Fugas - Viagens

Paulo Ricca

Santa Maria da Feira viaja para a Idade Média durante onze dias

Por Sara Dias Oliveira

A Viagem Medieval em Terra de Santa Maria transforma o centro histórico da Feira num burgo do século XII. O recuo ao passado começa a 28 de Julho e prolonga-se até 7 de Agosto. Fomos espreitar os bastidores desta viagem no tempo.

É quase meia-noite e D. Afonso Henriques ensaia uma das peças à porta do castelo de Santa Maria da Feira. Há frases que se têm de ouvir e o primeiro rei de Portugal parte uma perna quando, montado a cavalo, choca com um ferrolho das portas das muralhas de Badajoz. João Pedro Almeida, da associação cultural e de recriação histórica Espada Lusitana de Lisboa, volta a vestir a pele da personagem principal da XV Viagem Medieval em Terra de Santa Maria, que começa a 28 de Julho.

É um dos primeiros ensaios, não há guarda-roupa, e as deixas ainda estão num papel à frente dos olhos. Este ano, D. Afonso Henriques está novamente em destaque naquele que é considerado o maior projecto de recriação histórica dos tempos medievais do país. Meus senhores: é da independência de Portugal que se vai falar até 7 de Agosto. Em 170 espectáculos, 135 horas de animação, 20 áreas temáticas e 33 hectares de terra.

João Pedro Almeida reúne os requisitos necessários para ser o primeiro rei de Portugal: anda a cavalo, percebe de história militar, sabe comportar-se como um guerreiro e manusear armas e desenrasca-se a falar em público. "Sou um guerreiro a brincar aos actores", diz, com um sorriso.
Desde Janeiro que está na Feira para mergulhar na personagem. Os escritos do historiador José Mattoso serviram-lhe de guia e tentou, sobretudo, perceber como é a vida de um guerreiro do século XII. Dizem que o primeiro rei de Portugal tinha 11 palmos, cabelo castanho, estatura de gigante, lábios grossos, postura de valente.

Mais do que as parecenças físicas, preocupa-se em cumprir o seu papel de guerreiro na conquista e independência do reino. Conhece a Viagem Medieval há seis anos. "Santa Maria da Feira joga na primeira divisão. A Viagem tem os melhores grupos de recriação histórica de Portugal, há uma preocupação cada vez maior com o rigor histórico, o que não é fácil, e na qualidade da animação".
Esperam-no 11 dias intensos, com poucos minutos de intervalo entre os espectáculos e em que, por vezes, descerá o bosque do castelo para encurtar caminho.

O ensaio de João Maia, da Espada Lusitana, termina com muito suor nos rostos dos "figurantes especiais". O fortim templário é atacado por um bando de mouros, há que proteger a terra e a batalha é dura. Vê-se bem daí?", pergunta-se do outro lado do rio Cáster, onde decorre a luta. João Maia é o homem dos sete ofícios. Fez pesquisa histórica, escreveu o guião, entra na cena como cavaleiro templário, coordena o ensaio. Jorge Mendes é um dos 130 figurantes do espectáculo Honra e Glória, que será apresentado todos os dias às 23h30. Cem quilómetros de ida e volta de São Mamede de Infesta pelo terceiro ano. É um mestre templário que luta até à morte para defender a sua terra. "É, sem dúvida, o maior e o melhor projecto de recriação histórica do nosso país". E a mensagem é importante. "Nós, os mais velhos, temos de fazer os possíveis para divulgar a nossa história para que os jovens não a esqueçam", refere.

Hugo Fortuna tem 18 anos e é um rei cristão de armas. Chega de Vila Nova de Gaia com os irmãos Ivo e Gil. "É uma paixão que nos acompanha desde o ano passado", garante. Alguns dias das férias são passados num ambiente do passado. "Entrar por aquelas portas é mágico e a envolvência desta Viagem é algo que não se esquece".

Prata da casa

Voltemos ao ensaio. Alguém tira as dúvidas: "Posso usar este bastão?". João Maia é ferido e há um jovem, o narrador da história, que desespera no meio da batalha. A recriação tem de ser o mais fiel possível. Os templários eram homens tolerantes e não há gargalhadas no acampamento. O espectáculo tem uma forte carga emotiva, mas é uma mensagem de paz que se pretende transmitir. João Maia destaca o espírito e o empenho do povo da Feira como ingredientes essenciais para que a Viagem Medieval seja uma referência no país. "É a festa de referência, é uma terra muito dedicada a esta causa".

A prata da casa também trabalha na iniciativa: dos 55 grupos de animação, 35 são do concelho, e as tabernas e restaurantes são geridos por associações feirenses. A companhia de artes cénicas Persona está a construir um dragão de 12 metros de comprimento que diariamente sairá do castelo em direcção à envolvente das piscinas municipais. O bicho fará o que se espera dele: deitará fumo, cuspirá fogo e assustará as pessoas. A cabeça já está pronta, é a estrutura mais sofisticada feita em fibra de vidro, com olhos que acendem e apagam. O corpo parece uma armadura. "É um dragão orgânico, um dragão guerreiro", descreve Lígia Lebreiro, directora artística do grupo. O conceito tem meses, o trabalho começou em Junho. "Criámos uma história que pudesse fazer parte do imaginário das pessoas da época". Assim é. O Grito do Dragão é o nome do espectáculo que sai do castelo às 23h45.

Sandra Sousa já foi voluntária na Viagem Medieval. Foi figurante, cambista, segurança, fez um pouco de tudo. O que era preciso. Hoje coordena essa área, o trabalho aperta e quando a Viagem começar estará ao serviço das oito da manhã às três da madrugada. Nada que a perturbe. "Temos imenso gosto pelo projecto", confessa. A seu lado estão Liliana Sousa e Marco Carvalho para coordenar os 400 voluntários da próxima recriação histórica.

Gente dos 16 aos 70 anos, de várias zonas do país, que ganhará dois euros à hora. Os 621 inscritos foram entrevistados em pequenos grupos, para agilizar a selecção. Conhecer o projecto, dominar várias línguas, ter participado em experiências semelhantes são critérios que a organização privilegia nos seus voluntários que dão o rosto pela iniciativa. A formação começou há uma semana com uma reunião para explicar tudo como deve ser: o enquadramento histórico, as novidades, os espectáculos por área, a correcta utilização do traje medieval. "De ano para ano, queremos fazer a melhor Viagem de sempre", adianta a responsável.

A Viagem Medieval começa na próxima quinta-feira às 22h00 na escadaria da igreja matriz. A chave das portas do reino será transportada por um falcão e depositada nas mãos do alcaide.

Entradas
Pela primeira vez, a Viagem Medieval tem entrada paga. Os visitantes têm de comprar uma pulseira intransmissível que custa dois euros e dá acesso ao recinto durante dez dias, de 29 de Julho a 7 de Agosto - o primeiro dia é gratuito. As pulseiras estão já à venda no Posto de Turismo da Feira, nas juntas de freguesia do concelho feirense, sedes de algumas associações, biblioteca municipal, no Centro de Informação Turística da Praça D. João I, no Porto, entre outros locais. Na envolvente do perímetro do evento, haverá 50 pontos de venda. Crianças com menos de 1,30 metros de altura não pagam entrada.

Estacionar
Os visitantes têm ao dispor 12 parques de estacionamento na área envolvente do evento. Há transfers que custam um euro de São João da Madeira, Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra e Lourosa com paragem na Viagem Medieval.

Onde ficar
É possível acampar na Quinta do Castelo de 27 de Julho a 8 de Agosto. O Campo de Lentilhas alberga maiores de 16 anos e menores desde que acompanhados pelos pais. Os campistas terão uma pulseira de acesso ao espaço. Uma noite custa 1,5 euros por cabeça, mais 3 euros pelo espaço a ocupar por uma tenda, que deverá ter capacidade máxima para quatro pessoas. Há tendas para alugar.

Crianças
Os pequenos guerreiros, leia-se crianças até aos 10 anos, têm jogos infantis à disposição inspirados nos tempos medievais das 15h00 às 23h00. Os mais pequenos têm ainda um espectáculo de percussão e workshops de pulseiras medievais, teatro e dança, entre as 17h00 e as 22h00.

Áreas temáticas
São 20 áreas temáticas, seis das quais em estreia. A aldeia é uma delas e fica nas margens do rio Cáster, onde se fazem barreiras ao inimigo para delimitar as zonas conquistadas.

Onde comer
As áreas alimentares têm cinco zonas de tabernas, quatro restaurantes de ementa diversa, um de pescado, um de carnes de caça e mais um de ementa árabe. Tudo no recinto da Viagem.

Curiosidades
Este ano, na Rua Dr. Roberto Alves, na taberna das sopas de cavalo cansado, há fogaças de louça à venda produzidas pelas sábias mãos da empresa de faianças artísticas Bordallo Pinheiro. A ideia é de Daniel Lamoso e Sónia Oliveira, que vão explorar o espaço e que querem perpetuar o pão doce da Feira numa peça de decoração. As fogaças custam entre 10 e 37 euros, dependendo dos tamanhos.
A Super Bock criou uma cerveja de autor dedicada à Viagem Medieval, inspirada no líquido produzido pelos monges no século XVII em Munique, que era um alimento consumido na época de jejum durante a Quaresma. A cerveja, fechada numa garrafa de vidro escuro semelhante à de champanhe, é uma edição limitada e exclusiva. Custa oito euros.

Banhos
Reza a História que D. Afonso Henriques tratou as suas enfermidades em banhos públicos. Na quinta do castelo, as Termas de São Jorge voltam a recriar esses momentos de relaxamento e unguentos ao som da harpa. Dois euros dão direito a banho pulverizado nas pernas, repouso e chá.

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