As palavras de Vítor interrompem a melodia do correr da água e cantar das cigarras que aos ouvidos citadinos ainda parece estranha, mesmo depois de um dia de imersão no vale do Mondego. "Isto é o Algarve do interior", diz, apontando para o cenário à sua volta, no qual, a esta hora, pouco se distingue para além dos incontáveis pontos brilhantes que cobrem o céu. Reconhecemos o contorno da serra por uma série de luzes intermitentes vermelhas. São dos aerogeradores plantados a 940 metros de altura, de onde se avista toda a paisagem do vale do rio, e por onde planeamos começar o nosso percurso pedestre no dia seguinte.
O caminho, apelidado de "trilho da água" pela câmara da Guarda, também se pode iniciar 400 metros antes, junto ao chafariz da Dorna, situado numa das mais antigas entradas da cidade mais alta de Portugal. Ao todo, a rota sugerida tem pouco mais de sete quilómetros, que demoram cerca de duas horas a ser percorridos, dependendo do ritmo do passo de cada um. No desdobrável promocional, o "cidadão urbano" é convidado a "revisitar o vale do Mondego". Foi o que fizemos.
O passeio é indicado mesmo para quem não é muito dado a longas caminhadas, e é incontornável para quem quer apreciar a plenitude das paisagens agrestes do vale e a tranquilidade do ambiente natural da serra, onde, durante todo o percurso, não nos cruzamos com uma única pessoa.
Há também a possibilidade de percorrer parte do mesmo de carro, o que permite vislumbrar apenas uma amostra das vistas sobre o vale e da flora que o reveste. Mas mesmo essa amostra vale a viagem até ao topo da serra, para ver o fim do dia cobrir as searas de tons de dourado.
Para a caminhada a pé, tivemos a sorte de conseguir uma boleia em direcção à Guarda, que nos deixou junto aos modernos moinhos de vento. Mas é possível também apanhar um táxi na aldeia. Ou ainda, para quem estiver disposto a começar o dia bem cedo, é possível subir a serra de camioneta. De segunda a sexta-feira, a "camioneta dos trabalhadores" faz a ligação à Guarda, com partida às 7h00 da Aldeia Viçosa, mas convém confirmar os horários junto da companhia rodoviária, porque variam consoante a altura do ano.
Outra opção, "se a coragem não faltar", avisa o cartaz promocional do trilho, é percorrê-lo de volta, a subir, para quem parte da Guarda no planalto, ou a descer, para quem vem da aldeia no vale. Neste caso é preciso escolher bem as horas para partir para esta aventura, visto não ser aconselhável fazer uma caminhada ao sol durante as horas mais quentes do dia.
Começamos então, bem cedo para aproveitar o ar fresco da manhã, junto aos cata-ventos gigantes, que, não fossem as esporádicas manifestações de descuido humano na recolha de lixo, seriam a única marca da presença do homem contemporâneo durante a parte inicial do percurso. O mesmo não se pode dizer das pegadas históricas deixadas por estes lados.
Poucos passos no caminho que rasga a vegetação e começamos a avistar vestígios de ocupação humana que remonta à Idade do Ferro, como uma cruz cravada num bloco de pedra, perdido no meio da seara. Entre formações esculturais naturais de granito, rodeadas de rosmaninho e flores de camomila, seguimos por um trilho, ajudados pela sinalética pintada para o efeito pelo caminho: duas riscas paralelas na horizontal, uma amarela e uma vermelha quando se está a ir pelo caminho certo, uma cruz na direcção errada, ou setas nas mesmas cores a indicar o caminho que devemos seguir. O posto de turismo da Guarda adverte para o facto de parte da sinalética ter sido vandalizada, pelo que importa ter algum cuidado durante o percurso - e isto talvez explique a nossa dificuldade em encontrar a segunda parte do percurso, depois de cruzarmos a estrada nacional.
Mas até aí não foi difícil seguir o caminho indicado, embalados pela suavidade da brisa na seara e com a ajuda do mapa impresso no desdobrável, até ao miradouro de onde se avista o sítio arqueológico do Castro do Tintinolho, Monumento Nacional oficial desde Junho de 1910.
Erguido em plena Idade do Ferro, o povoado do Tintinolho terá sido reutilizado durante a época romana e medieval. Ao passear pelas ruínas ainda é possível reconhecer partes da linha de muralha e, de acordo com informação disponível na página do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), é possível que este monumento estivesse "associado ao sistema viário romano que passava no vale do Mondego, como parece denunciar a existência de uma calçada lajeada nas suas proximidades".
É parcialmente por esta calçada que prosseguimos o caminho, até darmos de caras com a Estrada Nacional 16. Consultamos o mapa: falta só cerca de um quilómetro para chegarmos ao ponto final do trilho, a praia fluvial da Aldeia Viçosa. Enquanto descemos o que falta da serra, até à margem direita do Mondego, paramos constantemente para confirmar a distância até ao destino. Já falta pouco, num caminho onde continuamos a ser acompanhados apenas por borboletas e outros insectos, apesar de atravessarmos pequenas povoações habitadas.
Chegamos então ao nosso destino, que promete refrescar-nos após a caminhada. À entrada, é cobrado um euro a cada visitante, mas os hóspedes da Quinta do Moinho estão isentos do pagamento. Passamos o parque de estacionamento, onde se avistam duas ou três matrículas francesas e belgas, e contornamos a cortina de fumo vindo dos churrascos ocupados por várias famílias para preparar o almoço, que depois é consumido nas mesas de madeira espalhadas pelo relvado, até porque o único estabelecimento no local, o Bar da Praia Azul, vende pouco mais do que bebidas, gelados e batatas fritas.
São maioritariamente as crianças que mergulham nas águas límpidas do rio, rodeadas de árvores e imersas numa paisagem bucólica, que seria potenciada se o som da água a correr por entre as pedras escorregadias não fosse abafado pela batida comercial da música difundida por todo o espaço. Mas a animação parece ser bem-vinda por parte dos visitantes da praia fluvial. À porta da casota de madeira onde funcionam as casas de banho, um homem idoso, de chapéu-panamá, move as ancas ao ritmo da música, apoiado na sua bengala.
O recinto tem ainda um campo de jogos e uma piscina artificial com um escorrega, que abre apenas algumas horas por dia. À noite, o espaço é também palco de animação, como anunciam os posters afixados no bar. Houve já as festas do francês e do brasileiro, e, para meados de Agosto, está marcado o concurso Miss Praia Fluvial.
Recuperados os músculos após uma sessão de hidroterapia natural e descanso numa plataforma de madeira sobre o rio, estamos prontos para prosseguir viagem.
Depois de sete quilómetros de caminhada serra abaixo, o que são mais três até à Quinta do Moinho, onde ficámos alojados? Apesar do esforço agravado pela posição do sol, que tornou pesado o ar de um dia de Verão, o passeio permite visitar calmamente as ruas da Aldeia Viçosa, com as suas casas tradicionais bem conservadas, a praceta da igreja matriz, onde, em 2000, foi identificada uma tábua do pintor Grão Vasco, e a ausência de vida de uma tarde soalheira que obriga os habitantes a refugiar-se na frescura do interior das suas habitações.
Apenas o som dos nossos próprios passos interrompe o zumbido das moscas no percurso pacato que atravessa a aldeia em direcção ao Parque Natural da Serra da Estrela. No horizonte, os aerogeradores, cuja base quase tocámos de manhã, parecem agora inalcançáveis no cimo da serra.
Acorrentadas à placa que indica o início da aldeia estão três bicicletas enferrujadas, que parecem esquecidas, ou talvez ali colocadas de propósito como uma homenagem à localidade. Mais tarde descobrimos, através de uma das muitas histórias contadas por Vítor, que foram ali colocadas para serem vendidas pelo homem, já falecido, que vivia na casa amarela do outro lado da rua, conhecido pela sua especial habilidade na construção de todo o tipo de geringonças.
A serra de Verão
No lugar onde as horas parecem não passar, o dia dá ainda tempo para uma pequena excursão ao pôr do sol, desta vez de carro, até à ponte romana que faz a ligação entre Pêro Soares e Vila Soeiro. A pouco mais de seis quilómetros da Aldeia Viçosa, a ponte pode ser alcançada passando pelo Parque Natural da Serra da Estrela (caminho mais curto), ou passando pela aldeia da Faia. Como ambos os caminhos são merecedores de uma visita, decidimos alternar o de ida e regresso, com uma incursão pelas ruas estreitas da Faia, a esta hora já mais agitadas, com os habitantes, na sua maioria idosos, sentados à porta das suas casas a lançar olhares curiosos aos visitantes de fora.
Deixamos o carro na margem esquerda e atravessamos a ponte a pé, com algum cuidado visto que a construção apenas tem largura para pouco mais do que um automóvel. Chegados ao outro lado, percorremos caminhos que parecem pertencer às traseiras das habitações plantadas margem abaixo, e cruzamo-nos mesmo com um grupo de residentes sentados no pátio de sua casa, de cartas de jogar na mão e garrafas de cerveja pousadas em cima da mesa. Descemos até junto à água, cuja corrente se vai esquivando das formações graníticas no seu percurso, e que podemos acompanhar passando por baixo dos arcos redondos de pedra.
Engolidos pelas duas encostas do rio, envolvidos num calor fatigante, mesmo quando a luz diurna já começa a escassear, é difícil imaginar os declives viçosos cobertos de neve e as baixas temperaturas de Inverno pelas quais a serra da Estrela é mais conhecida aos olhos dos visitantes.
Mas há uma serra da Estrela no Verão, feita de dias azuis e quentes e noites frescas e estreladas, mergulhos no rio e passeios nas searas. Vítor prefere-a no Inverno, mas critica o seu subaproveitamento na época estival. "O Vale do Mondego é o Algarve do interior", repete várias vezes durante a nossa estadia. E Vítor gostaria de o ver aproveitado como tal. µ
Os amigos da família
Natural da Guarda, há oito anos, comprou, juntamente com a sua mulher Sílvia, a Quinta do Moinho, mesmo em cima da margem esquerda do Mondego, em pleno Parque Natural da Serra da Estrela. Na altura, conta, "os carros não vinham cá" e o moinho nem se via, engolido pela vegetação. A quinta tornou-se a sua casa desde o início, mas sempre tiveram a vontade de partilhar aquele recanto escondido no vale. A partilha começou com festas com os amigos aos fins-de-semana. Aos poucos, as casas foram sendo restauradas e, há três anos, concretizaram o projecto de transformar a quinta num espaço de Turismo de Natureza.
Mas os hóspedes continuam a sentir-se como amigos da família, como se esta, agora com mais um elemento, lhes abrisse a porta de sua própria casa. No livro de visitas, aliás, é rara a entrada que não menciona o facto de a Quinta do Moinho fazer os seus clientes sentir-se "em casa" ou "em família". À entrada da quinta, é Leão, um serra da Estrela, como não poderia deixar de ser, deitado à porta da sua casota, que nos dá as boas-vindas à quinta. A "recepção" é a sala de jantar ao ar livre da casa principal, onde residem os seus proprietários, que fazem questão de ser tratados pelo nome próprio.
À chegada, Sílvia mostra-nos os recantos do espaço, acompanhada por Fifi, uma pequena cadelinha que está com o casal "desde o início".
O som da água a correr no rio enche todo o espaço, desde o cantinho de leitura, junto à estátua estilizada de D. Dinis, até ao pavilhão de eventos, também utilizado como parque de estacionamento. As piscinas naturais e os açudes que ladeiam o terreno atraem não só os hóspedes da Quinta, como residentes das aldeias nas proximidades. Sentados nas espreguiçadeiras viradas para o Mondego, podemos observar, durante toda a tarde, grupos de pessoas a aparecer por detrás das rochas do lado oposto do rio, onde repousam sobre as pedras aquecidas pelo sol ou aproveitam as águas profundas para saltos e acrobacias.
"No Verão vimos sempre para aqui", conta Ricardo, um rapaz da aldeia vizinha da Faia, com o cabelo loiro ainda a pingar do mergulho na água. "Aqui dá para saltar, na praia fluvial não dá", explica, enquanto gesticula para que os amigos se afastem do seu caminho para que possa saltar, de novo, para dentro do rio.
Do lado de cá, amarrados a um cais improvisado, uma gaivota e um barco a remos de plástico balançam um contra o outro junto à margem. Próximo deles, desagua o canal construído para passar pelo moinho que dá o nome à quinta e que foi transformado numa espécie de museu de ferramentas tradicionais. Desde o ano passado que uma das mós já está a funcionar e, no futuro, a anfitriã Sílvia espera que se possa voltar a fazer pão aqui. Junto ao moinho, um reservatório circular de água com pouca profundidade é utilizado como piscina para as crianças mais pequenas.
Passeando pela margem em direcção a montante do Mondego, passamos pela parte mais bravia da propriedade, em que o arvoredo cresce mais alto e a placidez é ainda mais intensa. Uma sugestão: deixar o telemóvel e o leitor de música no quarto, não levar nada para além do fato de banho e calçado (a vegetação térrea nem sempre é confortável) e deixar-se afundar nas águas refrescantes da clareira nas traseiras da quinta, apreciando o jogo de luzes entre os raios solares e as folhas do arvoredo circundante, e tendo como única companhia os delicados alfaiates que deslizam à superfície da água e alguns peixes que nadam à nossa volta, como se a nossa presença não os perturbasse.
Do outro lado, mesmo junto à entrada, há um outro espaço onde podemos desfrutar da tranquilidade e frescura da quinta, criado especialmente para o efeito, mas de tal forma dissimulado na natureza que parece ter crescido assim sozinho. É o cantinho de leitura: uma varanda natural à altura da copa das árvores que crescem na margem, protegida por uma vedação, e com um banco e uma mesa de pedra onde nos podemos acomodar e entregar-nos à leitura sem qualquer distracção para além do chilrear dos pássaros.
Ao todo, o alojamento é dividido em cinco apartamentos equipados com sala e cozinha, são as "casas retiro" do Rio, do Moleiro, do Paraíso, do Mondego e do Sol, instaladas nos edifícios tradicionais de granito, alguns dos quais com varandas ou terraços com vista para o rio, e decoradas de forma simples e tradicional (com excepção da Casa do Sol, com um toque mais moderno).
Para além de um pavilhão coberto destinado à organização de eventos, a quinta tem ainda, num terraço elevado em relação ao rio, um espaço para churrasco ao ar livre com uma mesa de jantar comprida.
Das 8h00 ao meio-dia, as mesas de madeira, uma por cada casa retiro, estão postas no salão de convívio, para saborearmos a primeira refeição do dia com calma. Os horários de pequeno-almoço, como tudo o resto neste espaço, são feitos à medida do descanso dos hóspedes, que chegam à procura da tranquilidade da serra e acabam, muitas vezes, por regressar.
A Fugas esteve na Aldeia Viçosa a convite da Quinta do Moinho
Como ir
Quem vem do Porto, deve apanhar a A25 em direcção à Guarda e sair na saída 27, em direcção a Celorico da Beira/Trancoso. Vire à direita, no sentido Lageosa do Mondego e continue na EN16 até ao cruzamento para Aldeia Viçosa/Quinta do Moinho. Siga as indicações para o local de destino. De Lisboa, apanhe a A23 para a Guarda e saia um quilómetro depois do Túnel de Benespera, na saída 35 em direcção a Guarda/Sabugal. Na estrada vai encontrar cinco rotundas seguidas. Deve seguir, por ordem, pela terceira, segunda, quarta (Via de Cintura Externa da Guarda), primeira e segunda saídas, esta última em direcção Vale do Mondego/EN16. Pela Estrada Nacional, vai chegar a um cruzamento à esquerda com as indicações Faia/Aldeia Viçosa/Quinta do Moinho, siga as placas para o destino.
Onde comer
Miradouro do Mondego
Situado a meio da serra, com vistas privilegiadas sobre o vale do Mondego, serve pratos tradicionais, como cozido à portuguesa ou pratos de peixe do rio, num ambiente tradicional.
Estrada Nacional 16, Faia
Tel.: 271 926 268
Restaurante Sol e Neve
As especialidades incluem feijoada de marisco e cabrito assado, e é ainda possível saborear o típico e local Queijo da Serra.
Estrada Nacional 16, Lajeosa do Mondego
Tel.: 271742280