Fugas - Viagens

Rui Gaudêncio

Nas duas margens do grande diamante por lapidar

Por Romana Borjão Santos

Foram 72 horas que passaram a correr, mas Romana Borja-Santos aproveitou-as bem. Começou do lado de cá da fronteira, deslizou pelas águas do Alqueva e só parou em Espanha. Visitou castelos, aldeias com casinhas brancas e provou vinho da região demarcada do Guadiana. E espreitou Olivença

Nas 12 passas que acabou de mordiscar na passagem de ano de certeza que houve espaço para, em 2010, pedir mais tempo para si. Desta vez não deixe as resoluções ficarem apenas como uma mão cheia de boas intenções. Pegue já na agenda e reserve o primeiro feriado que lhe aparecer ou marque um dia de férias para ter direito a um fim-de-semana prolongado com um sabor especial. Que tal uns vagarosos três dias no Alentejo? Ou prefere a Extremadura espanhola? São 72 horas que vão passar a correr. Mas acredite que dá tempo para visitar os dois países. Ou melhor, as duas margens das Terras do Grande Lago o Alqueva.

Pensando melhor (e tendo em conta a época de festas e de excessos), se preferir pode também esperar por uns dias mais solarengos e arriscar levar o fato de banho e a toalha de praia na mala. Até lá, dê umas boas caminhadas e coma apenas coisas mais ligeiras. É que não vai resistir à gastronomia da zona e as suas calças vão parecer que encolheram só de ver tanta variedade.

Comecemos pelo primeiro destino. Vamos ficar do lado de cá da fronteira. O segredo é pegar no carro de manhã bem cedo e conduzi-lo até à Amieira, onde ficará estacionado. O carro ainda não sabe, mas não resistiremos a trocá-lo por outro meio de transporte. Apenas alguns minutos a bebericar um café estendidos numa esplanada com vista para a bacia do Alqueva vão ser mais do que sufi cientes para perceber que qualquer bom livro que nos acompanhe será trocado por um passeio de barco.

Barcos-Casa

Os tamanhos são para todos os gostos. Há os ferries para mais de 100 pessoas que fazem um passeio organizado de cerca de hora e meia. Abrigados ou ao ar livre, podemos sentir a brisa e ver a paisagem, enquanto ouvimos uma explicação sobre a história da zona, que nos ajuda a imaginar que, no passado, à mesma hora, estariam aqui pessoas a trabalhar estas terras com os primeiros utensílios de cobre fundido que um dia foram modernos. Contudo, porque não arriscar alugar um barco à medida? A Amieira Marina, uma das empresas de animação turística do lago, tem uma oferta que é uma tentação. Não se consegue dizer que não.

Não sabe conduzir um barco? Estes não precisam de carta de marinheiro. Tem medo? Antes há uma formação de cerca de duas horas. E se quiser parar? Há vários locais para parar e o barco está preparado para atracar em qualquer zona da margem. E se o fundo tiver coisas perigosas ou andar perdido? A embarcação está equipada com um equipamento específico de localização e segurança: plotter, GPS e sonda de varrimento vertical.

Quem não fica convencido de que é o local perfeito para uma escapadela romântica? É que os barcos apesar de não poderem circular de noite a partir do momento em que escurece podem tornar-se quartos, e pernoita-se junto à marina. O único argumento que pode fazer pender a balança (e de forma decisiva) é a carteira. Mesmo na época mais baixa, o preço por duas noites ronda os 600 euros para duas pessoas. Se o seu conceito de namorar for extensível a mais amigos, este preço pode baixar consideravelmente: para dez pessoas duas noites não chegam aos 1000 euros. Mas também é pouco provável que, desta forma, consiga olhar para a lua e as estrelas de mão dada ou que fique simplesmente a tentar adivinhar a que animais pertencem os poucos sons que se conseguem captar.

90 quilómetros para navegar

Seja qual for a escolha, o importante é embarcar para não perder pitada deste "diamante por lapidar", como gosta de o definir Manuel Maia, da Amieira Marina. O Alqueva proporciona-nos mais de 90 quilómetros de possível navegação, com distâncias entre margens que chegam aos quatro quilómetros. Uma semana seria pouco para ir andando ao sabor do vento e da suave ondulação e poder parar com calma em cada ilhota ou em cada aldeia e sentir o cheiro a terra. O cheiro da natureza. A Amieira está a apenas dez quilómetros da barragem propriamente dita e a 83 quilómetros de Juromenha, uma terra já espanhola e que em breve acolherá também uma zona de marina preparada para lazer e desportos náuticos e a partir da qual se pode olhar para Portugal numa zona que convida a estender uma toalha e a reflectir.

A água verde límpida faz de um verdadeiro espelho do sol e permite que os tons amarelados e verdes da paisagem não pareçam secos. As árvores dão a ideia de terem sido geometricamente plantadas e cada pedaço de terra é um convite a um piquenique e a um passeio. Tudo parece acessível, tudo convida à descoberta. Nesta altura do ano só a água gélida não convida a banhos. O vento, esse, ajuda a refrescar as ideias. E, quando sopra mais forte, obriga-nos a fechar os olhos e a ficar a imaginar a natureza que ainda continua fixada na nossa retina. Mas, embrulhados num bom casaco e com um cachecol atafulhado no pescoço, o nariz frio quase que passa despercebido.

Depois do passeio, para ajudar a aquecer e reconfortar o estômago, nada melhor do que um almoço no restaurante panorâmico Amieira Marina. Dentro de um verdadeiro cubo de vidro (ou nas suas varandas, que se prolongam por cima do lago) podemos continuar a desfrutar da barragem. Que tal um creme de tomate, um pavé de garoupa em caldinho de amêijoa e, para terminar, uma sericaia com ameixa de Elvas? Tudo acompanhado pelo incomparável pão e pelo aromático vinho da região.

Turismo, a palavra-chave

Turismo. Esta é a palavra que explica todas as mudanças que aqui aconteceram. A serenidade da paisagem não se perdeu, mas nota-se que há várias coisas a acontecer. E muita vontade para que aconteçam ainda mais, de preferência com Espanha, a vizinha do lado de lá do lago onde também vale a pena demorarmo-nos a namoriscar cada aldeia alva, cada casa à beira lago plantada. Aliás, os dois países constituíram o Pegla (Projecto Estruturante para o Desenvolvimento das Terras do Grande Lago Alqueva), que tem em vista a cooperação transfronteiriça em tudo o que diga respeito a este recurso que é o lago. O projecto abrange sete municípios portugueses (Alandroal, Moura, Mourão, Portel, Reguengos de Monsaraz, Serpa e Vidigueira) e cinco espanhóis (Alconchel, Cheles, Olivença, Táliga e Villanueva del Fresno).

É com Espanha que se está a preparar uma rota dos castelos. As fortalezas que um dia serviram para proteger os povos estão agora de portas abertas para receber os curiosos. E as entidades turísticas alentejanas e extremenhas gostavam que o percurso passasse pelos dois países, com o lago como intermediário e como desculpa para uma viagem à volta da água mas recheada de muitos outros momentos únicos.

Comecemos por dar um salto até Monsaraz. Não fi ca nem a 50 quilómetros da Amieira. Com uma estrutura quadrangular que mistura elementos medievais com seiscentistas, este castelo foi tomado pela última e definitiva vez no século XVIII. Parece uma mini aldeia com casas brancas e portas de madeira, que ajudam a decorar o xisto dos muros e o chão negro. Os vasos pendurados nas paredes e algumas buganvílias ajudam a completar um cenário amoroso.

Apenas alguns telhados bolorentos e casas com a cal a cair destoam, já que todo o restauro e recuperação do interior das muralhas foram feitos pelos populares. Até a calçada do chão tem a assinatura de três conhecidos pedreiros de Monsaraz. Por seu lado, as cúpulas fazem lembrar as chaminés algarvias e as lojas de artesanato transportam-nos até às típicas mantas alentejanas e à colorida cerâmica. Não fossem as antenas da televisão por cabo e alguma roupa estendida visivelmente molhada, quase não se adivinhava que, afinal, o castelo não é apenas uma espécie de museu. Perto do Verão realiza-se o Monsaraz Museu Aberto, com diferentes actividades que dia e noite pintam as históricas muralhas, como torneiros medievais.

A zona mais alta do castelo serve de miradouro, onde na paisagem nem o cemitério atrapalha. Respira-se ar puro. Deixa-se os pulmões encher até não poder mais. Respira-se silêncio. Um silêncio que apenas é interrompido aqui e ali por uma motorizada e por alguns cães que ladram para um movimento ou presença que sonhavam. Também daqui é possível ver cavalos que dão à cauda e tentam afastar as moscas preguiçosas.

Para aqueles a quem uma noite num barco é uma ideia que provoca algumas náuseas, há sempre uma excelente alternativa: turismo rural. No hotel rural Horta da Moura pode comer, dormir e aquecer-se num quarto com lareira e, na manhã seguinte, aproveitar para visitar esta magnífica quinta e, quem sabe, andar a cavalo no picadeiro. Carregadas as baterias, porque não cruzar a fronteira e visitar outro castelo, desta vez na Extremadura? Extremadura?

Ver o vinho nascer

Em Alconchel está o Castillo de Miraflores, para o qual temos a oportunidade de subir quase lado a lado com um rebanho cujos sinos vão tilintando. Os tijolos mais avermelhados não deixam dúvidas de que é espanhol. No entanto, no passado, chegou a ser reconquistado pelo rei D. Afonso I de Portugal e, posteriormente, recuperado por Espanha, tendo também estado nas mãos dos templários durante largos anos. Nos anos 1980 projectou-se aproveitar o interior das muralhas para desenhar um hotel rural. As obras chegaram a avançar mas não houve mais fundos e, neste momento, as estruturas desenquadradas esperam um novo futuro. Aproveitar uma das salas para divulgar a rota dos castelos é uma das hipóteses. Na época do Natal também se fez uma moldura viva e recriam-se alguns eventos medievais.

Não muito longe do castelo encontra-se um local onde, mais do que beber o excelente vinho da região demarcada do Guadiana bem acompanhado por presunto de pata negra, pode respirá-lo. Na Bodega Puente Ajuda há visitas organizadas a todo o processo desde que a uva tinta ali chega até que sai em garrafas apetecíveis e disponíveis em preços para várias bolsas. Ainda antes de provarmos o vinho translúcido e frutado já parece que ele nos corre nas veias. O segredo, dizem os proprietários, é respeitar o saber de antigamente e dar uma grande mãozinha com as novas tecnologias.

Depois de um almoço nesta adega, o ideal é voltar ao contacto com a natureza. Percursos pedestres, observação de pássaros... ideias não faltam para continuar o dia em terras espanholas. Uma paragem obrigatória na Puente Ayuda. Mandada construir por D. Manuel no início do século XVI para ligar Elvas a Olivença, ficou conhecida pela sua robustez e construção inovadora. Uma resistência que, contudo, acabou por ceder às várias investidas do lado português e espanhol, ligados pela ponte, da qual agora só restam ruínas, apesar de dar para ver bem os arcos que um dia uniram os dois países.

Terminado o passeio, porque não ir, por exemplo, comer irresistíveis enchidos e uma técula mécula (uma sobremesa de ovo e amêndoa) até Olivença

Olivenza? - a polémica terra que tanto portugueses como espanhóis reclamam ser sua e que já trocou várias vezes de donos. Olivença foi oficialmente portuguesa durante mais de 500 anos, de 1297 a 1801 (com alguns intervalos pelo meio), ano em que foi ocupada durante a Guerra das Laranjas, tendo o confronto ficado assim conhecido pelo facto de o invasor, o general Godoy, ter enviado à sua suposta amante, a rainha Maria Luísa, uma cesta de fruta colhida em Elvas. Os portugueses reclamam, contudo, a força do Tratado de Viena, de 1815, que obrigava à restituição do território, mas os espanhóis guiam-se pelo anterior Tratado de Badajoz, que dizem ter mais validade. Apesar da polémica, do lado da diplomacia a questão tem sido, essencialmente, ignorada para não acender mais problemas.

Chegados à pequena terra amuralhada há vários indícios da cultura portuguesa, a começar pela calçada que decora o chão. Mas as senhoras mais velhas aperaltadas e a jogar cartas no café com vozes ruidosas não deixam grandes dúvidas que o coração de quem aqui vive já habla castellano. Os avós e bisavós ainda trocam umas palavras de português, em especial quando não querem ser entendidos pelos mais novos. Mas não passa disso.

Este pueblo converteu-se. O português deixou marcas nos monumentos e nas casas, mas a maioria foi eliminada. Mesmo assim, vale a pena pernoitar no recuperado Palácio Arteaga para ter tempo para procura-las nas várias igrejas e capelas que aparecem a cada esquina e onde ainda resistem azulejos centenários. E, para os mais saudosistas, nada como visitar o Museu Etnográfico González Santana, instalado num anexo ao castelo de estilo pombalino onde ainda sobrevive um escudo português.

Nesta verdadeira casa de bonecas não falta nada: mais de 7000 peças transportam-nos até um tempo onde o grande lago ainda nem era sonhado e mostram-nos diferentes actividades da altura. Um tempo em que as secretárias das escolas ainda eram de madeira, em que os professores tinham estrado e em que as canetas se molhavam na tinta. Em que o consultório médico parecia uma casa de terror, em que os brinquedos não eram de plástico, em que o barbeiro ainda tinha muitos utensílios para cortar a barba e mecanismos para arrancar os dentes.

Como ir

Vindo de Sul, apanhar a A2. Vindo de Norte, a A6 é a melhor opção. A partir de Évora ou Beja, seguir a indicação para Portel, via IP2. Ao chegar a Portel, sair do IP2 e seguir a direcção de Alqueva Moura via N384. Nesta estrada virar à esquerda para a Amieira quando surgir a indicação, via R255. Por fim, na rotunda da Amieira seguir a indicação "acesso local" e Amieira Marina.

Onde ficar

Hotel Palácio Arteaga
Tel.: 00 34 924 49 11 29)
Olivença
Mesmo no centro de Olivença, este pequeno palácio renovado e de inspirações árabes oferece, ao fim-de-semana, quartos duplos a partir de 100 euros, já com pequeno-almoço.
Os quartos são espaçosos, com pormenores engraçados e todos eles têm uma decoração que combina mas varia ligeiramente.

Hotel Horta da Moura
Tel.: 266 550 100
Monsaraz
Este "hotel quinta" oferece quartos com sala que funcionam como pequenos apartamentos, apesar de não terem cozinha. Um quarto duplo com lareira custa 95 euros, já com pequeno-almoço. As instalações vão ser remodeladas no início deste ano.

Onde comer

Restaurante Dosca
Olivença

Restaurante Palácio Arteaga
Olivença

Restaurante Panorâmico Amieira
Marina
Amieira

A Fugas viajou a convite da Direcção-Geral de Turismo da Junta de Extremadura

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