Ulisses puxa os caracóis para trás e faz contas de cabeça. "Ando aqui há 32 anos", calcula. "Aqui" quer dizer a fazer surf. "Em 1973 éramos uns dez surfistas na zona de Lisboa. Começámos em Carcavelos, depois na Costa de Caparica, e conhecemos uns australianos que vinham de Marrocos e já faziam surf aqui." Em Portugal não se vendiam pranchas, por isso os portugueses compraram as dos australianos quando estes se foram embora. "Nem fatos tínhamos. De Inverno fazíamos surf com camisolas de lã preta."
Eram os tempos em que o surf era visto "como um desporto de drogados" - e a heroína matou de facto alguns dos amigos de Ulisses. Estrangeiros, vinham poucos. Alguns australianos, nada mais. Só nos anos 1990 é que as coisas começaram a mudar. Ulisses entretanto partiu, viveu 15 anos na Austrália e foi aí que percebeu que abrir uma escola de surf podia ser uma boa ideia.
Hoje vive na Ericeira, onde abriu a Gipsy on the Move, e, desde Janeiro, a Blue Ocean, uma parceria com a Câmara de Mafra. E tem um surf camp, onde oferece um programa para estrangeiros que inclui desde os transferes do aeroporto, aulas, refeições e estadia - numa quinta antiga, com mais de 200 anos, com um pomar, muitas camas-beliche e um patiozinho para comer cá fora. "De Verão tenho mais iniciados, de Inverno tenho outro tipo de cliente, que já sabe fazer surf mas quer um guia."
As escolas de surf foram nascendo na Ericeira como cogumelos. Uma das grandes marcas mundiais, a Quiksilver, patrocina o mais famoso surfista português, o campeão Tiago Pires, mais conhecido como Saca, e abriu agora um grande espaço na Ericeira, com loja, bar, lounge, skate park e uma escola de surf apoiada por Tiago Pires.
Ulisses Reis não tem dúvidas sobre o valor da zona. "As melhores ondas do país estão aqui, em quatro quilómetros: Pedra Branca, Reef, Ribeira d'Ilhas, Cave, Crazy Left, Coxos, que é uma das melhores ondas desta costa, e São Lourenço, que para ondas grandes é uma das melhores áreas do país." Lamenta que só há pouco tempo é que as pessoas "tenham começado a abrir os olhos" para este potencial. "Perdemos já em relação a outros sítios do mundo."
E mesmo assim... chegamos ao centro da Ericeira e só se vêem lojas de produtos ligados ao surf. Ulisses tinha-nos dado o contacto de Nuno Ribeiro, da Board Culture, marca portuguesa, confortavelmente instalada entre as grandes marcas internacionais. Entramos na loja. "A marca teve um crescimento tão grande que nos surpreendeu", confessa Nuno, enquanto atende um cliente que procura uns óculos escuros. Têm lojas na Ericeira e em Carcavelos e há quatro anos que Nuno se dedica a tempo inteiro ao negócio.
Há seis anos, não imaginavam que as coisas evoluíssem assim. "Tivemos a sorte de ter na nossa década o melhor surfista [Tiago Pires] e isso trouxe um boom ao surf, com as grandes marcas a apostar nele. Mas estamos atrasados em relação à França e a França está atrasada em relação aos EUA e à Austrália", diz. No entanto, tem (também ele) uma certeza: "Não há na Europa sete quilómetros como estes. Quem faz surf sabe disso. O que é preciso agora é chegar aos outros. A Ericeira vila piscatória ou do marisco já foi ultrapassada pela Ericeira do surf. Já nos chamaram a Gold Coast da Austrália, ou a Califórnia - nenhum outro país da Europa tem isto."
Se as grandes marcas dominam, por exemplo, o mercado dos fatos, já com as pranchas as coisas são diferentes. Ter uma prancha feita em Portugal é garantia de ter uma prancha personalizada. É, aliás, isso que fazem os Budd, pai e filho, sul-africanos instalados numa pequena fábrica perto da Ericeira.
Quando chegamos, só está o pai, Cyril, 58 anos, bem-disposto, aperto de mão enérgico, inglês com sotaque sul-africano. "O meu filho é que é o shaper", vai dizendo, enquanto nos leva para o interior da fábrica e conta que quando era miúdo e vivia na África do Sul tinha pouco dinheiro e começou as fazer as suas próprias pranchas, no quarto de casa dos pais. Mais tarde abriu um negócio em Durban, depois em Espanha, e agora Portugal. O filho, Luke, está para chegar. Vamos conhecendo a máquina computorizada com a qual Luke desenha as pranchas. "Portugal tem o melhor surf da Europa", garante Cyril. "Há muita gente a vir de toda a Europa, sobretudo do Norte, e muitos americanos também."
Luke aparece, caracóis loiros, olhos claros, bronzeado dos dias de praia e surf. Explica o que os clientes esperam de uma prancha: "Normalmente querem que seja rápida, fácil de virar, adequada ao peso deles. Aparecem aqui com uma prancha de que gostam, dizem o que não funciona e eu tento aproveitar os pontos bons e melhorar os maus." Na África do Sul, Luke chegou a ficar em 5.º lugar num campeonato de surf. E o que tem para dizer da Ericeira é aquilo a que, por esta altura, já nos habituámos a ouvir: "É a melhor costa da Europa. Aqui, em 30 minutos de bicicleta, temos oito bons sítios para fazer surf. Ericeira is very unique."
António Batalha, 18 anos, sabe isso desde pequeno. Nasceu aqui, o pai foi "um dos primeiros a fibrar pranchas" e ele aos dez anos começou a andar nas ondas. "Para mim, foi muito bom porque o surf acalma muito." Estamos sentados no pátio da casa, o mar lá ao fundo e António está a contar como ao princípio teve aulas com Ulisses. Há já três anos que dá aulas também. Gosta sobretudo de ensinar as crianças - como aquela menina que "no início nem conseguia pôr os pés na água", mas que António conseguiu que "fizesse uma onda, em pé, sozinha".
O surf mudou a Ericeira, isso é certo. Mas até onde poderá ir? "Não há muito tempo a vila era dividida e os de um lado andavam à pancada com os do outro", recorda. "Somos um país que sobrevive graças ao turismo, e o turismo ligado ao mar. Acho que é positivo e deve ser aproveitado ao máximo. Se era para transformar isto num segredo, num milagre do surf, isso era há algum tempo. Já passámos essa fase. Agora devemos aproveitar o melhor possível." Como fez Peniche, por exemplo, ao apresentar-se como a Capital da Onda. O caminho é por aí, acredita António. "Mas se continuarmos a usar slogans do tempo da monarquia, como "Ericeira, onde o mar é mais azul", não conseguimos atrair a juventude."
Ondas Ericeira
Uma das grandes vantagens da Ericeira é a grande variedade de ondas que é possível encontrar num pedaço de costa relativamente pequeno. Há fundos de areia, os chamados beach break (São Julião, Foz do Lizandro), que são ideais para quem está a começar; e fundos de rocha/point break ou de recife/reef break (na Pedra Branca, onde o swell/ondulação vem de águas profundas, o que torna a onda muito forte, no Reef, e na Ribeira d'Ilhas, uma das ondas mais compridas da região). A Crazy Left, na praia dos Coxos, que quebra sobre uma bancada de pedra, é tubular e é uma das ondas mais admiradas da Ericeira. E há ainda São Lourenço, com fundo de rocha coberta com areia.
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Este artigo foi publicado inicialmente na revista PÚBLICA de 30/07/2011 integrado numa reportagem global sobre o surf em Portugal, "Surfar para sair da crise" (disponível mediante assinatura)