Qualquer hora, entre as 9h00 e as 21h00. Hora certa, é sempre hora de ajuntamento em Praga, junto à torre gótica da câmara municipal da Cidade Velha. O relógio astrológico vai voltar a mostrar-se à multidão de turistas que o aguarda. O relógio astrológico é como que o ex-libris da cidade, para onde todos os narizes apontam, para ver os doze "apóstolos", mas também as quatro alegorias que desfilam antes do galo cantar e do relógio tocar as badaladas: as figuras do esqueleto, do turco, do avarento e do vaidoso. Pode ser este homem que, 600 anos depois (a festa foi assinalada no ano passado), e por ser a figura de quem olha, ora para um lado, ora para o outro, pode muito bem agora ser uma boa alegoria daquilo que são os checos: ora olham para o passado, ora olham para o futuro, mas também olham para o que são hoje.
E, hoje, já são o povo da Europa que lê mais livros (a média, per capita, é de oito obras por ano), que bebem mais cerveja (sim, conseguem bater os alemães, tem mais de 500 marcas e não há restaurante que se preze que não tenha a sua própria fábrica de cerveja) e são os que mais fumam drogas leves (Amersterdão? quem é que falou na Holanda?). São o povo que se tem empenhado em mandar canetas para o presidente checo, para não voltarem a passar a vergonha de ver vídeos como aquele em que, na Colômbia, assistem àquilo que parece ser o presidente a surripiar uma caneta à socapa, e a escondê-la no bolso. Mas são também (ou será melhor dizer sobretudo?) um povo que preza a sua cultura e a sua história, e que se habituou a partilhar a monumentalidade das suas cidades com quem os visita. O maior pólo de atracção, a capital, Praga, recebe por ano mais do triplo dos seus habitantes, 4 milhões de turistas.
Há razões de sobra para tanta procura. Praga merece a fama de ser uma das mais bonitas cidades da Europa, também pela vantagem de ser cinco cidades em uma. Há a Cidade Velha, a Cidade Nova, a Cidade Pequena, o Bairro Judeu e o Bairro do Castelo. E este castelo só é o maior da Europa, numa localização privilegiada, do outro lado do rio Moldava, com entrada principal por uma das mais famosas pontes pedonais de toda a Europa, a Ponte Carlos.
Somos testemunhas da emoção que pode causar contemplar, de repente, à noite, este castelo-colina, da outra margem do rio. Há quem fique sem palavras e com olhos marejados - foi o que aconteceu à Maria João, quando se deixou distrair pela conversa, enquanto percorríamos a marginal, a caminho da ponte Carlos. É fácil deixarmo-nos distrair, para depois nos deixarmos enlevar. Deixarmo-nos distrair com a vida boémia.
Praga é a capital da região com esse nome, mas agora estamos mesmo a falar das cervejarias, dos pubs, das múltiplas ofertas recreativas e culturais - a começar pelo Teatro Negro, uma invenção do tempo do comunismo que resistiu até aos dias de hoje. Vale a pena ir ver uma peça e perceber bem porquê. Nós vimos uma "Alice no País das Maravilhas" dos tempos modernos e não demos o tempo por perdido, bem pelo contrário. Para depois nos deixarmos enlevar, pela monumentalidade dos edifícios, pela beleza das praças públicas, por aquela paisagem saída de um conto de fadas.
Mas falar da República Checa não pode circunscrever-se a falar da capital. E isso mesmo propôs a organização de Turismo do país quando desafiou a Fugas a fazer um roteiro por alguns dos locais assinalados pela Unesco como património da Humanidade. Um roteiro necessariamente curto (há 12 locais do país assinalados na lista da Unesco, o que nos leva a admitir que a República Checa tem uma boa concentração patrimonial, se considerarmos a dimensão deste país) e percorrido a um ritmo apressado. Mas que permitiu perceber que há vida para além de Praga, apesar de ninguém resistir a comparar as outras cidades a partir dela. As outras cidades têm para já a vantagem - e que não é nada irrelevante - de podermos passear por elas sem nos acotovelarmos no meio dos turistas.
Para além do centro histórico de Praga, estão assinalados pela Unesco os centros de Ceský Krumlov e de Tele (que não visitámos), e ainda o centro de Kutná Hora, a cidade que chegou a rivalizar com Praga no estatuto de capital, alavancada pela riqueza trazida pelas minas de prata da região - ouviu falar dos cristais da Boémia? Pois a prata de Kutná Hora também não conheceu fronteiras e hoje a cidade oferece aos visitantes uma curiosa Casa da Moeda, onde é visível a importância que a cidade teve no mundo financeiro da Idade Média.
Porventura, foi em Kutná Hora que se cunharam as primeiras moedas que acabariam por dar nome à mais famosa divisa cambial do planeta. Na Europa da Idade Média, quando as primeiras tentativas de combater uma inflação algo inesperada trazida pela descoberta de prata na América latina fez descer o valor do dinheiro, em Kutna Hora cunhou-se o "taller", uma moeda de prata mais forte e valiosa do que o "gros de Praga" que então circulava. O "taller" de Kutná Hora ficou famoso, e atravessou o oceano para se começar a falar em dólar. Pelo menos a teoria existe, e em termos fonéticos não parece despropositada.
Aqui, em Kutná Hora, também as catedrais mereceram o reconhecimento da Unesco. A cidade tem a particularidade de ter não uma, mas duas catedrais: a mais antiga catedral gótica da Europa central, a Catedral de Assumpção da Virgem Maria, construída em 1290, junto ao mosteiro cisterciense de Sedlec; e ainda a impressionante catedral de Santa Bárbara, a padroeira dos mineiros, como não podia deixar de ser, que começou a ser construída em 1388 em estilo gótico, mas que tem também apontamentos de barroco, e mais tarde de gótico tardio, um estilo em que os arquitectos checos se especializaram na tentativa de a concluírem. O que só aconteceu... em 1905! O estilo neogótico checo - há quem lhe chame pseudogótico - tem como expoente reconhecido o arquitecto Josep Mocker, que assina a conclusão das intervenções na catedral de S. Vito, em pleno castelo de Praga, mas também na Catedral de São Pedro e São Paulo, em Brno, a segunda maior cidade do país.
Capital da Morávia, Brno tem, na lista da Unesco, apenas um local que actualmente não está visitável - a casa Tugendhat, um imóvel particular projectado pelo arquitecto Mies Van der Rohe, naquele que é o mais importante edifício que construiu na Europa. O centro de Brno não precisa de estar na lista da Unesco para merecer uma visita mais prolongada. Para além da já referida catedral, expoente máximo e icónico de um bairro-colina (a colina Petrov) pontuado por muitas casas barrocas bem conservadas, também o castelo de Spielberg, inserido num parque romântico de 17 hectares, da autoria de Antonin Sabánek, merece uma visita.
Construído como residência de um conde da Morávia, o Castelo de Spielberg foi remodelado durante o período austro-húngaro e convertido na "prisão das nações". Na II Guerra Mundial foi usado pelos alemães com essa mesma finalidade, e hoje é museu com exposições temporárias. Na esplanada do castelo faz-se um festival de fogo-de-artifício e concertos ao ar livre no Verão. A música clássica é uma constante em território checo. Desde a escola primária, todas as crianças aprendem a tocar um instrumento. Não se surpreenda se, ao virar de uma esquina, for brindado com os sons de um piano a ecoar a partir de uma janela, ou de um violinista a tocar no meio da rua. E isso sabe tão bem.
Foi você que pediu um paço arcebispal?
Os turcos não chegaram a entrar. Os romanos também não. Os checos sempre se orgulharam de dizer que eram cem por cento eslavos. Explica a simpática e insuperável guia que nos acompanhou por este périplo pela República Checa, Michaela Cerná, que as mais recentes provas de análise ao ADN mostram que, afinal, os checos são uma confluência de todos os povos, pelo facto de serem um país de atravessamento, situado no coração da Europa. Se alguns ficaram à porta, outros chegaram a entrar e provocaram fortes estragos no país. Tão ou mais devastadora do que as guerras religiosas hussitas, no século XV, foi a guerra dos 30 anos, com os suecos. Mais tarde, o território checo passou a fazer parte do império Austro-Húngaro. Em 1918, integrou a Checoslováquia, e só em 1993 passou a ser República Checa com as fronteiras que hoje se lhe conhecem.
País de atravessamento por excelência e com fronteiras a serem permanentemente redefinidas, não foi por uma família real (que não existe), ou por linhagens nobres que se construiu o legado da República Checa em termos de património. Foram antes os bispos, os poderosos bispos que se radicaram em Olomouc (a terceira maior cidade do país), que deixaram algumas das pérolas maiores deste país.
Um dos mais notáveis conjuntos desse legado está na cidade de Kromeríž, cujo castelo e jardins envolventes integraram a lista da Unesco em 1998. O castelo de Kromeríž é uma das peças de arquitectura mais importantes da Morávia. Fundado em 1260 por Bruno de Sachenberg, não foi de nenhuma família nobre, mas sempre do arcebispado, funcionando como residência de Verão para os bispos de Olomouc. O último arcebispo que viveu naquele castelo fê-lo até 1947. O monumento foi nacionalizado em 1950, tal como aconteceu aos mais importantes monumentos checos.
A Unesco reconheceu-o como um dos mais imponentes e bem conservados conjuntos de fortaleza e jardins do período barroco. Algumas das salas deste imponente edifício até poderão ser reconhecidas por quem viu e ainda se lembra do filme de Milos Forman, "Amadeus". As cenas de baile foram filmadas na chamada sala da Assembleia Constituinte Imperial, que foi transferida de Viena para aquele palácio em 1849, e nela se discutiu e aprovou a primeira Constituição da República.
A visita ao Palácio exige algum tempo, mas quem gosta de revisitar a história, perceber como se preparava uma recepção a um czar ou a um imperador, ou apreciar o investimento que o clero fazia em cultura não se sentirá defraudado. Para além da grandiosa biblioteca (que a nós nos fez lembrar a Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra), o castelo de Kromreíž alberga também uma valiosa colecção de moedas, e uma das mais importantes colecções de pintura de toda a Europa. São milhares de quadros, um valioso auto-retrato de Anthonys Van Dyck, "Senhor com luvas", que tem a particularidade de ter sido pintado só com duas cores, branco e castanho, ou um ciclo de pintura gótica de Pieter Brueghel. A perícia e as técnicas de outros autores como o renomado Tiziano, o reconhecido Paolo Veronese ou Jacopo Bassano também podem ser apreciados nas paredes das muitas salas deste castelo.
Depois da visita ao castelo, nada pode saber melhor do que uma incursão pelos jardins. Trata-se de dois conjuntos distintos, mas igualmente belos. O primeiro, o chamado Jardim do Castelo, foi construído em 1509, foi reconstruído e remexido, até ficar com os impressionantes 64 hectares que ostenta hoje e que são um convite a momentos de relaxamento e de lazer. O segundo conjunto, o chamado Jardim Floral, foi construído em 1665 e é um misto de estilo renascentista e barroco clássico, ao estilo francês. Se pensar nos jardins de Versailles, encontra aqui uma aproximação. A construção é feita numa forma rectangular, de 300 por 485 metros, com uma rotunda no centro onde emerge um Pêndulo de Foucault, a demonstrar a rotação da terra no seu eixo.
Na cidade de Olomouc, a cidade dos arcebispos, sobressai a Basílica de São Venceslau e o castelo de Olomouc, que teve uma função religiosa mas também secular. Diz-se que neste castelo viveram princesas da Morávia, mas no século XI foi dentro daquelas paredes que se começou a desenvolver a diocese de Olomouc. Hoje, é este conjunto arquitectónico que encerra os mais antigos vestígios do período românico que é possível visitar na Europa central.
A maior atracção turística de Olomouc é, no entanto, o pilar da Santíssima Trindade, inserida na lista da Unesco no ano 2000. A coluna, com 35 metros de altura, impressiona logo pelo lugar de destaque que ocupa na praça central da cidade. Ao contrário do que se pode pensar inicialmente, não se trata de uma das chamadas colunas de peste, que existem um pouco por todas as cidades da Europa central para assinalar a passagem da doença pela cidade, em louvor dos que sobreviveram. O Pilar da Santissima Trindade é, por si só, um pequeno templo, construído entre 1716 e 1754, e que justificou a visita da imperatriz Maria Teresa à cidade para o abençoar. Com estátuas dos 18 santos mais venerados da Boémia - onde não podia faltar o São Venceslau - a coluna tem apontamentos de cobre folhado a ouro e é o orgulho não só dos Olomoucenses, mas de todos os checos.
Na salutar rivalidade que os Olomoucenses travam com as duas cidades do país que os superam em número de habitantes (Praga e Brno), os de Olomouc gostam de dizer que têm tudo o que os outros têm - os monumentos, a vida cultural, a universidade - a uma escala que torna tudo mais amigável. E nós achamos que têm toda a razão. A jornalista viajou a convite do Turismo Checo
Litomyšl, um castelo medieval transformado num conto de fadas
O tamanho não deveria contar para nada, mas parece que quanto mais pequena e concentrada for uma cidade na República Checa mais fácil é surpreendermo-nos com o seu grau de conservação. Também ajuda haver aqui uma escola superior de restauro, e não se deve menorizar o facto de as autoridades públicas gostarem de exibir a qualidade dos seus artistas, e permitirem que as paredes de algumas casas sejam feitas com assumida inspiração na literatura checa e nas novelas negras de Vachal. A verdade é que a sensação final trazida pela passagem em Litomyšl é a de que se trata de uma cidade onde há qualidade de vida e um total respeito pelo património.
O ex-líbris da cidade é o seu castelo medieval, que no século XVI foi transformado num palácio renascentista por uma família de nobres - os Pernstein. No exterior, o palácio impressiona pelo seu revestimento, cerca de oito mil "cartas de amor", com envelopes talhados em relevo, sem que nenhuma figura se repita. No interior, para além da construção com arcadas voltadas para o pátio central, a lembrar o estilo italiano, o espaço mais marcante é o Teatro do Palácio, uma sala com capacidade para 120 pessoas, e com os cenários pintados por Dominik Worjack. Como este, só há mais quatro em todo o mundo (mais um na República Checa, dois na Suécia e um na Rússia). Não custa imaginar os nobres a visionar, a partir da tribuna, as encenações em palco, enquanto as mulheres tentavam ajeitar as largas saias e vestidos.
Também não custa imaginar o ambiente privilegiado em que nasceu o grande compositor checo Bedrich Smetana (na cervejaria do castelo). Apesar de ser "apenas" o filho do cervejeiro, apostou na música, e tornou-se num dos mais importantes compositores de ópera, todas com libreto em checo. Hoje dá o nome a um dos mais importantes festivais de música clássica da República Checa - o Litomyšl de Smetana.
Toda a colina do castelo merece passeios longos e pausados, de forma a apreciar como a arquitectura moderna convive de maneira tão harmoniosa com os espaços históricos. Bons exemplos disso são os jardins do Mosteiro, recuperados em 1999 com apoios comunitários e que hoje são um excelente local para desfrutar da cidade. Aqui apeteceu-nos parar longamente junto ao lago com um conjunto de estátuas de um famoso escultor checo, Olbram Zoubek. Quatro dessas estátuas estão posicionadas em cada um dos lados do lago, de braços abertos. Apetece ser mais uma e ficar por ali...
Como ir
A TAP tem voos diários para a capital checa com preços desde 450 euros, a partir de Lisboa, mas que variam muito consoante a disponibilidade de tarifas. A partir de Praga, através da excelente rede de cobertura das linhas ferroviárias, é muito fácil chegar de comboio às principais cidades checas e, normalmente, é mais económico do que viajar de autocarro. Por exemplo, entre Brno e Kromeriz (que distam cerca de 65 km) um bilhete de comboio custa cerca de 8 euros.
Onde comer
Há comida internacional para todos os gostos, mas, para provar a comida típica, há que arriscar uma taberna ou uma cervejaria local. Falamos em arriscar, mas o risco não é elevado.
Em Brno, a taberna Pegas (bem no centro da cidade, na rua Akubská 120/4, Tel.: +420 542 210 104) é um bom sitio para provar o Moravsky Vrabec, o "Pássaro Moravo". A carne estufada é servida com vários acompanhamentos: um feito com massa de farinha, outro com massa de batatas, e ainda um outro, com farinha, carne e ervas.
Em Praga, a cervejaria U Fleku (na rua emencova 1651/11, Tel.: +420 224 934 019) é um bom local para comer o típico goulash. Sempre com a cerveja da casa.