José Duarte já só é pastor aos domingos e aos feriados. Hoje, com 60 anos, dedica-se a outros negócios – aluguer de máquinas para trabalhar a terra. Mas o tom de voz até muda quando se põe a recordar os tempos em que, ainda menino, a vida lhe apresentou o ofício pastoril. Tinha uns 13 anos e não queria mais ir à escola. A mãe, de castigo, disse-lhe que ele ia passar o Verão a cuidar das ovelhas. Estava convencida que, ao fim daqueles meses, o filho já não conseguiria ver mais bichos e montes à frente. Enganou-se: “Apaixonei-me por isto. Somos só nós, as ovelhas e o silêncio, até parece que Deus está mais próximo de nós”, conta enquanto sobe a serra, entre Valhelhas e Fernão Joanes, no concelho da Guarda.
Esta é a primeira edição da Grande Rota da Transumância, que tem como objectivo recriar as viagens que os pastores do interior do país faziam, subindo e descendo a serra com os rebanhos, em busca das melhores pastagens. Foi recriada por etapas: em vez de se pedir aos interessados que tirassem uma semana de férias para subir a serra de uma assentada, decidiu-se dividir o percurso em 10 fases que decorrem quase sempre ao fim-de-semana e que podem ser feitas isoladamente (não é necessário participar em todas, nós só participámos na etapa Valhelhas-Fernão Joanes). Ao todo são 10 viagens, que precisam de 100 mil passos para serem feitas, ao longo de cerca de 100 quilómetros, com 2013 ovelhas oriundas de 12 rebanhos locais.
A primeira fase da rota, que aconteceu então faseadamente de 1 a 19 de Maio, recriou a subida às terras altas; a segunda fase acontecerá em Setembro e consistirá no percurso ao contrário, a descida da serra, como em tempos antigos: no Verão os pastores subiam à serra da Estrela; quando vinha o frio, desciam às planícies.
Quando José Duarte, o pastor aos domingos e feriados, nos explica que a transumância devia continuar a ser feita, porque ajuda o rebanho não só a evitar o frio como as doenças, a manhã já vai avançada ou, pelo menos, assim nos parece, uma vez que a caminhada começou pouco depois das 7h30, em Valhelhas, nas margens do rio Zêzere e concelho da Guarda. Vamos conversando e andando ao som dos chocalhos: “Este barulho do rebanho… É por isso que continuo a ser pastor aos domingos e aos feriados. Vou buscar energia a isto, ao chocalho”, diz José Duarte, sem dar mostras de cansaço durante a subida que só terminará aos 1020 metros de altitude.
Durante cerca de uma hora, quando ainda estávamos em Valhelhas a tomar um pequeno-almoço pastoril com direito, entre outras iguarias, a pão com o célebre queijo desta zona, vimos ordenhar uma ovelha e houve algumas pessoas, entre os participantes, que o experimentaram pela primeira vez. Ao todo, no percurso entre Valhelhas e Fernão Joanes, estiveram à volta de 30 pessoas, mas já houve outras etapas em que o número de participantes – houve escolas que também aderiram – ultrapassou os 700.
Dois mil anos
O presidente da Câmara do Fundão e da Agência de Desenvolvimento Gardunha 21 – a entidade coordenadora da rota –, Paulo Fernandes, que também percorreu os cerca de 12 quilómetros entre Valhelhas e Fernão Joanes, explicou-nos que a iniciativa, inserida no programa PROVERE para a Região Centro, tem como objectivo, entre outros, a valorização económica de recursos endógenos. “Há vários PROVERE, este está vinculado às áreas protegidas, é o PROVERE iNature. Como há aqui uma grande concentração de áreas protegidas, fomos ver quais as actividades que pudessem fazer a união de toda a região”, diz.
A rota desenha-se entre Idanha-a-Nova e a serra da Estrela, envolvendo os municípios do Fundão, da Guarda, de Idanha-a-Nova, de Castelo Branco, da Covilhã, de Manteigas e de Seia (conta também com a participação da Agência de Desenvolvimento Gardunha 21, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas e Naturtejo).
A transumância surgiu como elo de ligação entre todas estas terras: “É uma tradição com cerca de dois mil anos, que fazia a ligação entre as terras altas e as baixas. Era feita duas vezes por ano, uma de forma ascendente, outra descendente”, nota Paulo Fernandes, frisando que a iniciativa também tem uma mensagem política, “chamar a atenção para as áreas protegidas e para aquilo que é o mundo da agricultura e da pastorícia”. As próximas caminhadas deverão acontecer já em Setembro e a ideia é que continuem nos próximos anos.
A vereadora do Turismo da Câmara Municipal da Guarda, Elsa Fernandes, também sublinha que a transumância foi, durante muito tempo, a actividade que ligava cultural, económica e iconograficamente todo aquele território: “Achámos que fazia todo o sentido recriar a rota”, diz, justificando que hoje em dia, como há outras condições para alimentar os rebanhos, aquele movimento já não acontece.
Volta e meia, durante as paragens que fazíamos, à medida que íamos galgando aquelas encostas, surgia um grupo musical para animar os caminhantes. Os Serrabecos apareceram logo cedo, ainda Valhelhas; os Foligaitos também marcaram presença mais tarde, quando fazíamos uma pausa em Famalicão da Serra, para restabelecer energias e comer mais uns peticos: enchidos, queijo, pão, vinho…
Só chegaríamos à meta, ao recinto da festa de Nossa Senhora do Soito na pequena aldeia de Fernão Joanes, à hora do almoço. Foi ali que almoçámos e que passámos a noite, em camaratas divididas com os outros participantes. O almoço, como é feito à base de produtos típicos, não é indicado para vegetarianos: depois da sopa, segue-se a chanfana, feita à moda antiga, naquelas panelas de ferro preto. Comemos ao ar livre, no vasto recinto onde se situa a capela em honra da Senhora do Soito. Contou-nos o presidente da Junta de Freguesia de Fernão Joanes, Daniel Vendeiro, que encomendou a um pintor italiano as gravuras que existem no interior da capela. Disse ao artista que pintasse o que quisesse, que não precisava de escolher santos como temática. O pintor escolheu o tema das quatro estações. No dia da inauguração da capela, o bispo gostou do trabalho, mas considerou que fugia um pouco à temática religiosa. O certo é que as estações têm tudo a ver com a aldeia e com a transumância, e aquelas festas em honra de Nossa Senhora do Soito também.
Fugir à cidade
Durante o almoço, enquanto uns preferiam a sombra e outros o sol para descansar, houve, mais uma vez, quem pegasse no acordeão para animar o grupo. Apesar de ter sido bem mais fácil do que estávamos à espera, a caminhada deixou as suas marcas e as primeiras horas da tarde foram passadas ao comprido, na relva que preenchia o espaço.
Marília Fernandes, técnica administrativa de 56 anos, diz que está a “adorar” o percurso. Deslocou-se do Porto, com familiares e amigos, para passar um fim-de-semana diferente. “Foi o meu genro, através da Internet, que descobriu isto. Há tanta gente que não aproveita o que temos. E aqui o custo é o da gasolina e das portagens. É pena que muita gente não visite o nosso país, temos tanta coisa bonita”, nota.
A filha, Sara Fernandes, consultora de recursos humanos de 32 anos, também não se arrepende nada de se ter feito à estrada: “O Nuno, o meu namorado, viu o programa e disse-me logo que era para mim. Mete natureza e ovelhas, animais que adoro. Aos fins-de-semana gostamos de sair do Porto, gostamos de paz, de sossego, de natureza… A semana é sempre tão atribulada.”
Hugo Domingues, da organização, confirma que grande parte do público que procura a iniciativa é urbano, chama-lhes os “novos pastores”: “São pessoas da cidade que procuram um escape ou, então, pessoas ligadas aos dois territórios, o urbano e o rural, e que gostam de voltar às terras, de reviver uma experiência que acaba por estar muito ligada à memória. Tentamos sempre envolver as pessoas locais”, diz.
Foi ali, no recinto da festa, que assistimos à tosquia de um carneiro e de uma ovelha. Os pastores mais antigos da região, Ti Camilo e Ti Aristides – alcunhas pelas quais são conhecidos – prendem as patas aos animais, benzem-se antes de pegar na tesoura, curvam-se e só se levantam cerca de uma hora depois. Cortam aqui, cortam ali, até os bichos ficarem com formas geométricas no pêlo – em rigor, é mais do que apenas tosquiar a eito, é enramar, bordar, deixá-las com o pêlo embelezado. Os tosquiadores fazem-no com brio, de forma concentrada e em silêncio, só se ouve o barulho das tesouras a cortar.
O pai do pastor Camilo, ou Zé Camilo, também era mestre da arte pastoril, toda a gente o recorda por falar sempre em verso, apesar de não saber ler nem escrever. Durante a hora em que esteve a tratar do pêlo do carneiro, Camilo disse meia dúzia de palavras e bebeu uns três copos de vinho – no fim, vira-os para se certificar que não resta uma pinga. Esteve sempre embrenhado no seu ofício e só se levantou para nos dizer que, apesar dos 82 anos, não lhe custa nada estar curvado a tosquiar: “Se pego numa enxada, é uma dor nas costas… Mas nisto nunca me dói. Isto não me dá guerra”.
Fogo-de-artifício e bailarico
Nessa tarde, depois da tosquia, ainda fomos visitar uma aldeia de gado, na qual há cerca de 150 casas que eram usadas só para guardar animais. Fomos também passear um pouco na aldeia de Fernão Joanes, onde decorriam já os ensaios para o bailarico da noite, na praça.
Não faltou nada para que nos sentíssemos num pequeno filme, naquela pequena aldeia: foguetes, fogo-de-artifício, um bailarico bem popular para se dançar aos pares noite fora, e até à procissão em honra da Senhora do Soito, em silêncio, com velas e santas ornamentadas com cabelo real e comprido, assistimos.
Só tivemos pena de não ficar para a continuação da festa no domingo. Manda a tradição que nessa tarde, entre a venda de queijos, cabritos e chouriços, aconteça a bênção dos rebanhos. De acordo com presidente da junta de Fernão Joanes, Daniel Vendeiro, os rebanhos são enfeitados, as ovelhas correm à volta da capela e alguns pastores conseguem mesmo fazer com que elas se ajoelhem.
Se decidir fazer este percurso em Setembro, em vez de subir a serra, vai descê-la e, em vez de dormir em camaratas, pode ser que já tenha o privilégio de pernoitar numa “neo-choça” que está a ser criada pelo designer Daniel Caramelo: “As choças eram os abrigos [de palha] onde os pastores dormiam. O que queremos introduzir agora no percurso é uma neo-choça, com casa de banho e cobertura de colmo, para as pessoas passarem lá a noite”, diz Hugo Domingues.
Nós ainda dormimos nas camaratas e partilhámos as casas-de-banho. Pode ser muito divertido, mas tem de ir com o espírito certo, claro. Esta é uma aventura para quem se interessa por um mundo perdido e, muitas vezes, desconhecido para quem vive nas cidades. Foi a primeira vez que vimos ordenhar e tosquiar ao vivo e, noutras etapas, houve mesmo ovelhas que deram à luz durante o percurso.
Tem de gostar de natureza, de andar a pé, do chocalhar dos guizos das ovelhas, das tradições mais antigas. Não nos queixamos de nada, embora, e já sabendo como são estas andanças, tivéssemos levado, pelo sim, pelo não, venda para os olhos e tampões para os ouvidos. Deu jeito nas camaratas, admitimos. No dia seguinte, estávamos frescos e preparados para mais uma caminhada, não fosse o caso de ser domingo, dia de regressar aos barulhos da cidade.
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Grande Rota da Transumância
Tel.: 275 779 040
Email: info@transumancia.com
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Preços: Apesar de alguns percursos serem gratuitos, o preço praticado tem sido o de 5 euros por cada refeição. Caso o programa inclua, por exemplo, duas refeições, custará 10 euros.
Conselhos úteis
Se decidir embarcar nesta aventura, leve roupa confortável, calçado apropriado para caminhadas e um saco-cama quente. Não se esqueça do protector solar (nós esquecemo-nos e o resultado não foi agradável). Normalmente, os percursos iniciam-se bem cedo e, quando há dormidas incluídas no programa, elas referem-se à noite a seguir à caminhada. Ou seja, se quiser dormir de véspera, para poder acordar um pouco mais tarde, o melhor é marcar uma residencial ou uma pensão numa localidade próxima. No nosso caso, como saíamos de Valhelhas às 7h30, ficámos a dormir na primeira noite na Guarda, na Residencial Ferrinho, por cerca de 20 euros o quarto individual e 30 o duplo (telefone: 271224476/ www.residencialferrinho.com.pt/). Nem todas as localidades têm grande oferta hoteleira, por isso também é possível ficar num quarto em casas particulares.
Próxima data
A Grande Rota da Transumância decorreu até 19 de Maio e regressará em Setembro. Hoje há uma pequena etapa entre Seia e o Sabugueiro, que não faz parte do programa da Grande Rota, mas sim de uma série de eventos associados, como o Festival do Borrego, a Festa do Borrego e a Festa da Transumância e dos Pastores. Em Setembro, o programa arranca a 7, com passagem pela Guarda. No fim-de-semana seguinte, a 14 e 15 de Setembro, haverá a festa da Transumância em Fernão Joanes e, a 21 e 22, a festa dos Chocalhos. Em Setembro, a Rota termina no último fim-de-semana, com a travessia da fronteira para terras de Espanha.