Não conseguimos ver nada. Ajeitamos os binóculos uma e outra vez mas nada, só o azul do céu. Somos estreantes no birdwatching e, apesar das instruções da guia, não acertamos à primeira. Insistimos. Os abutres-do-Egipto e os grifos parecem adivinhar a nossa inexperiência e aproximam-se, a planar ao sabor do vento frio. De repente, é como se estivessem ali mesmo ao alcance da mão. Vemos-lhes de perto as longas asas, as penas castanhas e brancas, os bicos de ponta redonda. Dão voltas no ar, quase em festa. Até parece que vieram só para nos ver.
oi por eles que acordámos às 7h naquele domingo frio, ou melhor, gelado, como tinham previsto os meteorologistas, no final de Abril. A semana anterior tinha sido quente em Lisboa mas quando nos pusemos a caminho da Guarda já sabíamos ao que íamos. “Há possibilidade de chuva ou saraiva fracas e temperatura mínima de 4ºC”, avisou Henrique Pereira dos Santos, um dos anfitriões. Trememos só de pensar. Afinal, a chuva só apareceu no sábado à noite, o pior foi o vento. Fomos salvos pelo sol, que brilhou sempre num céu azul povoado de nuvens, tão baixas que quase podíamos tocar-lhes.
Na verdade, nós é que estávamos mais altos do que o costume, a 500 metros de altitude e a cerca de 140 quilómetros a nordeste da serra da Estrela. É aí que fica a Reserva da Faia Brava, entalada entre as freguesias de Algodres e Vale de Afonsinho (Figueira de Castelo Rodrigo) e Cidadelhe (Pinhel), no distrito da Guarda. É uma propriedade de 800 hectares, a única área protegida privada do país, inserida na Zona de Protecção Especial do Vale do Côa, da Rede Natura 2000, e gerida pela Associação Transumância e Natureza (ATN).
A reserva estende-se ao longo de cinco quilómetros nas margens do rio Côa, que corre de Sul para Norte num vale encaixado entre escarpas acentuadas. São elas que emprestam o nome ao local — faia, naquela região, significa escarpa. É nas rochas inclinadas de granito amarelado que as aves de rapina residentes fazem os ninhos. Localizá-los é tão (ou mais) difícil como encontrar o famoso boneco Wally nas ilustrações do britânico Martin Handford. Mas nós tentámos e tivemos sorte.
A caminho da “selva”
A observação de aves é o ponto alto do programa de fim-de-semana selvagem lançado pela ATN, do qual fomos “cobaias”. São dois dias passados no meio da natureza, num autêntico safari à moda da Beira Alta: inclui passeios de jipe todo-o-terreno, encontros imediatos com vacas maronesas e cavalos selvagens que passeiam livremente pela reserva e tendas de campanha (ainda que mal montadas, mas já lá vamos).
O programa está pensado para grupos de, no máximo, oito pessoas — tantas quantas cabem no Land Rover verde tropa da ATN. A ideia é que os visitantes viajem de comboio até à Guarda, independentemente da origem, e regressem a casa do mesmo modo, numa lógica sustentável. Foi o que fizemos.
A aventura começa no sábado de manhã. Os três amigos que desafiámos para compor o grupo compareceram, como nós, ensonados na estação do Oriente, em Lisboa, de bilhete na mão para o comboio das 8h39 com destino à Guarda. Mochila às costas, casacos debaixo do braço, ténis calçados, tudo pronto para quatro horas descansadas de uma viagem que deu para tudo: ler, conversar, petiscar, dormitar e apreciar a paisagem, que a partir de Coimbra ganha mais cor.
Na Guarda, a mais de 300 quilómetros de Lisboa e a 200 quilómetros do Porto, espera-nos o sorriso de Alice Gama, a coordenadora de projectos da ATN que há-de ser a nossa guia. Ao volante do jipe, conduz-nos pela estrada nacional paralela à auto-estrada 25, esta cada vez mais vazia por causa das portagens.
Após poucos minutos de viagem, uma primeira paragem para almoço, que a barriga já dá horas. Saímos da estrada e metemos por um caminho que leva à ribeira das Cabras. À nossa frente, um grande lago, cheio pelas chuvas de Abril, emoldurado pelo arvoredo. A toalha do piquenique carinhosamente preparado com comida caseira é estendida no chão, à sombra generosa de um freixo. Sentados ao sol e a ouvir pouco mais que o coaxar das rãs, apetece-nos parar o tempo, como se ali fosse possível. Parece, mas não é. Temos 80 quilómetros pela frente.
Arrancamos com destino à freguesia de Algodres, onde a ATN adquiriu as primeiras propriedades da reserva, em 2000. “No início houve desconfiança, ninguém sabia bem o que estávamos a fazer aqui”, admite a coordenadora da ATN. Com o tempo isso mudou e hoje a associação está integrada na comunidade local. As poucas pessoas que vamos encontrando pelo caminho, desde Algodres até Vale de Afonsinho, onde fica a entrada sul da reserva, levantam a mão em jeito de cumprimento assim que vêem o jipe.
A reserva nasceu com o objectivo de proteger o abutre-do-Egipto, ameaçado de extinção, e a águia-de-Bonelli, que nidificam nas escarpas do Vale do Côa. Mas em 2003, depois de um incêndio que devastou parte da reserva, a associação passou a dedicar mais atenção também à gestão florestal.
É aqui que entram os animais selvagens. “Usamos o cavalo garrano para abrir clareiras, o que antigamente era feito pelos rebanhos”, exemplifica Alice Gama. A estratégia, baseada no conceito do projecto Rewilding Europe, desenvolvido pelo World Wildlife Fund entre outras organizações, passa por deixar que a natureza “tome conta de si mesma”, num modelo de gestão passiva, dando condições às espécies para que estas se fixem nos territórios.
A ATN gere o mosaico agro-florestal, cultivando cereais como o trigo e o centeio, que aumentam o alimento disponível para as presas das aves de rapina, como o coelho e a lebre, a perdiz vermelha, entre outras. Também recupera cursos de água e monitoriza as áreas de nidificação no vale, para garantir que as espécies se reproduzem e sobrevivem. “É a gestão mais barata que existe”, diz a coordenadora.
Encontros imediatos
Dentro do jipe não há vento (e que ventania lá fora…), nem frio, nem se cansam as pernas. Vamos aos saltos no banco à medida que o Land Rover, com a tracção às quatro, vai subindo caminhos de cabras inclinados, atropelando pedregulhos e furando por entre a vegetação. Enquanto conduz, Alice Gama descodifica a paisagem, marcada por hectares de oliveiras, azinheiras e sobreiros. Ficamos mais tarde a saber que um dos ex-líbris da reserva é um enorme sobreiro com mais de 500 anos, classificado de interesse público, de tronco grosso e ramos fortes. É o maior ponto de interesse do Trilho dos Sobreiros, um dos vários percursos organizados pela ATN (ver caixa).
Vamos parando ao longo do caminho para apreciar as escarpas e, aqui e ali, apontar os pombais caiados de branco, pequenas casitas que serviam de abrigo aos pombos e de depósito de estrume para adubar as terras.
Seguimos por um caminho enlameado à procura das vacas maronesas, como se procurássemos leões na selva. Avistamos finalmente uma manada num vale, depois da curva. Serão nove, entre adultos, vitelos e bebés. Param de comer para ver quem lá vem. Em resposta ao nosso entusiasmo, os animais viram costas assim que paramos o jipe e nos aproximamos. Resignados, voltamos para trás.
Não chegamos a ir ter com o senhor Abel, o trabalhador rural da ATN que dá nome aos “Sábados do Abel”. Os visitantes da reserva podem ajudá-lo nos vários trabalhos que desenvolve: desmatações, construções, manutenção de trilhos e vedações, plantação de árvores, entre outros.
Em vez disso, seguimos para a próxima missão: encontrar os garranos que andam à soltam pela reserva. São perto de 40, entre adultos e potros, muitos deles nascidos na Faia Brava. Deixamos o jipe e seguimos a pé as pistas (ou melhor, Alice segue as pistas e nós seguimos Alice): as pegadas no chão, o cheiro, o som. A estrada de terra leva-nos até ao vale onde os encontramos a pastar. Robustos, de olhar meigo e atrevido, estão ali como que a dizer “bem-vindos ao acampamento”.
Acampar nas hortas
São quase sete da tarde e o sol vai descendo. No acampamento, as tendas de campanha estão montadas nas Hortas da Sabóia, num terreno plano à sombra das oliveiras. À primeira vista parecem ter algumas falhas de “construção” — já sabíamos que testar o material fazia parte do programa, ainda em afinação. O único problema seria a chuva, e esta acabou por cair ao início da noite, deixando marcas no interior das tendas.
A ATN disponibiliza sacos-cama aos visitantes, que podem ser turistas portugueses, estrangeiros ou grupos escolares. Para as escolas, a associação lançou o programa “Bravos na Faia”, através do qual grupos de 40 crianças podem pernoitar no meio da natureza e aprender mais sobre a biodiversidade da reserva. São precisas, para isso, mais seis tendas estilo safari, no valor de 4150 euros. Para as adquirir, a ATN lançou uma campanha de crowdfunding, que está em curso na plataforma online PPL.com.pt.
O acampamento dispõe de instalações sanitárias, acessíveis a pessoas com mobilidade reduzida, que devem ser bem mais agradáveis no Verão. Quando perguntámos, antes de chegar, se poderíamos tomar banho na reserva, a resposta foi clara: podem, mas a água vai estar à temperatura ambiente (quase negativa, ao fim do dia). Sabíamos o que isso significava. Na Faia Brava não há água canalizada ou electricidade, muito menos esquentador. Safari é safari.
Meia hora para descansar as pernas e pomo-nos outra vez ao caminho. São 19h30 e temos pela frente uma caminhada de 30 minutos até ao jantar, que nos espera em Vale de Afonsinho, no café do senhor Henrique. Ali não há restaurantes, este é mesmo o único café da aldeia, onde se juntam os homens (poucas mulheres) a beber um copo e a ver o futebol, para fugir do frio.
O sol põe-se atrás de nós e a luz que bate nos troncos das árvores mortas — encontramos muitas pelo caminho — parece dar-lhes uma segunda vida. Arrefece, mas vamos com o sentido na garagem do senhor Henrique, que encontramos aquecida pela salamandra a lenha. A mesa está posta e não nos falta nada: vinho caseiro, uma sopa quente com os legumes da horta, carne tenra com arroz e até há bolo de bolacha, tudo feito com amor pela dona Maria da Conceição. Sobre a “sua Maria”, o senhor Henrique fala com orgulho. Estão juntos há uns 30 anos e não se largam nem no trabalho, ele ao balcão, ela na cozinha sempre que é preciso.
Ginjinha ao luar
Custa-nos sair da garagem (enquanto lá estivemos, ouvimos a chuva cair lá fora) mas fazemo-nos ao caminho de volta à reserva. “Ninguém leva lanternas”, avisou Alice Gama antes de sairmos. Contávamos com a luz generosa da lua cheia para nos alumiar o caminho mas São Pedro trocou-nos as voltas. As nuvens taparam o céu. Mesmo assim, enfrentámos a escuridão. Custou mais porque não víamos as poças de água no chão (ganha forma a expressão “meter a pata na poça”), mas fomos bravos, atrás da guia.
Na reserva, esperava-nos um céu estrelado — com estrelas cadentes, daquelas que não se vêem em Lisboa. Pouco depois, a lua cheia nasceu ali mesmo à nossa frente. Parece que os astros se alinharam para nos fazer esquecer dos pés gelados — mas para isso tínhamos levado a ginja de Óbidos (não faz parte do programa), mais eficaz. A garrafa ficou a meio. Bom, éramos seis e tínhamos frio.
As tendas meteram água, é verdade, mas nada que atrapalhasse o sono. A alvorada era às 7h, tinham-nos prometido um despertar barulhento se não fosse a bem. Não foi preciso. O nascer do sol, mesmo em frente ao acampamento, e o céu sem nuvens convencem qualquer um a sair da tenda. Mas os mimos não se ficam por aqui. O pequeno-almoço tomado na mesa de madeira à sombra de uma árvore aquece até a alma. Café acabado de fazer, doce de amoras artesanal (com amoras inteiras, mesmo!), mel de rosmaninho, doce de figo preto, pão fresco. E a cama de rede presa a duas árvores, debaixo dos raios de sol que começam a aquecer. Temos mesmo que ir embora?
O relógio — sobretudo o biológico, das aves — não perdoa: é pela manhã que estão mais activos os pássaros que queremos ver de perto. Saímos às 8h armados de binóculos, prontos para aguçar o olhar e detectar movimento nos ramos das árvores. Rodeados de rosmaninhos em flor e por entre a vegetação rasteira e farta, seguimos a guia. Os percursos habituais de birdwatching demoram sete horas mas a nossa versão é mais curta: por volta das 11h temos de sair para estar na estação da Guarda a tempo de apanhar o comboio de regresso a casa, ao final da manhã.
Chegados a uma clareira num vale, perto de um charco, paramos de olhos postos no céu e nos pontos pretos que vão andando em círculos pelo ar. Atinamos com os binóculos e vemos os abutres-do-Egipto, ou britangos, os grifos (há 50 casais residentes na reserva), até um casal de corvos apareceu para nos cumprimentar.
É junto a um pombal que assentamos arraiais, ou melhor, que assentamos o telescópio, apontado em direcção à escarpa do lado de Cidadelhe. Alice Gama lança o desafio: “Vamos ver quem consegue encontrar primeiro o ninho de grifos.” Na rocha granítica amarelada, detectar as penas acastanhadas dos grifos é uma missão quase impossível. Mas eles lá estavam, na pedra por baixo da mancha branca e ao lado de uma sombra. Mais do que um, até. Há outro mais abaixo. E do outro lado o ninho da águia-de-Bonelli, escondido até não poder mais.
O picanço, as andorinhas e os pica-paus fazem-se ouvir no caminho de volta ao acampamento. Não os vemos. Conseguimos encontrar a poupa instalada no ramo de uma árvore ao fundo, já não é mau. É com essa imagem que deixamos a reserva para trás, certos de que não vimos tudo o que havia para ver. Não fomos ao alimentador de abutres vê-los de perto enquanto comem, por exemplo. Terá de ficar para a próxima.
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Produtos
A ATN comercializa produtos da região e artesanais, como amêndoas doces ou picantes, pêras secas, compotas de figo ou amoras e mel com amêndoas ou nozes. Cada pacote ou frasco custa três euros, dos quais 0,30 euros revertem para o fundo de aquisição de propriedades. Tem ainda azeite biológico (6,50 euros, com 2,50 euros a reverterem para o fundo), um atlas e cantis e ainda vouchers individuais para visitas à reserva. Por exemplo, é possível comprar um voucher para a realização de birdwatching, por 20 euros, que permite passar sete horas a observar as aves, com um guia. Para assistir de perto (a 10 ou 15 metros) à alimentação dos abutres, os visitantes podem comprar um voucher de acesso ao abrigo dos abutres, normalmente procurado por fotógrafos de Natureza, por 80 euros. Também é possível adquirir a experiência Faia Brava Descoberta, por 9,50 euros, que inclui uma visita guiada de 3h30 pelos pontos mais emblemáticos da propriedade. Mais informações em atnatureza.blogspot.pt
Trilhos pedestres
Para os amantes das caminhadas não faltam trilhos pedestres na Reserva da Faia Brava, que a associação adapta às condições e à vontade do grupo. No fim-de-semana em que visitámos o local foi inaugurado o Trilho da Barca, com cerca de dez quilómetros, que recria o percurso utilizado antigamente para ligar, por barco, as três aldeias em que se insere a reserva. Antes de ser construída a ponte da União, que agora liga as duas margens do Côa, a população utilizava uma barca para atravessar o rio. Existe ainda o Trilho dos Moleiros, antigamente usado pelos habitantes locais para descer até ao Côa, onde se situavam os moinhos de cereal, hoje em ruína. O percurso de 12 quilómetros passa perto do rio e depois sobe até ao pombal do Couto, o mais emblemático, que marca o limite norte da reserva, de onde se avista o vale entre as escarpas verticais. Pela Faia Brava passa também a Grande Rota do Vale do Côa, que normalmente começa na aldeia de Castelo Melhor, junto ao centro de interpretação do Parque Arqueológico do Vale do Côa, e termina em Cidadelhe. São 15 quilómetros a pé. O Trilho dos Sobreiros, que percorre a enorme mancha de sobreiro da reserva, com paragem obrigatória junto a um sobreiro com mais de 500 anos, ronda os três quilómetros.
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Informações
Reserva da Faia Brava
Rua Pedro Jacques de Magalhães
6440-111 Figueira de Castelo Rodrigo
Tel.: 271 311 202
www.atnatureza.org | www.facebook.com/faiabrava
Preços: O programa de visita e pernoita na Reserva da Faia Brava, disponível para grupos de até oito pessoas, custa 450 euros por grupo. Este valor é independente do número de participantes e inclui o transporte desde a estação da CP na Guarda até à reserva e a viagem de regresso, todas as refeições durante a estadia, o alojamento nas tendas, o passeio guiado pela reserva e o birdwatching. A viagem de comboio fica a cargo dos participantes.
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A Fugas esteve alojada na Reserva da Faia Brava a convite da Associação Transumância e Natureza