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Um arco-íris de carnavais brasileiros

Por Luís Maio (texto e fotos)

O monumental Carnaval do Recife com multidões em cortejos de rua comandados por orquestras de frevo. Gigantones e super-heróis na vizinha Olinda. E legiões de mascarados em Bezerros. Eis o melhor do Carnaval no Estado de Pernambuco.

No Recife o divertimento chama-se "arrastão" e consiste em seguir na cauda de camiões com orquestras a tocar lá em cima. Quem dá música ao povo são agremiações, troças e todo um sortido de colectividades lúdicas, a maior das quais é o Bloco Galo da Madrugada, que "arrasta" para cima de dois milhões de foliões. Toda a gente dança frevo, mas só se mascara quem quer e o improviso está consagrado como parte integrante da diversão. É um carnaval urbano, cem por cento brasileiro, mas inclusivo e plural, como não há mais nenhum.

Enquanto isso, a vizinha Olinda é invadida por batalhões de Zés Pereiras e super-heróis brincalhões. Mais para o interior, em Bezerros, o ponto alto dos festejos é o concurso de máscaras papangus, enquanto em Nazaré da Mata os reis da festa são os agrupamentos de maracatus rurais. As distâncias são relativamente curtas entre essas cidades e o ideal é passar a quadra a circular entre os seus pólos festivos.

Aos olhos do forasteiro acabado de aterrar em terras de Pernambuco, o seu leque de carnavais encanta pela  diversidade e certamente também pelo exotismo. Outras vantagens são a confortável margem de segurança das ruas, a qualquer hora do dia ou da noite, a gratuitidade de todos os eventos, ou ainda a simpatia contagiante da maior parte dos foliões locais. Desvantagens? Para nós que somos de fora há coisas difíceis de compreender e sobretudo de assimilar. Por que é que eles estão sempre a cantarolar as mesmas canções, que até nós já sabemos de cor? Como é que eles têm a lata de se queixarem que cinco dias de folia bestial não chega e ainda arranjam pretextos e andamento para prolongarem a farra até ao fim-de-semana seguinte?


Recife na rua

Há ensaios de cortejos e bailes pelo menos 15 dias antes, mas o arranque oficial dos festejos no Recife acontece com o Desfile Inverso, na noite de sexta, prévia à quarta-feira de Cinzas. É uma espécie de chamada às armas para as tropas de foliões, num desfile que integra um exército de 500 batuqueiros, em representação de uma dezena de nações de maracatus urbanos. Estes maracatus-nação tocam ritmos saltitantes de inspiração africana, nessa medida distintos dos maracatus rurais de matriz indígena, dominantes em festejos como os de Nazaré da Mata, de que falaremos mais à frente.

Depois dessa espécie de aquecimento que é o Desfile Inverso, o Recife atinge o êxtase no dia seguinte, com o Galo da Madrugada. Começa logo de manhã e dura o sábado inteiro, animado por uma mão-cheia de orquestras de frevo, que desfilam à vez pelas principais avenidas do centro histórico, o chamado Recife Antigo, ou Bairro do Recife. O frevo é o ritmo mais emblemático das festividades e remonta a finais do século XIX, quando se popularizou como declinação dançante do som das fanfarras militares, a que depois se veio juntar o swing localmente conhecido como ginga. Hoje o que mais se vê no Carnaval pernambucano são bandas de frevo instrumental, num estilo decididamente dançante e febril (vem daí o nome), mas também se cruzam formações de frevo-de-bloco mais melódico, ou até de frevo-canção.

O Galo da Madrugada é sobretudo isso, uma longa sucessão de orquestras de frevo montadas em trios eléctricos, camiões TIR localmente mais conhecidos por "freviolas". Este corteja só por si chega e sobra para "arrastar" multidões de "passistas" (como se chamam os dançarinos de frevo), sem recorrer a cordões super-organizados, nem a luxuosos carros alegóricos. Nesse aspecto o Carnaval do Recife contrasta, e muito, com os seus homólogos mais encenados e endinheirados da Baía, do Rio ou de São Paulo. É por certo uma festa gigantesca, onde a capital de Pernambuco mais genuinamente se retrata.

Quando acaba o Galo ainda há muito Carnaval para gozar, mas a diversão muda de registo e também de cenário. Passa a haver uma espécie de zona demarcada de folia, correspondendo a cerca de 12 km2 do centro histórico da cidade, onde se encontram montados oito pólos de animação, a que se acrescentam mais nove palcos descentralizados, disseminados pelo resto da cidade. O programa de festas inclui quatrocentos espectáculos gratuitos, dos quais participam 800 agremiações locais, mas há também shows mais convencionais a cargo de uma longa lista de artistas profissionais.

O Marco Zero - ampla praça com o nome oficial do Barão do Rio Branco, onde arrancam as estradas de Pernambuco -, fica reservado para as grandes estrelas da música brasileira e um punhado de celebridades internacionais. No Cais da Alfândega decorre anualmente o Rec Beat, festival dedicado a artistas mais jovens e alternativos, enquanto o Pátio do Terço acolhe manifestações de raiz africana. É neste último, justamente, que acontece a Noite dos Tambores Silenciosos, apoteose mística do Carnaval do Recife.

Durante a noite de segunda-feira, as estreitas ruelas do Bairro de São José são invadidas por nações de maracatus com os seus batalhões de tambores e gaitas, mas também cortes inteiras vestidas algures entre a realeza africana e a nobreza europeia do Barroco. O seu destino é só um, a Igreja de Nossa Senhora do Terço, onde à meia-noite em ponto se calam os tambores e a iluminação pública é cortada, sendo os maracatus encaminhados por tochas até à porta da igreja. O silêncio é finalmente quebrado pelas rezas em coro das mães-de-santo, num ritual de uma enorme intensidade dramática.

Há muito mais do que isso no Carnaval do Recife, cuja programação também inclui cortejos de candomblé de rua ou afoxé, e actuações de grupos especializados em danças de roda, como a ciranda e o coco, e escolas de samba procedentes de outros lados. No meio disto tudo, entre espectáculos e pólos de animação, é quase forçoso cruzar algum dos blocos líricos, que desfilam em contínuo e mais provavelmente sem plano pelo centro histórico da cidade, recriando sonoridades e fantasias de outras épocas.


Super-heróis em Olinda

Há quem prefira o Recife, há quem prefira Olinda, há até quem passe o Carnaval inteiro a fazer io-iô entre as duas cidades litorais, entre si separadas por apenas sete quilómetros de distância. Claro que se notam semelhanças e até coincidências, incluindo blocos que desfilam em ambas. Mas o Entrudo de Olinda é um negócio à parte, logo a começar pelo "salão" de festas em que se converte o seu centro histórico - uma das jóias coloniais mais bem preservadas do Brasil, "tombado" pela UNESCO em 1982.

No centro de Olinda não há avenidas largas, mas um colar de ladeiras sulcadas por ruas empedradas, muitas vezes estreitas e tortuosas. Mal arranca o programa de festas são como o metro em hora de ponta e é frequente os cortejos andarem no empurra do para cá e para lá, demorando uma eternidade para avançar meia dúzia de metros. Um impasse que, já se sabe, também faz parte da brincadeira. Os banhos de multidão justificam-se por outra peculiaridade que o evento tem vindo a ganhar nos últimos anos: as férias de Carnaval são a altura que muitos pernambucanos disseminados pela diáspora escolhem para voltar a casa, convertendo Olinda num grande ponto de (re)encontro, meio programado, meio fortuito. Reúnem-se as famílias, reveêm-se paixões e compinchas de longa data e isso é já meio caminho andado para fazer a festa.

Ao longo da quadra desfilam cerca de 500 agremiações e troças, que são agremiações mais curtas - grupos de amigos que entretanto vão crescendo e podem chegar aos 300 filiados. Dão sobretudo nas vistas os chamados "blocos debochados", caso por excelência do bloco Enquanto Isso na Sala de Justiça, que lidera os folguedos de domingo com toda a gente vestida de "super-qualquer-coisa", desde Super Homem a supermercado. Outro ponto alto é o Encontro dos Bonecos Gigantes, que na Terça-Feira Gorda invadem as ruas do centro histórico. Os bonecos são feitos de modo artesanal com o corpo em fibra de vidro e a cabeça e as mãos em esferovite. Têm em média dois metros de altura (cerca de quatro quando erguidos) e podem pesar até 50 kg.

O gigantone mais antigo a sair à rua é o Homem da Meia-Noite, criado em 1932. Cabe-lhe abrir oficialmente o Carnaval de Olinda de chaves da cidade em punho, enquanto o seu bloco arrasta uma multidão na ordem dos 400 mil. A tradição dos Zés-Pereiras é anterior ao Homem da Meia-Noite, mas só ganhou a ribalta nos anos 80 e hoje há mais de uma centena de bonecos a desfilar nas ruas da cidade durante o período carnavalesco. Essa recente profusão de gigantones tem muito a ver com o culto mediático da celebridade, uma vez que políticos e outras figuras públicas locais ganharam o hábito de encomendar duplos XL de si próprios aos melhores artesãos locais, para depois poderem desfilar ao seu lado pelas ruas. É um seguro motivo de orgulho, mesmo se a exposição pública conduz fatalmente a piadas trocistas, como manda a lei do Rei Momo.

Carnaval irreverente por vocação, o evento de Olinda também não respeita o calendário convencional, oferecendo como pico suplementar a quarta-feira de Cinzas. É nessa manhã que desfila o bloco Bacalhau do Batata, criado em 1962 por um garçon que por razões profissionais só podia festejar depois de os outros voltarem a casa. A resposta da cidade vizinha surgiu sob a forma dos Irresponsáveis de Água Fria, agremiação que agora comemora trinta anos de existência. Desfilam na Zona Norte do Recife com sete trios eléctricos e três carros alegóricos, arrrastando para cima de 250 mil.


Folias campestres

O Carnaval contagia todo o estado de Pernambuco, mas os rituais de folia são muito diferentes nas cidades do interior. Os Entrudos rurais são em geral mais tradicionais, menos comerciais e, pelo menos num par de casos, realmente únicos. Para o turista oferecem a mais-valia de abrirem a porta a um Brasil profundo e a uma demografia campestre com que, de resto, dificilmente contacta. Recomendam-se, assim, como alternativas ou complementos às festas de Olinda e Recife, até porque os melhores ficam a uma hora ou menos de carro dessas cidades litorais.

É o caso por excelência de Bezerros, cidade do Agreste nas margens da BR 232, a cerca de 100 quilómetros do Recife. Pelo menos desde os inícios do século passado, os homens ganharam o hábito de sair à rua com máscaras de folha de papel de embrulhar carne e roupas andrajosas, de forma a não poderem ser identificados pelas mulheres. Também aproveitavam para invadir em semelhante preparo as casas dos vizinhos e pedir que lhes servissem angu de milho (polenta), daí derivando a designação de Festa dos Papangu. O arraial manteve-se, mas o guarda-roupa alterou-se, primeiro com a introdução de máscaras em papel machê e mais recentemente em gesso, a combinar com caftas, batas longas e estampadas.

Os festejos arrancam dez dias antes do Carnaval, com o Bloco Acorda Bezerros a desfilar em pijama ou babydoll às três da madrugada. Mas o dia mais forte é o Domingo de Entrudo, dia do Concurso dos Papangus, que nas últimas edições tem tido uma média de dois mil inscritos em toda a espécie de categorias (individuais, de grupo, duplas e tradicionais). Bezerros tem menos de 60 mil habitantes, mas recebe nesse dia cerca de 200 mil foliões. Concorrentes, blocos, orquestras e meio mundo converge para a rua principal dessa cidade de província que, obviamente, fica a rebentar pelas costuras.

A Folia do Papangu seria uma espécie de Carnaval de Veneza transposto para um cenário tropical não fosse a alegria transbordante e o desmando caótico das suas legiões de mascarados. É, em qualquer dos casos, o único Carnaval temático do Brasil, o terceiro maior de Pernambuco, o maior do interior do estado e não pára de crescer. Também a crescer está o Entrudo de Nazaré da Mata, a 65 quilómetros do Recife com acesso pela BR-408. Aqui o prato forte é maracatu rural ou de baque solto, que remonta aos inícios do século XIX e terá resultado da fusão de várias manifestações folclóricas locais (bumba-meu-boi, pastoril, cavalo-marinho, caboclinho, folia-de-reis).

As orquestras empregam um arsenal de instrumentos artesanais tais como o gongê, o ganzá, o surdo, o tarol e a zabumba, enquanto os mestres de cerimónias declamam versos improvisados ou loas.  Destaque especial no Carnaval de Nazaré da Mata merece a extensa galeria de personagens da corte, incluindo reis, rainhas, damas da corte, embaixadores, vassalos, porta-estandartes e caboclos de lança, que se juntam para desfilarem na segunda e na terça de Carnaval,  sempre vestidos com fantasias aparatosas e cintilantes. Na edição do ano passado desfilaram 36 nações de maracatus, 22 da própria cidade e as restantes de municípios vizinhos da Zona da Mata. Tão populares são as fantasias dos caboclos de lança com as suas golas bordadas, perucas reluzentes e lanças coloridas, que são também chamados a actuar regularmente nos carnavais de Olinda e do Recife.

 

Programação 2012

A inauguração oficial do Carnaval do Recife será, como de costume, assinalada com um desfile de batuqueiros dirigido por Naná Vasconcelos, na noite de sexta-feira, 17 de Fevereiro. Na manhã seguinte sai o Galo da Madrugada, que desta vez irá homenagear o nascimento de Luís Gonzaga (1912-1989), lendário Rei do Baião. O festival Rec-Beat vai para a 17.ª edição no Cais da Alfândega entre 18 e 22 de Fevereiro, com presenças confirmadas (para já) de Criolo de São Paulo e da cubana Yusa. No palco do Marco Zero passarão artistas mais consagrados como Mayra Andrade, Lenine, Seu Jorge, Beth Carvalho, Elba Ramalho e Alceu Valença. No capítulo das chamadas "prévias carnavalescas", destaque para o Olinda Beer, a 12 de Fevereiro, ou seja, no domingo anterior ao de Carnaval, onde actuam Ivete Sangalo e Chiclete com Banana, entre outros. O famoso bloque Enquanto Isso, Na Sala de Justiça também tem prévia de Carnaval nesse dia, no Centro de Convenções de Olinda, onde a festa será animada pelo cantor Otto. O cartaz completo dos festejos está disponível em www.programaçãocarnavalrecife.com.br

A Fugas viajou a convite da Embratur-Instituto Brasileiro do Turismo

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