Fugas - Viagens

Paulo Ricca

Serra d'Arga, terra d'água

Por Patrícia Carvalho

Patrícia Carvalho acabou o dia encharcada mas com uma absoluta certeza: este é um daqueles lugares aonde tem que voltar. Para dourar com sol as paisagens que, apesar da chuva impiedosa, gravou no lado favorável da memória

Durante todo o percurso, António aguçara-nos a curiosidade sobre a chegada ao Pincho. Um segredo já muito mal guardado, em plena serra d'Arga, onde o rio Âncora se deixa cair numa cascata sobre uma lagoa sossegada, que se enche de curiosos no Verão. António contara como a cascata se abatia sobre um espelho de água, onde se chega a caminhar, e das pessoas que aproveitam as margens para fazer do local a sua praia. Por isso, quando pára o jipe a alguns metros do Pincho e começa a descer o caminho enlameado, o guia local não está preparado para o que o espera. No Pincho, o sossegado e idílico Pincho, o Âncora inchou com as tempestades dos últimos dias e transformou a lagoa num rio furioso, alimentado pela cascata gorda, de onde a água cai, aos tropeções.

A serra d'Arga transforma-se com a chegada das chuvas. O Pincho é só um exemplo. António Presa, que organiza circuitos pela estrutura rochosa dos concelhos de Caminha, Vila Nova de Cerveira, Viana do Castelo e Ponte de Lima, garante que nunca o vira assim. Tão furioso e veloz. O caminho é cortado pelas águas e não deixa ninguém aproximar-se muito. Para ver a cascata na sua totalidade é preciso arriscar saltar para uma pedra molhada e escorregadia. E, mesmo assim, há um bocadinho da queda de água que fica escondida. A terra absorve a água, regurgitando-a em regatos e riachos que parecem brotar de todos os lados, e os pingos grossos que caem das copas das árvores fazem tremer as folhas dos arbustos rasteiros. Quase se ouve os ritmos que libertam. Toda a serra está assim. Chove há dias seguidos. Chove muito e está vento. O dia podia ser uma desilusão, mas não foi.

Quando saímos de Vila Praia de Âncora já chovia muito. O jipe que António conduz deixa a via rápida e começa a subir a serra. A partir da rotunda que anuncia a localidade de Dem, a estrada transforma-se numa estradinha que vai subindo entre campos em socalcos, de verdes iluminados pela chuva, e gordas pedras de granito. E, claro, a água. Há riachos a cair pelas encostas ou a atravessar os campos. Dentro do jipe, vamos comentando (ingénuos) que o dia não está tão mau como se esperava. Afinal, até não é difícil ver as várias encostas da serra. O mar é que está escondido. Num dia de sol, garante António, a vista é deslumbrante e as cores dos campos tornam-se ainda mais vivas.

O magnésio

Nós gostamos da serra assim, chuvosa e misteriosa. E ainda gostamos mais quando chegamos ao pequeno Santuário de São João d'Arga onde, todos os anos, de 28 para 29 de Agosto, o profano visita o sagrado, sob a forma de milhares de peregrinos que ali passam a noite, num desvario de copos entre as celebrações religiosas. Neste sábado de Outono, o mosteiro sisudo de pedra, cujas origens parecem remontar ao século VII, está liberto dessa azáfama, mas não abandonado. Há uma carrinha estacionada na entrada, e mal entramos no recinto ouvem-se algumas vozes jovens entrecortadas por risos. Nas traseiras do mosteiro, a espreitar, pachorrentos, os visitantes, estão alguns bois autóctones de cornos longos e retorcidos a única fauna que veremos hoje, apesar de, num dia de sol, haver grande possibilidade de encontrar alguns garranos a percorrer a serra.

O mosteiro está fechado, mas as vozes que ouvíramos ao chegar saem dos "quartéis" em redor. Subimos junto das salas escuras, sem luz, água ou aquecimento, com portas onde está escrito a giz o preço do aluguer, para descobrir um grupo de jovens de Antão, Esposende. Passaram ali a noite de tempestade e vão passar a próxima. Duas vezes por ano, saem de casa e vão dormir ali. Garantem que já viram todo o tipo de tempo na serra desde o calor sufocante à neve que paralisa os dedos e até que já experimentaram pernoitar noutros santuários. "Mas não se sente o mesmo que aqui", diz uma rapariga. Talvez seja do magnésio que se espalha em grandes quantidades pela serra e que, diz António, "faz as pessoas sentirem-se bem, está provado cientificamente".

O segredo

Quando o jipe deixa para trás São João d'Arga o mau tempo torna-se sério. No Centro de Interpretação da Serra d'Arga, o vento quase nos levanta do chão e no interior do edifício, inaugurado em Junho, desce num uivo constante pela chaminé larga. Lá dentro, há amostras dos vários minérios que enriquecem a serra e placards com imagens da fauna e da flora local ainda lá está a fotografia de um lobo à espreita, apesar de há muitos anos nenhum morador das aldeias em redor ter visto algum. Curiosamente, há pouco, no mosteiro, um dos jovens jurou a pés juntos ter visto um há alguns meses, lá para cima, no topo de um monte. António ouviu, com ar levemente desconfiado. "E era mesmo um lobo?". O rapaz garantiu que sim.

De volta ao jipe, com a chuva a castigar os vidros, cruzamos aldeias com pequenos campos de cultivo rodeados por lajes de xisto que fazem a vez de muros. Vemos espigueiros e grandes rochas arredondadas, alisadas pelos séculos, paredes meias com casas que não são mais altas do que elas. Em Agra de Cima arriscamos ficar encharcados dos pés à cabeça para descer uma encosta leve e vermos o Pontão do Lobo.

É uma construção pequena, que facilmente passaria despercebida se não nos chamassem a atenção para ela. Depois de a vermos, não conseguimos tirar os olhos dali. A história que circula pelas terras de Arga é que o pontão (uma minúscula ponte arqueada sob um riacho) foi construída pelos habitantes locais para permitir a passagem do padre que, em tempos que já lá vão, atravessava a serra a pé, para dizer missa nas aldeias próximas. A beleza da pequena estrutura está na sua estranheza. Um conjunto de lajes, unidas num semicírculo quase perfeito e seguras, aparentemente, por nada, senão por elas próprias.

Se o tempo não estivesse tão mau e tão impróprio para andar a pé, António levar-nos-ia aos vestígios do fojo do lobo (antiga armadilha para caçar o animal selvagem), à foz do rio Minho e aos abrigos de pastores. Assim, começamos a descer a serra em direcção ao Lugar de Espantar.

De onde é que vem o nome? "Não faço ideia, só sei que o nome é mesmo assim, Lugar de Espantar", diz dona Aurora, da Casa Caçana. O que ela sabe, e faz mesmo ali à nossa frente, é preparar o "champarrion". A bebida, típica da região, é feita numa tigela grande de barro. Para ali cai o vinho, a cerveja, uma bebida gaseificada doce, o açúcar e a canela. Dona Aurora vai mexendo sempre, misturando sabores sob a espuma acastanhada que se forma por cima. Nas canecas de barro, e acompanhado de pão com queijo, chouriço e presunto caseiros, o "champarrion" faz esquecer o mau tempo que encharca a terra no exterior.

Antes de chegar ao Pincho, António mostra-nos uma outra lagoa (que ainda não caiu nas bocas do mundo nem faz parte do percurso habitual, por isso vai continuar segredo)"porque não pudemos ver tudo o que estava previsto", e pára nas traseiras da igreja de São Lourenço da Montaria, para uma vista perfeita de moinhos de água a bordejar o rio. Antes de encontrarmos Maria da Graça e a mãe a lavarem, no Âncora, as tripas do porco que mataram há pouco, ainda espreitamos a perfeita ponte romana de Saim (há mais duas na zona, em Abadim e Tourim), e, já na descida para Vila Praia de Âncora, quando a chuva deu, finalmente, algumas tréguas, passeamos em redor do Dólmen de Barroso. "Deve ter sido de alguém importante, porque tem nove pedras e não sete, como era costume", há-de dizer-nos Jorge Meira, no hotel que tem o seu sobrenome. Há décadas, quando era adolescente, participou nas escavações do dólmen. "As peças estão no Museu Arqueológico da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães", recorda.

Ao chegar a Vila Praia de Âncora, a chuva parou, e só o vento continua a rugir. A serra, lá em cima, esconde-se nas nuvens, encerrando tudo o que vimos e o que não conseguimos ver. A vantagem de descobrir um sítio novo com mau tempo é que apetece sempre voltar para terminar a viagem. Quando estiver sol.

Como ir

Quase todos os sítios da serra d'Arga podem ser alcançados no seu próprio carro. Contudo, se preferir descobrir as encostas de granito e xisto com um guia local e a bordo de um jipe, que permite chegar aos locais onde o carro comum não vai, pode recorrer aos serviços de António Presa (www.tiro-certeiro.com). O guia trabalha com alguns hotéis da região e a título particular.

Onde dormir

O Hotel Meira, completamente renovado, é um bom local para começar e terminar uma visita à serra d'Arga. O hotel familiar, inaugurado em 1945, está à beira de receber a sua quarta estrela, e oferece uma série de programas diferentes para os visitantes, incluindo o percurso da serra d'Arga. Com dois pisos, piscina exterior, restaurante, sala de jogos e de congressos, o hotel oferece 52 quartos e preços a começar nos 55 euros (em duplo com pequeno-almoço).

Onde comer

No centro histórico de Caminha, o restaurante Amândio é um espaço único. A sala, aconchegada, está rodeada de livros que se empilham em qualquer canto onde haja espaço. A cozinha tradicional é recheada de iguarias, e se a lampreia (na época) ou o bife da vazia com queijo da serra podem fazer as delícias de muitos, arriscamo-nos a sugerir que se fique pelas entradas. O menu oferece essa possibilidade e é um nunca mais acabar de coisas boas: pataniscas, sardinhas de escabeche, broa frita com ovo, salada de feijão-frade, grão com bacalhau, mexilhões, enchidos...

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