Fugas - Viagens

Daniel Rocha

A casa das histórias de Pedro Canavarro

Por Luís Maio

Trineto de Passos Manuel, fundador do PRD, comissário de uma das maiores exposições de sempre sobre os Descobrimentos Portugueses, Pedro Canavarro é agora, aos 74 anos, guia em sua própria casa. A Fugas foi ver a colecção e sobretudo ouvir as histórias da casa empoleirada no Morro da Alcáçova.

Memorabilia, de Passos Manuel e Almeida Garrett, uma colecção de artesanato oriental, quadros da pintora francesa Mimi Fogt, xilografias do português Pedro de Sousa - isso mais as vistas panorâmicas sobre o Tejo são os pontos altos da recentemente inaugurada Casa-Museu Passos Canavarro. Um recheio interessante, sem dúvida, mas porventura não tão excitante quanto isso. Não fora a circunstância de as visitas serem guiadas pelo mesmo Pedro Canavarro, que nasceu e ainda reside na casa colada à alcáçova de Santarém.

Trineto de Passos Manuel, Pedro Canavarro licenciou-se em História, Museologia e Conservação de Museus. Foi leitor de Português em quatro universidades japonesas, Comissário-Geral da XVII Exposição do Conselho da Europa, subordinada ao tema dos Descobrimentos Portugueses e da Europa na Renascença. Foi também fundador e deputado do PRD, autarca em Santarém e fundador da Casa da Europa. Agora, aos 74 anos, reformou-se da vida académica e política para passar a receber ilustres desconhecidos, pelo menos duas vezes por dia.

Podemos voar

Fazer de guia em sua própria casa é certamente uma aventura inédita para o ex-presidente do PRD. Pensando melhor, ele acaba por conceder que já tinha experiência de outras andanças: "Devo ter sido dos primeiros professores universitários a fazer aulas práticas como guia, em lugares como o Mosteiro dos Jerónimos e o Museu de Arte Antiga. Também fui presidente da Associação Portugal-Japão, onde guiava os caminhos dos meninos japoneses. No final do século XVI, os jesuítas conseguiram converter filhos de grandes senhores japoneses e quiseram mostrar ao Papa como o catolicismo estava generalizado no Japão. Então convenceram algumas dessas famílias a mandarem os filhos para conhecer a Europa. Em Portugal, os meninos japoneses estiveram em vários sítios, incluindo Coimbra, Sintra e Vila Viçosa."

Notaram a súbita mudança de assunto? As visitas guiadas à Casa-Museu Passos Canavarro são isso mesmo: um mergulho intenso no poço sem fundo de grandes e pequenas histórias na memória de Pedro Canavarro. "Porque é que posso ser guia? Primeiro porque estou em casa, depois porque o faço com gosto. Todos os objectos que recolhi, independentemente daqueles que herdei, têm a sua história. Diverte-me contar essas histórias e as pessoas divertem-se com elas."

A própria residência tem histórias que dão pano para mangas. O casario onde se integra terá sido erguido no alto do monte, colado à alcáçova árabe, depois conquistada por D. Afonso Henriques. Há registo visual desse casario desde o tempo de D. Fernando (século XIV), mas estava em ruínas em 1841, quando foi adquirida por Passos Manuel. A compra deu-se pouco depois do seu casamento com uma aristocrata de Constância, numa altura em que ele se tinha reformado do cargo de Ministro do Reino (cargo similar ao de primeiro-ministro). Santarém, longe e ao mesmo tempo perto do principal palco político do país, era o local perfeito para um político que, como todos, se afastam sem nunca realmente se afastarem. O casal teve três filhos, mas os bens da família mantiveram-se indivisíveis até que o avô de Pedro Canavarro morreu, em 1947, e os seus sete descendentes procederam a partilhas.

A missão que Pedro atribuiu a si mesmo foi a de reunificar a herança, logo a começar pela casa. Depois, à entrada do novo milénio, quis abrir um novo ciclo, criando a Fundação que hoje gere a propriedade. Levou dez anos, ou um pouquinho mais, a preparar a casa para visitas e a introduzir adaptações numa perspectiva museológica. "A casa pertence à Fundação mesmo antes de abrir ao público, mas sou eu quem dela tem o usufruto. Achei que era importante abrir ao público, primeiro porque é necessário rentabilizar. Por outro lado, tenho consciência - sobretudo neste período de interregno em que vivemos desde o 11 de Setembro - que é fundamental dar a conhecer berços às pessoas. Desde que conhecemos os nossos berços, seja a nível familiar, de cidadania ou nacional, podemos voar porque sabemos de onde vimos."

Entramos no sustento doutrinário da casa-museu de Santarém: "Tem a vertente histórica ligada aos espaços henriquinos, o aspecto político do Passos Manuel e ainda o aspecto literário conotado com o Almeida Garrett, que imortalizou esta casa [na obra] Viagens da Minha Terra. Eu, que sou sobretudo um homem do século XX, também consegui dar-lhe um humanismo peregrino, quando fui, com 28 anos de idade, criar o leitorado de português no Japão. Daí, aliás, ter começado cedo a trazer coisas de lá." Entretanto a casa tornou-se mais galeria de arte em virtude de importantes doações de obras de Mimi Fogt e de Pedro de Sousa.

Cada sala é um mundo

Santarém fica obviamente a ganhar com a abertura da Casa-Museu Passos Canavarro, porque representa um novo pólo turístico, mas também porque este é diferente dos outros já consagrados na cidade ribatejana. É o guia-proprietário quem declara: "Santarém tem um património religioso riquíssimo, mas um património profano menor. Este museu pode ser um complemento, ao nível da colecção de objectos que aqui tenho e da própria dinâmica da visita. Não haverá maravilhas de embasbacar, mas é uma combinação interessante de casa, jardim, paisagem e galeria de arte."

O que se visita, afinal, na Casa-Museu Passos Canavarro? A resposta é simples e surpreendente: tudo o que tem lá dentro. Ou seja, aqui não há demarcação entre espaços públicos e privados, como é costume quando estas instituições ainda são habitadas. "Toda a casa é visitável, é uma questão de atitude minha. Eu nasci no quarto onde ficou Almeida Garrett, que é precisamente aquele onde vivo hoje. As pessoas perguntam-me: 'E se um dia apanhar uma gripe ou estiver mal disposto?' Eu digo: 'Não sei. Escondo-me? Ponho uma máscara? Ou pagam o dobro para ver o doente?' Logo veremos..."

Pedimos a Pedro Canavarro para seleccionar as jóias da colecção e os pontos altos da visita guiada. Ele começa pela Sala dos Mapas, divisão que deve o nome ao conjunto de cartas penduradas nas paredes, que datam do século XVI. Não se conhece o(s) autor(es), mas sabe-se que foram produzidas para ilustrar uma cópia do manuscrito de D. João de Castro, que documenta as viagens dos portugueses de Goa ao Suez, no ano de 1541. Aqui estão 15 dos 16 mapas originais, o que certifica a raridade do conjunto, para mais em notável estado de conservação.

O destaque que se segue fica na porta ao lado, mas representa uma mudança radical de universo. Entramos na Galeria Mimi Fogt, um dos dois espaços da última residência de Passos Manuel actualmente convertido em espaço de exposição. Mimi (1925-2005) nasceu e viveu a juventude em Paris, vindo depois a passar temporadas nos Estados Unidos e no México, onde veio a ganhar o hábito de ler Eça de Queiroz. Em 1976, recorda Pedro Canavarro, "decidiu vir conhecer o país do Eça e quando cá chegou ficou apaixonada pela luz, que considerou ser melhor ainda que a da Grécia". "Acabou por resolver ficar."

A colecção doada inclui nus, paisagens e retratos, sendo este último sector aquele que mais chama a atenção, quando recorda gente tão famosa quanto Diego Rivera, Marcel Duchamp, Man Ray e Norman McLaren, com quem Mimi privou nos seus anos de boémia parisiense. Entre as celebridades retratadas está o próprio Pedro Canavarro num momento charneira da sua vida: aos 40 anos, quando enfrentou o divórcio e a morte do seu pai. É talvez o mais memorável de vários retratos do proprietário que se encontram espalhados pela casa - há mais dois logo no corredor seguinte, um da autoria de Fernando Chamorro, outro de Joe Plaskett, ambos também da segunda metade dos anos 70.

O museu é ele

Os retratos são chaves para uma personalidade que se vai desvelando à medida que circula nos seus próprios aposentos. A entrada no quarto em que nasceu e onde hoje dorme é, nesse aspecto, um momento crucial da visita. Trata-se, provavelmente, da melhor divisão da casa, da qual se desfruta de vistas desafogadas sobre o Tejo e a campina. Tem o fascínio suplementar de ter sido a divisão que recebeu a visita de Almeida Garrett (pequeno retrato e carta na parede), amigo e cúmplice político de Passos Manuel. O que mais chama a atenção, no entanto, acaba por não ser nada disso, mas a colcha de seda chinesa, que ocupa uma parede inteira, mesmo por cima da cama de Pedro. Ele esclarece: "É uma colcha com 300 anos, mas está impecável. É a única que se salvou (de seis que havia na casa dos Canavarros em Vila Pouca de Aguiar), segundo consta porque uma criada a escondeu debaixo de uma cama. Mas não estava exposta, era só usada para o genuflexório dos que casavam. Até que, quando chegou à altura do meu casamento, eu disse: 'Não me vou ajoelhar nela, vou é pendurá-la na parede'."

Passamos pela Sala Tejo, onde se encontra o melhor da colecção construída pelo actual proprietário, incluindo originais de Cargaleiro, Cruzeiro Seixas, Arpad Szenes e sobretudo uma esplêndida Peixeira, desenhada a tinta-da-china por Almada Negreiros. Tem uma história peculiar, como não poderia deixar de ser. "É o único desenho que representou Portugal na Exposição do Desenho de Madrid, nos anos 20 do século passado". Até que chegamos à sala Passos Manuel, aquela que se destina a celebrar a memória do prestigiado estadista e da sua descendência. A colecção inclui desde as suas jóias maçónicas até uma nota de 50 escudos de 1920 com o seu busto estampado.

Todos estes detalhes, incluindo a árvore genealógica montada pelo próprio Pedro Canavarro, convergem para colocar Passos Manuel num pedestal. Se o seu relevo no contexto das lutas liberais e muito depois disso é inquestionável, por outro lado não se poderá dizer que hoje seja das figuras mais populares da nossa história. Pedro Canavarro discorda: "Não é uma fase tão esquecida quanto isso. A Academia de Belas Artes está neste momento a preparar os 150 anos do vintismo e depois os grandes valores da República vão-se todos inspirar no Passos Manuel e nos ilustres tribunos dessa época. O que eu acho que está esquecido e era muito interessante fazer era um roteiro da democracia - um aspecto em que o Ribatejo é rico, de Braamcamp Freire a Salgueiro Maia, passando por José Relvas e Humberto Delgado."

Agora que falamos nisso, a Casa-Museu Pedro Canavarro é uma das raras moradas públicas que prestam tributo à história da democracia em Portugal. O que poderá ser fascinante para uns, no entanto, soa um bocado agreste, ou mesmo como uma grande seca para outros. Mas não é tudo, nem sequer a parte maior da visita. Aliás, a Sala Passos Manuel é única e até uma das divisões mais exíguas da casa. Atravessando o pátio ajardinado, entra-se na Sala do Piano e de novo num universo completamente diferente. É o mundo dos souvenirs trazidos das estadias de Pedro Canavarro no Oriente, nomeadamente do seu tempo como leitor de Português no Japão, na segunda metade dos anos 60.

Há um calendário astrológico da Indonésia, uma figura do teatro de sombras de Java, também na Indonésia, um estojo de bambu de Timor, mas sobretudo muitos bules e máscaras, tanto indonésias como japonesas. Pelo meio encontra-se uma vitrina com pequenas peças eróticas dos quatro cantos do mundo e as xilografias de Pedro de Sousa, muita na linha da arte gráfica da lendária revista RAW.

A articulação das peças reunidas na Sala do Piano é duvidosa, a sua relação com Passos Manuel e Mimi Fogt é ainda mais questionável. Acaba, no entanto, por ter tudo a ver com Pedro Canavarro, a luz que realmente ilumina a visita. Nessa mesma Sala do Piano há um par de nus femininos, assinados por Hirosuke Watanuki, que muitos gostariam de ter na sala, mas poucos curadores aceitariam num museu de primeira classe. Ganham, porém, outra graça quando Pedro explica: "Foram as primeiras obras que comprei na vida. Estes dois nus femininos eram para ser comprados pelo nosso embaixador no Japão, em 1966. Mas a mulher dele, que era uma alemã muito puritana, não achou que fossem dignos de estar na parede da Embaixada e eu puxei o autor para um canto e ofereci-me para comprar. Ele confessou-me: 'Acho que sou o primeiro pintor na história que interrompe um acto sexual para o pintar. Mas nunca te direi qual dos nus representa o antes e qual representa o depois'." Pedro Canavarro é a sua própria casa-museu.

Casa-Museu Passos Canavarro
Largo da Alcáçova 1 Tel.: 243 325 708/9
E-mail: casa-museu@fundacaopassoscanavarro.pt
http://fundacaopassoscanavarro.pt/
Visitas guiadas às 11h00 e às 15h00, todos os dias excepto à segunda-feira.
Bilhetes a 5€ para adultos, 3€ para estudantes e seniores. Gratuito para os menores de 12 anos.

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