Ser bonito costumava ser um bónus, não a qualidade principal. Não o suficiente para uma montanha, um castelo ou um mosteiro entrarem para O Melhor de Portugal. A popularidade desses sítios adveio quase sempre de luzes espirituais e chaves simbólicas. Toda uma mística acumulada através dos tempos, que hoje tende a perder significado e já raramente é mencionada nos guias como mais do que anedota turística.
Quer isto dizer que, se visitamos e até votamos cada vez mais maravilhas de Portugal, muito provavelmente também percebemos cada vez menos a verdadeira génese desse deslumbramento. Jóias naturais e patrimoniais são reduzidas a uma atenção estritamente superficial, sem dar crédito às razões profundas que levaram à sua celebração. Há, nesta perspectiva, um país inteiro que conhecemos sem realmente conhecer, que muitos estão fartos de percorrer, mas com que (quase) mais ninguém comunica intimamente. Nesta perspectiva, em Portugal está tudo por (re) descobrir.
Dar a conhecer o país para além dos postais é a missão assumida por Paulo Alexandre Loução (Lisboa, 1964) no recentemente editado Lugares Inesquecíveis de Portugal. Ele é professor na Escola de Filosofia Nova Acrópole, investigador no Instituto Hermes, coordenador do Círculo de Estudos de Matemática e Geometria Sagradas Lima de Freitas, vice-presidente da Associação Cultural Luso-Persa e, paralelamente, tem uma série de ensaios publicados sobre a história e os mistérios de Portugal. É nesta sequência que aparece Lugares Inesquecíveis de Portugal, com o subtítulo Viagens com Alma, e enriquecido com a colaboração de nove autores convidados.
A revisitação de monumentos e mais atracções clássicas do país, interpretados num prisma místico/esotérico, alterna com a sugestão de outros destinos nacionais a que atribui magia similiar, mas que não constam em nenhum panfleto turístico do país. Lugares Inesquecíveis é, portanto, um guia de sítios que dimanam uma vibração especial, capaz de induzir no visitante experiências místicas, ou, como dizia Fernando Pessoa, fazer sentir os símbolos. Loução é dos que acredita que há paisagens com o condão de transformarem o visitante, reconduzindo-o ao âmago do ser interior. Para ele, tal como para Teixeira de Pascoaes, toda a viagem genuína é dupla, no sentido de ser ao mesmo tempo exterior e interior.
Pedimos a Paulo Loução um top de lugares mágicos de Portugal. Tomar é porventura inevitável para quem antes escreveu Os Templários Na Formação de Portugal (doze edições). Já as restantes entradas são menos óbvias, incluindo destinos pela primeira vez mencionados na imprensa turística.
Tomar
Tomar, assegura Paulo Loução, é a "cidade templária mais importante do mundo". Os seus principais monumentos estão carregados de simbolismo, alguns inclusive ainda aguardam decifração. Mais do que este ou aquele edifício, no entanto, é o próprio desenho da cidade que se presume corresponder a um plano esotérico, gizado por Gualdim Pais, o famoso mestre português da ordem do Templo.
Ao fundar a sede nacional da sua ordem em 1160, Gualdim terá seguido o arquétipo urbanístico da mentalidade iniciática, escalonando a cidade em Polis, Acrópole e Panteão. "O centro da Polis ou Cidade de Baixo era a Igreja de São João Baptista, frente aos Paços do Concelho, seguindo a já antiga tradição de contiguidade das sedes do poder político e religioso. O núcleo da cidade alta, por sua vez, congregava a elite política e a religiosa, respectivamente no Castelo e no Convento. Havia depois o Panteão dos mestres templários (o centro do mundo da morte), correspondendo à Igreja de Santa Maria do Olival, já fora da cidade."
Os leigos podem achar a cidade fotogénica e acolhedora, mas sem leitura simbólica Tomar é como um filme sem legendas. Exemplo: em Santa Maria do Olival, logo no tímpano está uma estrela de cinco pontas. Não é por acaso, assegura o autor: "A estrela de cinco pontas está ligada ao Rei Salomão a nível oficial, mas num plano mais esotérico representa a realização do Homem. O número quatro está ligado à Terra, enquanto o cinco espiritualiza e supera o quatro. Por isso, no Renascimento era muito comum representar o Homem no meio de uma estrela de cinco pontas, que simboliza a sua realização. Também acontece nas artes marciais: o cinco é o lutador que combate contra os quatro pontos do espaço e isso significa que ele supera as limitações da Terra e encontra o Centro."
Além do cinco, também o oito é um número de ouro na aritmética templária. Voltamos a Santa Maria do Olival: "Entra-se por uma escadaria de oito degraus, depois há quatro colunas de cada lado e uma pia batismal octogonal. Ora o octógono simbolizava no Cristianismo a regeneração." Aquela faixa de visitantes que se perder na tradução ou achar mesmo que estas contas são um bocado alucinadas poderá, no entanto, encontrar elementos esotéricos mais prosaicos na antiga capital da Ordem de Cristo, nomeadamente na igreja manuelina (século XVI) de São João Baptista.
João Baptista, diga-se de passagem, era o padroeiro dos Cavaleiros de Salomão, identificado como precursor ou mesmo profeta alternativo a Cristo. Concentramos a atenção no quadro de Gregório Lopes que representa o enigmático Melkitsedek, rei-sacerdote que abençoa Abraão.
Agora repare-se que por detrás há um judeu e um muçulmano, que acompanham um monge, representando assim a convivência das três religiões do Livro. Paulo Loução é peremptório: "Mostra que ainda persistia um conceito ecuménico no tempo da Ordem de Cristo. Isso foi pintado em 1530 e pouco depois a Inquisição foi instituída - ou seja, completamente contra-corrente com o pensamento da época."
No castelo templário, datado do século XII, encontram-se outros testemunhos ecuménicos, pelos vistos a leitura de Tomar privilegiada pelo autor. A charola, em particular, terá sido construída segundo o modelo da Cúpula do Rochedo, ou Mesquita de Omar, que domina a Esplanada das Mesquitas em Jerusalém. Esta Cúpula do Rochedo tem também subjacente a ideia ecuménica, uma vez que a pedra que lá se encontra guardada é sagrada para as três religiões.
Mas a cereja no bolo místico de Tomar é, obviamente, o fantástico Coro Manuelino e a sua célebre janela lavrada de elementos esotéricos.
Paulo Loução vai ao detalhe: "Posso falar, por exemplo, de uma cabeça que está dentro de um nó em forma de coração. Esse coração estava ligado com uma corrente esotérica chamada Os Fiéis do Amor, que preconizava amor místico." Tudo o que é mágico se visita em Tomar, com a notável excepção do Claustro da Lavagem do Convento. É pena, porque detém a maior colecção de estrelas funerárias do mundo templário. Um festim místico que inclui desde rosas-cruzes a estrelas de cinco e de seis pontas.
Rocha da Mina, Alandroal
No Alentejo, ali para os lados do Alandroal, há um local de um enorme magnetismo telúrico, desses que provocam de imediato sensações fortes.
No sítio conhecido por Rocha da Mina nasceu em tempos remotos um santuário, implantado sobre um esporão rochoso, no meio de uma paisagem agreste de escarpas xistosas. Desse santuário a céu aberto, ostensivamente arcaico, conserva-se a base do culto, que decorria ao ar livre no cimo do monte, bem como a meia dúzia de degraus talhados na rocha que lhe serviam de acesso.
"O santuário rupestre", esclarece Paulo Loução, "era dedicado ao Deus Endovélico, uma divindade que era infernal, (tal como Seráfis, de que falaremos mais à frente) no sentido de se encontrar abaixo do solo". "Acreditava-se que essas divindades do mundo subterrâneo tinham grandes capacidades terapêuticas. Então as pessoas vinham ao templo, dormiam ali ou nas imediações, para no dia seguinte os sacerdotes lhes interpretarem os sonhos e procurarem curá-las."
Também há indícios da existência de um caminho subterrâneo, hoje entaipado, que passava por baixo da ribeira que circunda o monte do templo. A ribeira em causa chamou-se Lucefecit, o que obviamente tem a ver com Lúcifer, mas também está livre de conotações demoníacas.
Lúcifer, tal como a palavra primeiro foi empregada, ao que parece pelo próprio Cristo, significa "fez-se luz" e designa Vénus, ou seja, a estrela da manhã. A circunstância de as águas da ribeira contornarem uma espécie de península deve ter sido decisiva para a localização do templo, uma vez que, para os povos pré-romanos, a água deve delimitir/certificar o espaço sagrado.
Seria a Rocha da Mina um santuário lusitano, ou pelo menos celta? É impossível dizer com certeza, mas pelo menos uma coisa é segura: o templo pré-romano do Alandroal era dedicado a uma das mais celebradas divindades autóctones e era certamente também um dos seus principais locais de devoção à escala peninsular. A sua importância levou os romanos a construirem outro templo consagrado à mesma divindade, meia dúzia de quilómetros mais à frente, no outeiro de São Miguel da Mota.
Este ganhou tanto prestígio que vinham desde patrícios a plebeus num raio de 300 quilómetros. Terá chegado a ser o santuário mais importante da Península Ibérica, até dar lugar a uma igreja e depois a uma mesquita. Boa parte das peças do templo pré-latino lá encontradas estão agora expostas no Museu Nacional de Arqueologia, na colecção de Religiões da Lusitânia.
Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa, Vale do Sousa
O Românico é a arte que se identifica com o nascimento de Portugal, sendo a sua presença ainda hoje marcante na região entre Douro e Minho. O Românico é, defende Paulo Loução, uma arte profundamente simbólica: "É uma arte que transmite muito o que foi Portugal nos séculos XII, XIII e ainda em parte do XIV. O nosso século XIII foi dominado por uma corrente de Românico nacionalizado e, pelo menos a Norte, o gótico nunca se generalizou. O Românico é, por outro lado, uma arte que está muito ligada às pequenas povoações e à natureza."
Excelentes exemplos deste Românico, rural e nortenho, são a Capela de São Cristóvão de Rio Mau, em Vila do Conde, de uma enorme complexidade simbólica, e de Sanfins de Friestas, entre Valença e Monção, profusamente decorada, mas sem um único símbolo cristão. A maior concentração de jóias daquela época encontra-se, porém, no Vale de Sousa, justificando inclusive a exploração turística de uma Rota do Românico. Neste mapa cabe destacar o Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa, ligado à família Ribadouro desde o século X e depois também a Egas Moniz - o famoso aio de D. Afonso Henriques, que no domínio construiu o seu paço, vindo nele a ser sepultado.
O sítio está profundamente enraizado numa cultura panteísta de estreita ligação com a natureza. A prova mais gritante é o Carvalho Sagrado, que se manteve de pé frente ao mosteiro até ao século XIX e durante séculos serviu de Domus Justitiae dos coutos de Paço de Sousa e Casconha. Quer isto dizer que sob a sua copa se realizavam audiências e se tomavam as decisões da justiça local. O carvalho acabou por ser cortado para dar espaço a uma pequena capela, mas o mosteiro está bem conservado e visita-se.
"Ainda hoje tem um atmosfera mística", assegura o autor. "Entra-se e aparece logo o céu e a lua no tímpano, que representam o princípio masculino e feminino." Toda a igreja está construída segundo os pontos cardeais, ou seja, de acordo com uma geografia mítica, detalhada em Portugal Inesquecível: "A norte situa-se o cemitério, recebe a luz a oriente e a ocidente o pórtico do céu confirma o eixo norte-sul com a passagem da lua (a norte do tímpano) ao sol (a sul do tímpano) seguindo este mesmo eixo, passa-se da mísula com a cabeça de touro, símbolo telúrico (energias da terra) e do candidato à sabedoria, associado ao quatro, à mísula com o sacerdote sábio, o druida com a barba, símbolo da maturidade."
Fragas de Panóias, Vila Real
Em Vale de Nogueiras, a meia dúzia de quilómetros de Vila Real, encontram-se três grandes fragas com cavidades talhadas na rocha. O maior destes monólitos tem seis metros de altura e uma escadaria de nove degraus, que conduz às pias esculpidas lá em cima.
Uma inscrição na pedra revela tratar-se de um templo dedicado a Serápis, divindade de origem greco-egípcia, entretanto romanizada. Atribuíam-se-lhe poderes curativos e a capacidade de guiar os vivos através do mundo das trevas. O santuário surgiu há coisa de 1800 anos e estaria reservado a cerimónias secretas em honra desse deus supremo do submundo. Recinto longamente abandonado, Fragas de Panóias foi já neste milénio cercado e rematado por um pequeno centro de interpretação.
Gente com queda para filmes de terror ficará certamente encantada com as descrições das cerimónias de iniciação nos mistérios de Seráfis, centrados no sacrifício de animais, sobretudo bovídeos. O sangue das vítimas era vertido em pias, para ser bebido e usado nas abluções do círculo de iniciados. Panóias é, de resto, um desses sítios onde se sente uma vibração telúrica especial e há fortes indícios de que antes dos Romanos introduzirem o culto de Seráfis, o lugar servia já de santuário, provavelmente usado para os Lapitaes prestarem culto aos seus deuses.
"O que é interessante em Panóias", reflecte Paulo Loução, "é esta ideia de tinas nos rochedos, algo que aparece um pouco por todo o país". "Sabe-se que eram lugares mágicos, mas não sabe nada deles. Apesar de romanizado, o santuário mantém uma traça rupestre, que é a da religião ligada à natureza. Funciona como uma marca identitária do nosso país, que chega ao cristianismo e se mantém até hoje na religiosidade popular. Se uma fonte era já consagrada à deusa Vénus, por exemplo, depois passou a ser dedicada à Virgem ou a São João Baptista."
O tema da matriz animista/telúrica da religião em Portugal dá pano para mangas e o autor de Lugares Inesquecíveis de Portugal não demora a apontar outros casos: "Por exemplo, em Pitões da Júnías, em Montalegre, há um carvalho perto de um mosteiro cistercense, onde, segundo a lenda, apareceu a Virgem. Ainda vi lá pessoas a adorar o carvalho." Mais perto de Panóias, fica São Martinho da Anta, a terra que viu nascer Miguel Torga. Procurando no Google Maps encontra-se facilmente o negrilho a que dedicou um dos seus poemas (disponível na Net). Dizia Torga que sempre que voltava de Coimbra consultava o negrilho, que lhe relatava as novidades da terra.
Senhora da Penha, serra da Gardunha
A Beira Interior apresenta uma extraordinária concentração de lugares místicos pré-cristãos. Em geral pouco visitados, alguns completamente fora do mapa, oferecem ao caçador de mistérios o raro privilégio de não ter de os partilhar com mais ninguém. O alto da serra da Gardunha é um desses lugares, porventura o mais refundido do top de sítios místicos de Paulo Loução.
No sopé encontra-se o Castelo Novo, que por sinal era templário. Lá em acima há um monolito enorme, talvez de uns quinze metros de altura, os vestígios de uma antiga capela chamada Senhora da Penha e uma escadaria que conduz ao topo da montanha. É, garante o investigador, "um sítio mágico, inclusive para quem não é crente em nenhuma forma de religião - um sítio com uma força magnética extraordinária, que chega a ser avassaladora. Ver a serra da Estrela a partir dali é espectacular".
É fantástico mas não se encontra em nenhum roteiro de Portugal, nem sequer na Internet. "Só é conhecido dos locais que faziam procissões até ao alto da serra, entretanto proibidas pelo clero. Já em Monsanto ainda se faz a procissão da Nossa Senhora da Azenha, mas o padre só vai nos primeiros duzentos metros, porque essas procissões sempre tiveram um halo pagão."
Lugares Inesquecíveis de Portugal - Viagens Com Alma
Paulo Alexandre Loução
Cronos, 2011
446 páginas
27,50€