No que é que nos fomos meter?
Estamos à beira do precipício: à nossa frente há uma imensa auto-estrada de neve e não há forma de lhe fugir. Temos esquis nos pés, um instrutor com uma paciência à prova de bala, um medo que petrifica — e uma enorme falta de jeito.
No que é que nos fomos meter?, repetimos, até que encontramos uma pergunta melhor: haverá por aí algum super-herói que sobrevoe estas montanhas geladas e nos deixe, numa fracção de segundo, sãos e salvos à porta do hotel, onde nos espera uma massagem de relaxamento?
Não? Ok, Jacques, vamos a isso, o que não tem remédio, remediado está.
Não é tão fácil como parece. Tudo o que aprendêramos esta manhã reduziu-se a pó (de neve). Ser principiante em Courchevel deve ser exactamente o mesmo que ser principiante na serra da Estrela, mas o estigma da vergonha torna-se ainda maior quando vemos, em sentido contrário, um grupo de crianças pequenas (cinco, seis anos no máximo) deslizar alegremente neve abaixo — percebemos depois que são suíças, o que aumenta a probabilidade de terem nascido com esquis nos pés.
Nós por cá continuamos aterrados — as pernas tremem-nos, não temos a mínima ideia de como se fazem as curvas, os joelhos doem-nos. Apetece-nos gritar de medo mas, dizíamos, não há nada a fazer. Ainda ensaiamos uma birra e pedimos a Jacques Dupuy, o nosso instrutor, para parar numa das pequenas inclinações desta pista verde. Ele aconselha-nos a prosseguir, insistimos. Tiramos os esquis e percebemos que é pior a emenda que o soneto: caminhar pela neve com estas botas duríssimas é demasiado complicado.
Só agora percebemos, finalmente, que não há mesmo nada a fazer. Temos o terror estampado no rosto mas aqui vai disto. Lançamo-nos para o abismo branco, com Jacques sempre a nosso lado, o bastão esticado à nossa frente para qualquer eventualidade. Não tivéssemos tanto medo e quase poderíamos desfrutar do momento: vamos a uma velocidade ridícula para quem tem quilómetros de esqui nas pernas mas acreditamos que a sensação pode ser libertadora. Para nós, contudo, a liberdade chega noutra altura: quando alcançamos o final da pista Jardin Alpin, o que significa que há terra firme à distância de meia dúzia de passos. E não precisamos de esperar mais de dois minutos para entrarmos na navette e alcançarmos o que nos parece o paraíso: La Sivolière.
Glamour discreto
Estamos em Courchevel, nos Alpes franceses, a 1850 metros de altitude, num refúgio de madeira cinco estrelas. La Sivolière obteve a sua quinta estrela em 2010 e, embora não a tenhamos conhecido na sua anterior encarnação, a distinção parece-nos mais do que justificada. Era noite cerrada quando aqui chegámos mas percebemos logo que estávamos prestes a entrar num reino encantado. A arquitectura ajuda — e muito — à festa: um belo chalet de madeira e pedra, moderno mas sem perder de vista a tradição, como convém a um hotel que quer render homenagem à região onde se insere, a Saboia. E a natureza dá o empurrãozinho que faltava para passarmos para o outro lado do espelho: quem resiste a um cenário onde há neve empilhada em cima dos telhados?
Dentro de portas, porém, o ambiente de história infantil dá lugar a um glamour inegável mas discreto. Os interiores são da responsabilidade do arquitecto Pascal Chatron-Michaud, especialista em arquitectura de montanha, e do designer de interiores Tristan Auer, que no currículo conta com uma colaboração com Philip Starck.
E a procissão ainda vai no adro, o que neste caso quer dizer que ainda só deitámos o olho a parte das áreas comuns. Quando entramos na suite que nos calhou em sorte, demoramo-nos a observar os detalhes: a madeira é o elemento dominante, presente nas paredes, na cama, no roupeiro, nas portas que separam a área de dormir da área de trabalho (fará sentido dizer isto neste contexto?) ou de lazer. Há janelas com vista para a neve, que atinge uma altura impressionante, e também uma varanda sobre este pedaço dos Alpes. A coisa promete, pensamos, mas esperemos pela luz do dia para tirar a prova dos nove.
Por agora descemos ao restaurante 1850, onde o chef Bilal Amrani nos aguarda com um manjar dos deuses — de que vamos dar nota apenas da raclette e da tartiflette com queijo Reblochon, para não causar invejas desnecessárias. Comemos praticamente como se não houvesse amanhã e a factura há-de chegar em breve: apesar do conforto da cama, a noite foi uma batalha constante com o estômago e com o corpo ainda às voltas com o peso da altitude.
Acordamos de um sono mal dormido ainda não são 8h. Abrimos as cortinas e temos o primeiro embate: neva insistentemente, o céu está cinzento, julgamos ver nevoeiro — e ainda assim o cenário é avassaladoramente belo. A neve, os pinheiros alpinos, os telhados de madeira, tudo a compor uma moldura que nos parece irreal.
Não é, como veremos mais daqui a pouco, já depois de termos tomado o pequeno-almoço com vista para a floresta e as pistas que rodeiam o hotel — uma das vantagens de La Sivolière é justamente permitir uma saída directa de esquis nos pés. Não é (ainda) o nosso caso — estamos a estrear-nos nestas andanças de neve e tiramos este primeiro dia para um passeio de raquetas.
A neve não parou de cair e diz quem sabe que estão seis graus negativos. Não é preciso muito tempo para que nos habituemos a pisar o tapete fofo que temos por baixo dos pés. A um ritmo cada vez mais compassado, vamos desbravando esta paisagem branca a perder de vista, que só ganha matizes de cor quando esquiadores experimentados a cruzam, velozes e com a adrenalina alimentada. Pinheiros alpinos erguem-se em direcção aos céus e alguns dos seus ramos vergam-se ao peso da neve, que não tem dado tréguas. É fácil ficarmos de queixo caído diante deste cenário imaculado e de silêncio quase absoluto.
Estamos no Chemin des Ecureuils (Caminho dos Esquilos) e o corpo já começa a dar sinais de algum cansaço. É a falta de treino, aliada à altitude. Do céu continuam a cair flocos branquinhos e já percebemos que a paisagem não mudará muito daqui por diante: toneladas de neve, pinheiros e telecadeiras carregadas com esquiadores entusiasmados. Pensamos voltar ao hotel, até que encontramos Janeau, o cão preto que apanha bolas de neve no ar, e deixamo-nos ficar a observar o espectáculo.
Abandonamos as raquetas na Ski Shop de La Sivolière e atrai-nos o aroma doce dos crepes quentinhos e das tartes de maçã. Antes, porém, preparamos a estreia do dia seguinte: as botas do esqui são de 25 centímetros e o capacete é preto.
Desejem-nos sorte.
1850, código do luxo
E ao segundo dia vemos Courchevel em todo o seu esplendor. Está uma manhã clara, de céu azul, e o sol acordou bem-disposto. Só hoje conseguimos pôr os olhos nas montanhas nevadas que rodeiam a vila feita de chalets de madeira — e só hoje percebemos melhor de onde lhe advém todo o charme.
Courchevel está integrada naquele que é considerado o maior domínio esquiável do mundo, com mais de 600 quilómetros de pistas — os Três Vales, que incluem, entre outras, as famosas estâncias de Méribel e Val Thorens, a estação mais alta da Europa (2300 metros). Mas não estaremos a arriscar muito se dissermos que Courchevel é uma das mais exclusivas estâncias de montanha do planeta. E quanto mais próximos do céu estivermos, melhor. Courchevel 1850 é diferente de Courchevel 1550 — e não estamos a falar de um código postal, antes da altitude a que nos encontramos, o que aqui faz toda a diferença. Ou seja, quanto mais alto, mais caro, tão simples quanto isso.
Aqui, do cimo destes 1850 metros, as casinhas de madeira com quilos de neve amontoada nos telhados são na maior parte construções de bom gosto, que albergam lojas de luxo (joalharias são aos montes e depois há todo um desfile de Chanel, Valentino, Cartier, Hermès e outros que tais), hotéis de quatro ou cinco estrelas, restaurantes de topo e bares e discotecas onde importa ser visto quando a noite já caiu sobre as pistas. Se estivessem à venda — que não estão — alguns destes chalets chegariam facilmente aos 50 milhões de euros. Alugá-los pode custar 200 mil euros… por semana, adianta Jacques Dupuy, instrutor de esqui há mais de 30 anos, quando nos conduz para a zona dos principiantes de Courchevel.
Passamos a Croisette, o centro nevrálgico da estância de neve, e vemos o frenesim típico de um começo de dia que vai ser de esquis nos pés para milhares de turistas. Nós, porém, não temos “passaporte” que nos permita entrar nesta zona. Jacques, um francês de 53 anos que fala português com sotaque do Brasil (a École du Ski Français, uma das mais reputadas da Europa, orgulha-se de ter monitores que falam 25 línguas diferentes), escolta-nos até ao lugar onde tudo começa. “O magic carpet”, indica, sorridente. Mais não é do que um tapete rolante que leva os principiantes ao topo de um desnível muito ténue, para que possam treinar os primeiros passos na arte do esqui.
Estamos, naturalmente, num troço de pista verde — o fundo da cadeia alimentar das pistas, cuja acessibilidade se mede por cores, da verde (mais fácil, para iniciantes) até à preta (mais difícil, para “profissionais” da neve) — e ainda não sabemos sequer caminhar com estes “pés” enormes a que se convencionou chamar esquis. Dentro das botas (não podiam ter inventado umas menos duras?), os pés verdadeiros estão apertadíssimos, as canelas estão esmagadas e movimentar os esquis exige concentração — leva alguns instantes até que percebamos que devemos mexer um de cada vez. Mas Jacques é um professor paciente e daqui a uns minutos já nos equilibramos e até já sabemos travar. Porém, quando estamos quase a saber curvar, acontece a primeira queda. “Pas grave”, incentiva Jacques. Que, mais daqui a pouco, nos dirá que, a este ritmo, em três dias estaremos a descer uma pista vermelha.
É um optimista, Jacques Dupuy.
Daqui a pouco, isso sim, estaremos a meio da pista Jardin Alpin a chamar por super-heróis, mas isso vocês já sabem. O que não sabem é como lá chegámos.
A noite é ainda melhor?
Não foi propriamente por magia, mas à hora de almoço estamos no pico Saulire, a 2732 metros de altitude. Chegámos a este (quase) deserto branco depois de duas boleias, uma de gôndola e outra de um enorme teleférico. Foi pena que não tivéssemos apreciado as vistas enquanto subíamos, mas as vertigens obrigaram-nos a cumprir quase todo o caminho de olhos bem fechados. Novamente com os pés assentes na terra, eis-nos agora num miradouro privilegiado para os picos nevados destas paragens. Diz quem sabe que se o dia estivesse totalmente claro veríamos o Monte Branco na perfeição — hoje, contudo, temos que nos contentar com a visão de uma pequena parte daquela que é a mais alta montanha da Europa Ocidental (mais de 4800 metros).
Está um frio de rachar a esta altitude, mas nem por isso desistimos de pôr as mãos de fora e guardar no cartão de memória esta paisagem sublime. Demoramo-nos na varanda do restaurante Le Panoramique que, a esta hora, mais parece um parque de estacionamento de esquis. As cadeiras com vista para os picos nevados estão praticamente lotadas — há que descansar o corpo e alegrar os olhos e, em muitos casos, preparar a descida pela pista vermelha que a partir daqui se desenrola.
É o que fazem Béatrice Blanc e a filha, Marie Laure. São habituées em Courchevel e praticamente profissionais do esqui. Embora sejam ambas originárias da Normandia, mãe e filha vivem há quatro anos na vizinha Suíça — e há quatro anos que não perdem uma temporada em Courchevel. Gestora de empresas, Béatrice mudou-se para Genebra e consigo levou a filha, agora com 13 anos. Marie Laure aprendeu a esquiar “nestas neves”, conta, apontando em redor, e desde então tornou-se fanática. “Em Courchevel é tudo bom: a neve é óptima, os hotéis são super, a comida também, o après-ski tem glamour, há lojas fantásticas… E para além disso já vamos conhecendo pessoas de uns anos para os outros”, explica Béatrice. E, claro, há um atractivo adicional: “A Suíça também tem boas estâncias, mas aqui sempre estamos em casa”, sorri. “La France, la France…”
Marie Laure é uma miúda loira e bem-educada e por isso não pede à mãe que apresse a conversa — mas nota-se-lhe no rosto já bronzeado, a indiciar os cinco dias que já leva de neve, que começa a “ressacar” da adrenalina que lhe provoca descer as pistas. Despedem-se com um “au revoir” em uníssono e ficamos a vê-las desaparecer, ziguezagueantes, por esta gigantesca via láctea branca.
Não é coisa, evidentemente, para nós. Apanhamos o teleférico que nos deixa em plena pista Jardin Alpin, fazemos a fraca figura que já conhecem, largamos o equipamento com toda a pressa do mundo e eis-nos agora, a salvo, no spa do Hotel La Sivolière. Depois de um dia inteiro com as botas de esqui enfiadas, não podíamos pedir melhor recompensa do que uma massagem de relaxamento. Dura uma hora e Michèle deixa-nos os músculos preparados para aguentar o embate do esforço nos próximos dias.
Quase a flutuar, dirigimo-nos agora, a pé, para a Croisette. São cinco minutos a andar pelas ruas iluminadas de Courchevel, a pensar que esta pode muito bem ser uma vila de eterno Natal. O coração da estação está a bombar: hoje há “Verdons at night”, que é como quem diz, pistas abertas entre as 18h e as 20h. São 18h52 e estão 12 graus negativos — desde que aqui chegámos nunca sentimos tanto frio. A caneta, gelada, não desliza no bloco de notas.
Quem domina essa ciência complexa que é o esqui garante que esquiar à noite “dá ainda mais pica” — tradução livre das palavras de Jean Christophe, que encontramos no fim da pista com um genuíno sorriso de satisfação. Veio de Paris com os amigos, trata o esqui por tu, mas só hoje se estreou na modalidade nocturna. “C’est super, super!”, comenta. Pede desculpa “por ser tão indelicado” e toma de novo a gôndola. “Ainda tenho tempo para mais uma descida”, justifica-se.
Ficamos mais uns minutos a observar o belo espectáculo que é este esqui nocturno. O céu está escuríssimo, o que faz sobressair ainda mais o branco, branquíssimo, da neve, que brilha sob os holofotes da pista. E agora, num acto irreflectido, que lamentaremos daqui a nada, decidimos tomar a mesma gôndola que grupos esquiadores usam para subir a montanha.
Com companhia, a subida custa menos e até se consegue apreciar a beleza crua e a imponência da montanha. Só lá em cima percebemos que toda a gente vai descer a esquiar e que ficaremos praticamente nós e o medo. Há dois ou três grupos de esquis nos pés — mas ninguém para apanhar boleia da gôndola. Estamos sozinhos, numa gôndola gelada a esta hora — o relógio marca 19h27 quando começa a descida.
Fechamos os olhos com força e tentamos esquecer-nos que estamos sós, a uns bons metros do solo e do topo das árvores cobertas de branco. Algures, alguém estará a rir-se com vontade: a banda sonora dentro da cabina não podia ser mais adequada. “I’m on the highway to hell.”
São sete penosos minutos até alcançarmos terra firme. Cai uma espécie de chuvinha cristalizada, faz um frio dos diabos e de repente temos a visão que há muito procurávamos. Chama-se Christophe, é da zona de Bragança e trabalha no hotel. Hoje está ao volante da navette que nos há-de levar ao porto seguro que é La Sivolière.
Quem disse que não há super-heróis?
Guia prático
Como ir
Há várias opções para chegar a Courchevel. Uma delas é voando para Lyon (cerca de 200 quilómetros de distância); a outra é por Genebra (135 quilómetros). A TAP tem voos para ambas as cidades, com preços a partir de 148 euros para Lyon e de 220 euros para Genebra. Em ambos os casos, será sempre preciso um transfer do aeroporto para a estância, mas muitos dos hotéis da região asseguram esse serviço.
La Sivolière
Rue des Chenus
73120 Courchevel 1850
Tel.: 0033 (0) 4 79080833. www.hotel-la-sivoliere.com
Aberto até 14 de Abril.
Dispõe de 24 quartos, 11 suites e dois apartamentos. Tem também serviços exclusivos para crianças, no âmbito do serviço Mini Sivo. Entre outros mimos (como uma recepção especial para os mais novos), tem oficinas de chocolate ou de perfumes, um restaurante específico para crianças e este ano apresenta uma novidade: os lanches da tarde acontecem num igloo situado perto do hotel. Las but not least: La Sivolière é um hotel amigo dos cães, tendo também serviços específicos para estes animais.
Preços: quarto clássico a partir de 505€ (para uma pessoa), quarto superior a partir de 890€ (duas pessoas), suite deluxe a partir de 1710€ (duas pessoas), apartamento duplex para seis pessoas, com cozinha, a partir de 4430€. Há mais tipologias de alojamento disponíveis.
Forfaits
Passe Courchevel: seis dias por 218€ para adultos e 174 para crianças; o passe familiar (para dois adultos e duas crianças) faz com que cada uma das pessoas pague 174€.
Passe Três Vales: permite esquiar em todas as estações que compõem o domínio dos Três Vales. Adultos por 260€, crianças por 208€; passe familiar a 208€ por pessoa.
Mais informações: www.courchevel.com
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A Fugas viajou a convite da TAP e do Hotel La Sivolière