém iniciar a visita.

O Palácio das Colónias foi mandado construir pelo rei Leopoldo II a título de montra do "seu" Congo, no contexto da Exposição Universal de Bruxelas de 1897. Dez anos antes, Stanley, o explorador galês já famoso por ter desencantado Livingstone no interior mais remoto de África, juntou ao seu palmarés a primeira travessia do rio Congo, que descobriu ser navegável em milhares de quilómetros. De regresso à Grã-Bretanha esforçou-se sem sucesso por convencer Londres a reivindicar o território como colónia britânica. Já Leopoldo II continuava desesperadamente à procura de um domínio ultramarino, capaz de fornecer as matérias-primas necessárias à expansão económica da Bélgica, então uma jovem nação (criada em 1830) em curso de industrialização.

Leopoldo agarrou a oportunidade que a Grã-Bretanha deixou cair, ou seja, "comprou" a ideia de Stanley. Apenas dois anos depois de ter atravessado o Congo como explorador, este regressou como colonizador, para reclamar os vastos territórios atravessados pelo Congo e seus inúmeros afluentes como propriedade do monarca belga. Veio a conferência de Berlim de 1885, na qual as potências europeias dividiram entre si os territórios que em África estavam por reivindicar, e o rei dos belgas viu reconhecida como sua propriedade um território com uma superfície rondando os três milhões de quilómetros quadrados, que designou de Estado Livre do Congo. Como faz notar o jornalista Tim Butcher no seu excelente Rio de Sangue (Bertrand 384 págs., 18€), "nunca na História, nem antes nem depois, uma pessoa havia reivindicado a título pessoal a propriedade de uma tão vasta extensão de território".

Leopoldo II conquistou o ambicionado talhão africano com um potencial económico prodigioso, mas faltavam-lhe os investidores e os seus súbditos também não se mostravam muito entusiasmados com a perspectiva de se mudarem para a África profunda. Foi justamente numa óptica da propaganda, como um isco para chamar gente ao Congo, que Leopoldo mandou construir o Palácio das Colónias, no domínio que lhe fora cedido pelo estado belga em Tervuren. A fachada é tipicamente neoclássica, mas o interior foi primeiro decorado com uma impressionante estrutura em madeira congolesa como uma espécie de recriação Arte Nova da vegetação tropical, agora recriada em versão esplanada, nas traseiras do edifício. Foi recheada com as principais exportações do Congo na época (marfim, borracha) à mistura com animais embalsamados, peças de artesanato e outras curiosidades trazidas dessas paragens, boa parte das quais nunca antes vistas por estas latitudes europeias.

O sucesso da exposição congolesa ditou a conversão do Palácio das Colónias em museu, mas a colecção cresceu tanto e tão depressa que um novo edifício foi projectado para a albergar. É, de facto, um palácio, o que se justifica pela intenção de Leopoldo II de converter o domínio real num parque monumental, juntando-lhe uma escola internacional, um pavilhão chinês e outro japonês. O museu foi inaugurado em 1909, mas um ano depois do desaparecimento do monarca belga; os restantes projectos para o recinto foram de imediato cancelados pelo seu sucessor Alberto I.

Heróis do colonialismo

Já lhe chamaram Vaticano do Colonialismo, uma comparação desde logo sugerida pela cúpula triunfal, que coroa o hall de entrada. No centro havia uma majestosa estátua de Leopoldo II em marfim, entretanto retirada.

Mas o chão em mármore ainda exibe a estrela e a coroa que serviam de emblema ao Estado Livre do Congo, da mesma maneira que persistem nos seus quatro cantos imponentes figuras coloniais a dourado, aos pés das quais se esculpem negros em poses "exóticas". As esculturas são da autoria de Herbert Ward e têm nomes ou legendas paternalistas, do género "A Bélgica trazendo a civilização ao Congo" ou "A Bélgica trazendo a segurança ao Congo". São slogans, frases de marketing que integram a mesma campanha que levou a designar a colónia de Estado Livre do Congo livre, entenda-se, no sentido de promover o comércio livre como forma de combater o suposto atraso civilizacional das tribos africanas.

Uma campanha de clara desinformação, uma vez o apregoado comércio livre era, mais frequentemente, sinónimo de pura pilhagem. Primeiro Stanley e depois os agentes coloniais belgas escreveram algumas das mais cruéis e sangrentas páginas da história do colonialismo. É tristemente célebre a prática de mandarem cortar as mãos aos indígenas a pretexto de "darem o exemplo", ou seja, de sufocarem qualquer esboço de desobediência. Estes e mais horrores, bem documentados por missionários de outros países ocidentais, tiveram pelo menos o condão de desencadear uma campanha de indignação internacional, que finalmente obrigou Leopoldo II a renunciar ao controlo do seu feudo africano, convertido em 1908 em colónia do estado belga.

O território africano passou a responder pelo nome de Congo Belga, e, pela mesma lógica, o museu ganhou o título de "real". A maior parte da sua ala direita é agora ocupada por exposições que invocam Stanley e a história do colonialismo belga. O inglês é celebrado pelos feitos das suas expedições africanas, a invocação dessa faceta heróica fazendo previsível omissão de abrir fogo a eito sobre os indígenas que lhe faziam frente. A sala dedicada à história colonial belga, por sua vez, presta homenagem aos militares que se distinguiram nas campanhas no Congo, ao mesmo tempo que desvia as atenções para episódios mais esquecidos da sua expansão, como seja a primeira colonização dos Açores, que em 1439 eram mais conhecidos como as Ilhas dos Flamencos.

A dignidade com que as figuras coloniais são retratadas contrasta forçosamente com as poses crispadas e algo constrangedoras com que os africanos aparecem quase sempre representados. O grande benefício é que agora os segundos são muito mais sugestivos que os primeiros. É o caso por excelência do conjunto escultórico em tamanho mais que real de um homem leopardo os famosos assassinos prestes a lançar as suas temíveis garras metálicas sobre um indígena. Também muito divertidas e reveladoras da mentalidade colonial são as relíquias escultóricas do Pavilhão das Colónias, sobretudo o conjunto que representa um negro a defender uma fêmea nua indefesa da presumível investida de um negreiro árabe. Hoje esta cena pode parecer caricata, mas é preciso lembrar que a principal força de oposição aos ímpetos expansionistas de Leopoldo foram os árabes esclavagistas de Kasongo, que os colonialistas belgas acabaram por levar de vencida numa guerra curta, mas sangrenta, em 1892.

O teatro da selva

Boa parte do acervo de Tervuren veio dessas primeiras décadas de expansão do Estado Livre do Congo. Resultou da paixão coleccionista então partilhada por militares e cientistas, agentes coloniais e missionários, aventureiros e negociantes, ou melhor, dos intercâmbios (que se suspeitam nada equitativos) por eles mantidos com as tribos do estuário do Congo. A colecção não parou de crescer na era do Congo Belga, passando depois da independência a ser ainda enriquecida pela aquisição de peças em países vizinhos e um pouco toda a África subsariana. Daí a extraordinária riqueza do museu, que guarda 10 milhões de espécimes animais, 250 mil escantilhões minerais, 180 mil objectos etnográficos, oito mil instrumentos de música e mais de vinte mil mapas.

Com um património deste quilate não admira se os artigos em exposição permanente representam menos de cinco por cento da colecção do museu. Mesmo assim, são mais do que suficientes para manterem o visitante ocupado durante um dia inteiro. As mais valiosas encontram-se em duas grandes salas, uma de cada lado da rotunda de entrada, que são dedicadas à Antropologia. É nestes espaços que o Museu Real da África Central mais se revela como um museu de um museu, nomeadamente quando expõe máscaras fabulosas em vitrinas antiquadas, segundo o princípio também anacrónico de uma etnia = um estilo, apresentando as tribos congolesas como entidades isoladas e sem história pré-colonial, o que hoje é naturalmente considerado como não científico.

Outra coisa pouco científica e tão fora de moda que acaba por estar na moda é a apresentação da colecção de zoologia através de animais embalsamados em poses arrepiantes e em duelos sanguinários, com essa mais-valia teatral que são os cenários pintados a aguarela por Max Poll e os dioramas compostos pelo pessoal do museu entre 1959 e 1972. Claro que tudo isto está muito longe dos critérios de exposição do terceiro milénio, mas é por isso mesmo o Museu Real da África Central antes da reforma é tão fascinante e tão revelador.

Museu Real da África Central
Tel.: +32 02 7695246
www.africamuseum.be
Dias úteis das 10h às 17h, sextas e sábados até às 18h. Encerra às segundas.
Adultos 4€, seniores 3€ e crianças (menos de 13) 1,5€

Como ir

Para fazer chegar gente ao Palácio das Colónias, Leopoldo II lançou uma nova estrada de duas vias e uma linha de eléctrico, ligando Tervuren e Montgomery, já em Bruxelas. A linha 44 continua a ser servida por eléctricos antigos e é um dos melhores passeios que se podem fazer em transportes públicos na capital belga, atravessando aquele que já foi o subúrbio mais chique da cidade. O trajecto desde a saída do metro em Montgomery leva cerca de 25 minutos, depois são mais dez a pé até à entrada do museu. A alternativa para chegar a Tervuren é apanhar o autocarro 830 (todos os vinte minutos) no aeroporto de Bruxelas.

Onde ficar

La Vignette
Leuvensesteenweg 12, Wezembeek-Oppem
Tel.: +32 02 7678356
A 100 metros da entrada do museu

Cala Meertens
Brusselsesteenweg 108,
3080 Tervuren
Tel.: +32 02 7674514
Bed & breakfast ao lado do terminal de eléctricos para Bruxelas

Candeluna
Peperstraat 17,
3080 Tervuren
Tel.: +32 02 7680987
Outro bed & breakfast, mas este no centro de Tervuren

Onde comer

O café/restaurante é o espaço mais acolhedor do museu, na verdade o único que abre sobre o amplo pátio interior do edifício e o seu jardim tipicamente colonial. É também o espaço mais moderno, decorado com artesanato senegalês e animado por cora e outras sonoridades exóticas, a acompanhar uma boa selecção de cervejas e pratos africanos (que rondam os 12€).

O que ler e fazer

Os homens-leopardo e todo o imaginário de um Congo primitivo e selvagem, projectado pelo museu do Tervuren, tiveram um efeito marcante no jovem Hergé, que aí se inspirou para o seu segundo álbum, justamente intitulado Tintin no Congo (1930). A versão original era tão racista e pró-colonialista que Hergé se viu na obrigação de denunciar o seu "erro de juventude", introduzindo várias "correcções" na versão a cores, lançada em 1946. Um exercício interessante consiste em conjugar a visita ao Museu Real da África Central com a do Centro Belga da Banda Desenhada em Bruxelas (www.cbbd.be), onde Hergé é a principal estrela.

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