Como todos os que vêm de fora, João Cardigos chegou à ilha do Corvo para ficar pouco tempo. Mas começou logo a adiar a partida. Depois esqueceu-se dela. Vive aqui há quase 30 anos. É o médico da ilha.
A sua casa, entre o mar e a pista da aerogare, é uma mansão de proporções hiperbólicas, quase uma outra ilha. "Bem-vindo à ilha do Corvo" é, aliás, a inscrição que o médico, num acesso de metonímia vingativa, decidiu apor à entrada.
A casa não fica exactamente fora da vila, mas está de costas para ela. Os muros altos que cercam parcialmente os vários componentes e anexos da habitação não foram erguidos do lado do mar, mas da terra. As paredes voltadas para o oceano são de vidro, para que se possa assistir ao espectáculo das ondas e das tempestades ao som de música clássica.
Estar na casa de João Cardigos é como viver numa cápsula no meio do Atlântico. Entregue ao domínio selvagem, apesar de todo o conforto e segurança da sólida construção de pedra e madeira. Longe da civilização, apesar da biblioteca e da sala com a aparelhagem sonora e milhares de CD de música. Os espessos vidros triplos permitem calar a natureza, substitui-la pela banda sonora humana, a harmonia comedida e inteligível dos grandes compositores, num firme e suave amansamento das vagas, a rédea curta.
"Posso viver assim sempre. O mar, os meus livros, o meus discos, não preciso de mais nada", diz o médico, que agora raramente sai da ilha, e menos do arquipélago, e muito menos ainda vai à sua Lisboa natal. "Os meus colegas em Lisboa têm vidas absurdas, em filas de trânsito de casa para o emprego, do emprego para casa."
João Cardigos, que casou com Goretti, a enfermeira do posto de saúde, não faz qualquer tenção de sair do Corvo. Não se imagina noutro lugar. No entanto, pode dizer-se que está de relações cortadas com a ilha. Já não a compreende e já não é compreendido. A seus olhos, tudo o que havia de autêntico desapareceu. Tudo o que havia de único. As pessoas divorciaram-se do seu passado, da sua natureza. Perderam o que tinham de valioso e irredutível, para ganharem o que é comum e vulgar, e não vale nada. Pode dizer-se que o médico não gosta dos corvinos, e o sentimento é retribuído. Mas ao mesmo tempo é ele que os trata, que lhes salva as vidas, e eles são o seu mundo, a sua dedicação, a sua vida. É apesar de tudo um amor recíproco, intenso e amargo.
O silêncio
A ilha do Corvo tem quatro quilómetros por sete e 400 habitantes. É a mais pequena do arquipélago dos Açores, e uma das mais ocidentais, em conjunto com a das Flores. Está agarrada à placa tectónica do continente americano, e cercada por águas muito profundas e alterosas, de vagas largas e rugido cavo.
Foi originada por um vulcão, há 700 mil anos, e assemelha-se a um monstro marinho de carapaça escura coberta de musgo. É uma montanha, mais alta de um lado que do outro. No flanco mais abatido situa-se a vila, incrustada e encolhida, de ruas estreitas e casas de pedra, fazendo lembrar mais uma medina árabe do que uma povoação açoriana. Diz-se que foi construída assim por necessidade de protecção, das tempestades ou dos piratas. O facto é que é minúscula e acanhada. O facto de a ilha ser pequena não levou os habitantes a espalharem-se pelo espaço disponível, mas a encolherem-se ainda mais, a reduzirem-se.
Aparte o pequeno nicho de casario escondido, tudo o resto é selvagem. Exceptuando apenas uma antiga fábrica de manteiga (agora habitada uma vez por ano por um coreógrafo suíço e louco, com a sua companhia de dança - durante um mês, criam e ensaiam uma peça que depois exibem por toda a Europa) e o bar, quase sempre fechado, isolado na vertente e chamado Formidável.
Navegando à volta do território no Juliana, o barco do pescador Joca, a ilha é como uma enorme esmeralda rodando sobre um espelho. Uma pedra de reverberações verdes e negras, facetada em zonas de claridade ígnea e brilhante e outras de fumo, de luzes baças e movediças. Está sol e vento, e há esconsos e grutas, pedregulhos onde saltitam cabras selvagens, enseadas e penínsulas sobrevoadas por gaivotas, cagarros e estapagados, de asas negras e peito branco.
O fragor do mar é tão violento que a ilha parece envolta em música, um zumbido íntimo e recôndito, um silêncio mais silencioso do que o silêncio.
O lado mais alto da ilha é todo ele preenchido pela cratera. Há uma pequena estrada que leva até lá, passando pelos campos onde os corvinos criam as suas vacas, que dantes abandonavam de repente sempre que o vigia, no seu casinhoto da encosta, avistava uma baleia no mar. Avançavam então nos seus dois botes minúsculos, seis homens em cada um, na perseguição do cachalote cuja localização o vigia ia indicando, através de um código de lençóis brancos estendidos na escarpa em várias posições.
Da baleia extraíam o toucinho que, derretido e processado, era vendido para uso na iluminação. A carne e tudo o resto era deitado fora. O lucro era pequeno e aplicado na compra de terras, para criar mais vacas.
Os piratas
A vigia da baleia ainda existe, abandonada, situada num dos pontos mais altos da ilha. Não tão alto como o Caldeirão, que fica no fim da estrada e surge de repente, aos olhos de quem chega, como um mundo novo, subterrâneo e secreto, de beleza irreal. É a cratera do vulcão, o fosso colossal de onde nasceu a ilha, mas no seu interior não há vestígios de lava nem de enxofre, antes um forro aveludado de musgos verdes e brancos, e um fundo de lagoas e ilhotas. A toda a volta do vale recorta-se uma parede côncava e íngreme, que do lado Sul termina numa lâmina de rocha elevada a pique sobre o mar. Para o outro lado, a altitude na vertical é de 718 metros, a maior em terras que dão para o Atlântico, e a vista é um horizonte de água e de assombro.
O lugar chama-se Morro dos Homens, diz-se que por ser aqui que se refugiavam os homens da vila, quando os piratas atacavam e saqueavam o Corvo. Mulheres e crianças nada tinham a temer. Só os homens se arriscavam ao rapto, após o que seriam mandados trabalhar como escravos.
Isto até a ilha se ter feito amiga dos piratas. O mais célebre de todos eles tornou-se até um benfeitor, trazendo comida e outros bens e protegendo os corvinos de colegas corsários com menor nobreza de carácter.
Passou-se isto por volta dos anos de 1820, e o pirata em questão chamava-se Almeidinha. Consta que nascera em Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, mas fora recrutado como pirata em Baltimore, nos Estados Unidos. Nas suas actividades de corso, servia os interesses da Argentina e Venezuela, atacando navios dos colonizadores espanhóis, que odiava por ter sido por eles maltratado numa prisão de Cartagena, na Colômbia.
Há relatos históricos e credíveis segundo os quais o prestigiado e temível pirata Almeidinha se tornou amigo do padre do Corvo, João Inácio Lopes. Era através dele que negociava e ajudava os corvinos. Para que, à sua aproximação, o cura não o confundisse com outros piratas, Almeidinha ofereceu-lhe um potente monóculo. Assim, ele podia verificar que quem lá vinha era o Almeidinha, e começar sem medo a preparar os produtos a negociar.
Almeidinha acabaria por ser preso pelos espanhóis, e executado em 1832. Nessa época, sem a ajuda dos piratas, o Corvo conheceu a pobreza. Os actuais habitantes lembram-se de ouvir aos pais e avós histórias desse período.
Maria Luísa, mulher do baleeiro Fernando Pimentel, conta o caso de um antepassado, provavelmente o seu bisavô, que era obrigado a trabalhar todo o dia nas terras altas, com os animais. A mulher guardava-lhe um pedaço de pão seco, que lhe mandava pelo filho, a meio do dia. Mas pelo caminho a criança, também esfomeada, não resistia e ia comendo o pão. Quando chegava ao monte não tinha nada, mas o pai percebia e nunca o recriminou, nem disse nada à mulher, que só veio a saber disto anos depois.
Inês Inês, de 79 anos, uma das únicas mulheres que ainda sabem tricotar os típicos barretes do Corvo, lembra-se de a avó relatar as admoestações que fazia aos filhos, quando eles iam à cozinha roubar pedaços de pão seco para comer: "Vocês já andam metidos no pão outra vez!"
Durante muitos anos, o pão que se comia era de junça, uma planta normalmente usada para alimentar o gado. Raul Brandão, que visitou o Corvo em 1924, transcreve, em As Ilhas Desconhecidas, o relato de um corvino de 75 anos:
"Fome! Muita fome! ... A ilha andava avexada: pagava quarenta moios de trigo e oitenta mil réis em dinheiro ao senhorio de Lisboa. A gente - inda me lembro - andava vestida com umas ceroulas compridas, por cima um calção de lã, tingido de preto com mantrasto e uma jaqueta aos ombros, a barba toda e uma carapuça na cabeça. Não havia lumes. O lume conservava-se nas arestas do linho e quando sucedia apagar-se iam-no buscar à alâmpada da igreja ... Fome! Muita fome! O mais que se comia era junça, uma planta que dá uma semente pequena debaixo da terra, de que se alimentam os porcos. Moía-se nas atafonas e fazia-se farinha e bolos... Às vezes trocava-se uma terra por um bolo de junça. Fome!"
Era o tempo dos liberais em Portugal, e a ilha do Corvo era sufocada pelos impostos que tinha de pagar ao donatário da ilha. Um dia, quando D. Pedro IV e a regência estavam instalados nos Açores, uma delegação de corvinos dirigiu-se a Mouzinho da Silveira, que era Ministro dos Negócios da Fazenda. Levaram-lhe um pedaço de pão negro de junça, para que ele visse o que comiam, por culpa do regime tributário feudal.
Mouzinho enterneceu-se e cortou para metade o imposto. Sabendo depois da gratidão dos corvinos, escreveria no testamento: "Quero que o meu corpo seja sepultado no cemitério da ilha do Corvo, a mais pequena das dos Açores. São gentes agradecidas e boas, e gosto agora de estar cercado, quando morto, de gente que na minha vida se atreveu a ser agradecida."
A pobreza atenuou-se desde então, mas hoje ainda são muitos os que se lembram de pessoas que, em toda a sua vida, nunca saíram da ilha, ou até que nunca se afastaram da vila, que nunca visitaram o Caldeirão. José Mendonça de Inês, de 81 anos, o marido de Inês Inês, não consegue parar de rir quando cita o caso de uma tia sua muito velha que costumava dizer: "Não há terrinha como a minha!" José acha a frase hilariante: "Pois ela nunca conheceu outra!"
Ainda no tempo da juventude de José e Inês, lembram-se eles, todos os corvinos andavam descalços. Só o padre usava sapatos, era isso que o distinguia. Quando ele saía de casa, ouvia-se o "toc toc" no lajedo da Rua das Pedras, e todos sabiam que a missa ia começar. Mais eficaz que o toque do sino. "Ouvia-se o barulho dos sapatos, como um cavalo", lembra José Mendonça, recorrendo a metáforas do seu próprio mundo, e sem parar de rir. A ele, que é especialista em fabricar as típicas fechaduras de madeira do Corvo (onde não há o hábito de fechar as portas), tudo na ilha lhe parece cómico.
A procissão
Hoje, os corvinos andam calçados, e o padre usa outro meio para chamar os crentes: um megafone. "Pedia a amabilidade de oito senhores para levarem os andores. A amabilidade de oito senhores", diz ele através do aparelhómetro, à porta da igreja. A missa terminou, e a procissão vai sair até ao Largo do Outeiro, para regressar com a Senhora dos Milagres e o Senhor dos Passos ao altar. "Oito senhores para levar os andores, se faz favor", insiste o padre Hélio Soares, que mal terminou o seminário foi colocado naquela paróquia difícil. "Oito senhores". Nada. Ninguém se oferece, e Hélio corre literalmente para os homens que vê, empurrando-os até ao andor.
Está tudo a postos, a filarmónica começa a tocar. Muito desfalcada, cada vez aparecem menos músicos. Já foram muitos, mas agora são só nove. "Já fizemos um funeral sem trompete", lamenta a do clarinete. E o do bombo acrescenta, com ressonância trágica: "Para mim é a última vez. Estou farto. Nunca mais venho."
Os sinos desatam a repenicar, depois das últimas notas do coro das crianças, "Senhor tem piedade de nós", e sem nunca abafar o trovão do mar, que se vê por cada frincha entre as casas brancas. "Vamos formar duas alas, se faz favor", diz Hélio ao megafone. "Senhor Manuel, a sua ala sobe a Rua das Pedras. A outra vai pela Rua da Matriz." A procissão divide-se, avança por ruas diferentes, para se unir no Largo do Outeiro. Ali todos param, para o padre fazer o discurso, na presença dos dois andores.
"A Senhora dos Milagres simboliza aquela dor da mãe que encontra o filho na cama do hospital, depois de um acidente... O Senhor dos Passos... como nós, que, ao cairmos, temos dificuldade em nos levantarmos. Somos fracos, precisamos de alguém que nos ajude. O cireneu que leva a cruz pode ser qualquer um de nós."
O padre Hélio, que, segundo Inês Inês, "tem cara de menino mas é boa pessoa", leva a sério a sua profissão: estudou a História do Corvo, para melhor tocar os corações dos corvinos. "A Senhora dos Milagres, assim chamada por ter protegido os corvinos dos ataques dos piratas, em 1632... Esta Praça do Outeiro, esta encruzilhada dos caminhos da vida", diz o padre, aludindo à função do largo na vida da comunidade. Era ali que se reuniam os velhos da ilha, para tomarem as decisões sobre a vida económica, ou julgarem os casos de litígio. Ainda hoje se juntam no edifício conhecido como a "casa das vacas", para discutirem assuntos do dia-a-dia, ou simplesmente verem televisão.
"O encontro do Outeiro, que foi local de reunião, de decisão quanto às questões do quotidiano agrícola desta comunidade abandonada pelo mundo", continua o padre. "Quando eram atacados pelos piratas, quando os donatários exploravam o povo do Corvo..."
"Não preciso de mais nada"
O espírito e as práticas comunitárias da população corvina estão nas cabeças de todos, são a sua identidade, mesmo quando já pouco se manifestam na vida quotidiana. É essa a riqueza do Corvo em que o médico João Cardigos ainda acredita.
Para ele, essa autenticidade perdeu-se quando os serviços florestais do continente foram destruir o sistema de terras comunitárias que vigorava na ilha. "Todo um sistema de valores desapareceu, e não foi substituído por outro", explica o médico, que se considera possuidor de uma visão para a ilha. Em 1990, candidatou-se à Câmara Municipal, com um programa de 125 medidas. Foi eleito com a diferença de um voto em relação ao outro candidato. Mas a sua obra não foi compreendida. O lema eraSmall is Beautiful, e a ideia era assumir a pequenez, a especificidade, a singularidade. Ser uma ilha minúscula e isolada pode parecer uma desvantagem, mas também pode ser vista como uma enorme riqueza.
Algumas iniciativas falhadas de João Cardigos: criar uma pequena fábrica de enchidos "de muito boa qualidade", para que os produtos das vacas ficassem na ilha e fossem altamente rentabilizados. Apurar uma raça de cão. Só numa pequena ilha se pode fazer isso. Combinavam-se cães das melhores raças, para se criar uma linhagem. "As pessoas não seriam obrigadas a ter um cão de raça corvina. Mas quem quisesse outro teria de o capar."
Outra ideia: criar a "semana do isolamento". Uma espécie de feira para onde seriam convidados "índios da América para ensinar a fazer sinais de fumo", um "prémio para as melhores mensagens em garrafas", um "concurso de jangadas".
Na eleição para um segundo mandato, Cardigos perdeu. Segundo ele, por causa da prática da compra de votos, uma das consequências da perda dos valores tradicionais.
De então para cá, o seu discurso sobre o Corvo e os corvinos é azedo. Dir-se-ia que odeia a ilha. Mas as pessoas dizem que é um médico dedicado, com o qual se sentem seguras. E porque não vai ele embora? Porque construiu aquela casa com mil metros quadrados de área coberta na orla costeira, que levou 15 anos a concluir e cujo projecto só foi aprovado porque o presidente da Câmara na altura era... ele?
Por causa do mar, diz Cardigos, com a voz alucinada de Kurtz, de Conrad. "O mar, os meus livros, os meus discos, não preciso de mais nada".