Fugas - Viagens

  • Rio Zayandeh em Esfahan
    Rio Zayandeh em Esfahan Ana Catarina Almeida
  • Num restaurante em Teerão
    Num restaurante em Teerão Ana Catarina Almeida

No Irão, uma viagem pelo inimaginável

Por Miguel Urbano Rodrigues

O escritor Miguel Urbano Rodrigues passou duas semanas no Irão. Arrastado pela necessidade de visitar Persépolis, acabou por atravessar a antiga Pérsia, das praias do mar Cáspio às terras quentes do Sul, e chegou à conclusão de que a imagem de país de fanáticos associada ao Irão é falsa e perversa.


Contradições

A decisão de ver e sentir Persépolis para situar ali o capítulo final de um romance em andamento levou-me ao Irão em Maio. Pretendia meditar nas ruínas da cidade de Dario sobre a brevidade dos grandes impérios e a ambição que acompanha a sua ascensão e morte.

Atravessei o país, de carro, das praias do mar Cáspio às terras quentes do Sul. Senti-me quase personagem dos poemas de Hafez e Omar Kayan porque viajei através de um mundo de surpresas encadeadas.

Viajava com uma amiga, co-autora do livro que preparamos. A chegada a Teerão proporcionou-nos a primeira surpresa. No aeroporto as formalidades da entrada foram rápidas. Não houve revista de bagagens. No hotel não pediram os passaportes, esclarecendo que a reserva continha os dados pessoais. Em duas viagens aéreas em que utilizámos voos domésticos, embarcámos sem apresentar documento de identificação.

Teerão, com 13 milhões de habitantes, é uma cidade gigantesca. Mas contrariamente às capitais dos países árabes ou às megalópoles da Índia, a limpeza impressiona. O nível da poluição ambiental é elevado. Mas nas ruas não vimos papéis, plásticos ou garrafas. “O asseio é uma tradição milenar persa. Não somos árabes”, respondiam, quando abordava o tema.

Percorri Teerão em todos os sentidos durante três dias. Pedi ao guia que me levasse a bairros degradados. Não vi nada que se assemelhe às “favelas” brasileiras. Estive em bairros de gente pobre que habita em casas muito modestas. Mas as ruas, estreitas, são asfaltadas, limpas.

Obviamente o contraste com as zonas onde se concentra a grande burguesia é ostensivo. Nos bairros próximos das escarpas da pré-cordilheira do Alborz cujos píncaros nevados ultrapassam os 5500 metros, vi mansões construídas nos terraços de arranha-céus. Essas vivendas luxuosas sobem para o céu de jardins com piscina, fl ores e árvores.

Outra surpresa para o estrangeiro é o desaparecimento da tradição oriental no vestuário masculino. Os homens usam todos roupas ocidentais, excepto os mullahs e os ayatollahs.

A Revolução Islâmica que atingiu o país como um furacão veio alterar, porém, radicalmente a situação da mulher na sociedade. O uso do véu passou a ser obrigatório para elas, e algumas profissões foram-lhes interditas. Mas a opção pelo chador – a túnica que as envolve, deixando apenas visível o rosto – é minoritária na capital. Não vi uma só burqa, a peça única que cobre todo o corpo, da cabeça aos pés, permitindo apenas o contacto com o mundo através de uma rede em frente dos olhos.

Essa ruptura com a tradição antiga chamou-me a atenção porque a burqa se manteve como vestuário feminino dominante no Afeganistão mesmo durante a Revolução, quando estava no poder um partido marxista. O visitante estrangeiro apercebe-se, aliás, da resistência das mulheres a leis que lhes limitam os direitos, impostas pelas autoridades religiosas.

Nas casas de chá, as chaikané, onde o mobiliário e a atmosfera são tipicamente orientais, vi sempre mulheres fumando tranquilamente o narguilé, desafiando a proibição escrita em cartazes afixados nas paredes.

A luta feminina pela recuperação de direitos é, aliás, tema de discussão que envolve toda a sociedade. A mulher iraniana não é o ser frágil, tímido e submisso que muitos europeus imaginam. O encanto e a personalidade das mulheres persas – 55 por cento da população pertence a essa etnia majoritária – já era cantada pelos poetas da antiguidade. Confirmei que elas têm olhos enormes, com uma luminosidade que realça a brancura da pele e a beleza e serenidade das feições. E sustentam desafiadoramente o olhar de qualquer desconhecido que as fite. 


Um povo com 25 séculos
 

O Irão é um país prodigiosamente rico em recursos naturais. Com 70 milhões de habitantes e uma superfície de 1.650.000 km quadrados (o triplo da da França), é o quarto exportador mundial de petróleo e possui as segundas reservas de gás e petróleo do planeta.

Quase tudo ali difere da imagem de terra de violência, fanatismo e atraso económico e social difundida no Ocidente pela comunicação social. Encontrei um povo amável, cativante na relação com o estrangeiro, educado (apenas 8por cento de analfabetos), com uma alegria de viver hoje rara no mundo.

A cicatrização das feridas abertas pela guerra imposta por Sadam Hussein (meio milhão de mortos iranianos e dezenas de cidades destruídas) produziu-se rapidamente, assim como a recuperação económica. O nível de desenvolvimento no sector avançado é comparável ao de países como o Brasil e o México, com a diferença de que na sociedade iraniana não existem milhões de párias.

A indústria automóvel produz quase 500.000 veículos por ano, entre carros e camiões. Os modelos mais vendidos são nacionais e o Estado é proprietário da maioria das fábricas.

O país é praticamente auto-suficiente no sector alimentar. É um dos grandes produtores mundiais de trigo (13 milhões de toneladas anuais) e cultiva parte do arroz e do milho consumida. Exporta frutas. O rebanho nacional conta com 60 milhões de ovinos, 26 milhões de caprinos e 11 milhões de bovinos. Exporta para todo o mundo os seus tapetes de prestígio milenar.

O Estado controla a indústria química. Tive a oportunidade de verificar que os medicamentos, predominantemente genéricos, são baratíssimos, com preços irrisórios. A segurança social é estatal, assim como a indústria militar. Mas cabe recordar que a Pérsia (o pais só mudou de nome no século XX) foi sempre, ao longo da sua história, um importante centro de produção de armas. As principais universidades são públicas, o que surpreende num pais onde o poder religioso predomina sobre o civil.

O ayatollah Kamenei, guia supremo da revolução islâmica, é a autoridade máxima da República, acima do Presidente, Amadinejah. Essa presença hegemónica do Estado numa sociedade de ideologia teocrática onde a religião e o capital mantêm excelentes relações é uma das contradições que desconcertam os estrangeiros. É preciso não esquecer que o pequeno e o médio comércio funcionam no Irão há pelo menos 18 séculos como motor da estabilidade económica. O capitalismo de Estado da Revolução Islâmica é um estorvo para as grandes empresas, mas convive amistosamente com as pequenas.


O Irão de que não se fala 

Não cabe neste artigo abordar em profundidade o tema que me levou ao Irão. Falta espaço para expressar ideias e emoções que tornaram inesquecível a visita a lugares como Persépolis e Esfahan que pretendia conhecer desde a adolescência.

Ali se compreende noutra dimensão o Irão actual. As ruínas dos palácios ideados por Dario colocam o visitante perante a fragilidade e os limites das ambições humanas e a insensatez dos sonhos imperiais. As colunas de Persépolis e os relevos que representam os povos de 30 nações submetidas recordam o que havia de inviável no projecto da primeira tentativa de Estado Universal, a dos persas, implantado em três continentes. A soberania do “Rei dos Reis” abrangia territórios que iam do Danúbio ao Indo, da Arábia às estepes da Ásia Central. O sonho foi retomado muitas vezes e sempre fracassou.

Arqueólogos das grandes universidades da França, dos EUA e da Inglaterra, sob a direcção de colegas iranianos, realizaram um filme maravilhoso, um esforço para recriar Persépolis tal como era a partir do que dela sobrou. Fui obrigado a fechar os olhos quando vi aquilo. As portas de bronze da Apadana, os touros com cornos e cascos dourados, as colunas de mármore negro, os tectos de madeira trabalhada, as tapeçarias, as pinturas murais, o luxo das vestes bordadas, a profusão de pedras preciosas, tudo me atingiu como espectáculo inimaginável. No mundo antigo nada se fez comparável a Persépolis; povo algum voltou a erguer colunas tão altas como aquelas.

O sol do planalto iraniano queimava a terra ressequida, iluminando a fl oresta de ruínas que subia para um céu azul, sem nuvens. O calor era tamanho que afastava dali até as aves, refugiadas em manchas de arvoredo, distantes. Ambos conhecíamos imagens do conjunto palacial de Persépolis. Mas tudo nos pareceu desconhecido, novo, na Apadana, na Sala das Nações, nos palácios de Dario e Xerxes, no Palácio das Cem Colunas. Como pôde Alexandre, um príncipe culto, tomar a decisão bárbara de incendiar Persépolis? A pergunta nunca terá resposta.

O sol descia no horizonte quando avistámos Naqsh-i-Rostam. Os imperadores persas eram sepultados entre o céu e a terra. A grande necrópole dos aqueménidas nasceu de um desafio à imaginação. Num paredão de 64 metros, quase vertical, abrem-se, escavados na rocha, os sepulcros de Dario I, de Xerxes, de Artaxerxes I e de Dario II. O forasteiro é tocado pela mensagem irradiada por aqueles túmulos rupestres. As inscrições transmitem o discurso de um poder absoluto. O rei apresentava-se como o garante da paz e da felicidade colectiva: “Eu sou Dario, o grande rei, rei dos reis, o rei do país de todas as raças, o rei sobre esta grande terra que se estende muito longe, o filho de Hystapes, um aqueménida, um persa, um ariano de origem ariana”.

Interpretado hoje, agride como brado racista. Mas a política de Dario, paradoxalmente, não era racista. O império era um Estado multinacional, amálgama de povos muito diferentes que gozavam de ampla autonomia sob o governo de sátrapas persas. O arianismo de Dario diferia do proclamado por Hitler. Uma política racista teria destruído uma construção frágil como era o Império Aqueménida, um território de 5 milhões de quilómetros quadrados.


Esfahan e o mito do Paraíso

Os persas antigos diziam que foram eles os inventores do Paraíso. A palavra surgiu no tempo de Ciro, o Grande, para designar os jardins do seu palácio em Pasargada. No planalto iraniano, atravessado durante milénios por invasores vindos de múltiplos azimutes, parcelas de heranças culturais ali acumuladas sobreviveram sempre a períodos de violência e barbárie.

Desde Sialk, cujo sítio arqueológico, com 7000 anos, me comoveu, houve continuidade na criação de coisas belas, na transmissão do saber. Sementes de civilizações destruídas ou rudemente golpeadas fecundaram de modo permanente culturas que, em cadeia ininterrupta, surgiram nos oásis emoldurados por montanhas ciclópicas. Esfahan é talvez o mais expressivo exemplo dessa enigmática vocação dos povos iranianos para passarem de fases trágicas a um renascimento explosivo, inovando com imaginação no campo da cultura.

Esfahan (hoje com 2 milhões de habitantes) ilumina bem esse estranho fenómeno da continuidade e interacção das grandes culturas. A cidade dos séculos XVI e XVII é um hino ao génio persa. A alegria de viver parece ali brotar dos palácios, mesquitas, jardins e fontes que fizeram da capital dos safévidas o paraíso terrestre do Islão.

O Zayandeh, o rio que banha Esfahan, é um rio estranhíssimo. Desce dos cumes nevados da cordilheira do Magros, percorre planuras que transforma num oásis de fartura, atravessa a cidade, onde se espraia, perguiçoso, e após uma centena de quilómetros, morre nos areais do deserto. São muitas as pontes seculares que o cruzam. Na mais bela, um rei fez instalar a meio, de cada lado, palacetes octogonais com motivo decorativos que estimulam a imaginação. Quando Esfahan passou a capital, o Xá Abbas I fez dela a mais bela e civilizada cidade do mundo islâmico, ultrapassando o Cairo e Istambul. A sua fama correu mundo. Da China, da Índia do Grão- Mogol, até da França chegaram viajantes, sábios e artistas para conhecer o paraíso terrestre criado pelo mecenas da Pérsia.

Na despedida de Esfahan fomos tomar chá numa esplanada debaixo de uma ponte construída há quase quatro séculos. O Zayandeh corria pelos canais, sob os arcos, despenhando- se em cascatas espumejantes para um nível inferior, onde a corrente retomava a sua lentidão. Nos degraus que baixavam até à água, centenas de pessoas, jovens e velhos, conversavam, sentados, gozando o frescor da noite.

O passeio findou na Praça do Imã, Património da Humanidade. Com 650 metros de comprimento e 150 de largura, emudeceume. O edifício de dois pisos que a abraça a toda a volta atraía uma densa multidão que circulava sob as arcadas onde se abrem centenas de lojas. Duas mesquitas fascinantes e um palácio real, incrustados na estrutura da gigantesca praça, transportam o viajeiro pelas estradas da imaginação aos esplendores da arte safévida, quando a Pérsia emergia como o pólo da cultura islâmica oriental. 

Senti ali que a lei da vida não me permitirá voltar. Mas também que a Esfahan safévida, como a Persépolis aqueménida, se tornaram parte de mim. O sortilégio de ambas, distanciadas por vinte séculos, é inseparável da atitude do povo persa perante os antepassados, assumida pelas novas gerações, atitude identificável na qualidade de vida que lhes marca o quotidiano.

Sem o acesso à riqueza e bem-estar das elites dos povos do Primeiro Mundo, os iranianos do século XXI perseguem tenazmente a felicidade possível e a alegria de viver. Por isso mesmo não acreditam na guerra. É falsa e perversa a imagem de país de fanáticos. 

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