"Isto é apoiado pelo Estado? Quem é que suporta isto?", foi o que perguntou uma turista alemã. "Ninguém suporta isto. É o meu negócio", responde Domingos Cruz no fim de uma conversa em que explicou em inglês o que é a Tell a Story, a livraria que é uma carrinha e vende obras de autores portugueses em inglês, francês, espanhol e alemão. Direccionada para os turistas, a Tell a Story estaciona a sua carrinha azul Renault Estafette de terça a domingo em sítios como o Jardim do Príncipe Real, os Jerónimos, Cais do Sodré ou a Sé de Lisboa.
A ideia de livraria ambulante surgiu inspirada nos livros em inglês que na China se vendem na rua em carrinhos semelhantes aos que vendem castanhas em Lisboa. Além disso, pagar a renda de um espaço seria demasiado caro para manter um negócio romântico que vive de livros e de conversa sobre livros. As bibliotecas itinerantes da Gulbenkian não foram inspiração inicial para o conceito, mas, quando começou a pesquisa, Domingos, que teve a ideia original, inspirou-se também nessas carrinhas antigas para criar uma imagemvintage para o Tell a Story.
Um projecto diferente do negócio dos livros traduzidos é o da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS). Em comum, têm os livros e a carrinha velha recuperada. Para a FFMS, as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian que, nos anos 60, corriam o país também não foram inspiração imediata, mas, tal como essas, a carrinha school bus americana amarela, igual às que conduzem os miúdos à escola nos filmes de Hollywood, também leva os livros onde estão as pessoas. Neste caso, às praias: este domingo, a FFMS terminou um itinerário que iniciou a 27 de Julho pelas praias mais próximas de Lisboa e no Algarve. "Quisemos primeiro perceber se havia adesão das pessoas. Se houver condições, talvez a fundação possa continuar [com este projecto]", diz Filipa Dias, da FFMS e responsável pelo projecto. Para já, está previsto que a biblioteca regresse dia 3 de Setembro, desta vez para se instalar em plena Lisboa.
Na carrinha, vão estudos e ensaios sobre a sociedade portuguesa lançados até agora pela fundação e podem ser levados pelos banhistas para o areal (mediante o pagamento de uma caução de 5 euros) e devolvidos ao final da tarde. "Não sendo uma literatura colorida de Verão, é acessível", diz Filipa Dias.
100 livros por mês
Para a Tell a Story, o objectivo é mostrar os autores portugueses aos estrangeiros, mas Domingos não vê nisso serviço público. "Isto é um negócio", repete, deixando claro que sabe que não vai enriquecer, mas que também não criou a Tell a Story com essa ambição. "É um negócio de um fã [de literatura] para fãs. E para tentar criar outros fãs", diz. Por isso, para já, a ambição é tornar a livraria auto-sustentável. Domingos, Francisco Antolin e João Pereira (os dois sócios que se juntaram à ideia inicial) têm que vender pelo menos 100 livros por mês. Até agora, e ainda só passaram três semanas desde que abriram pela primeira vez, já venderam mais do que isso.
"Nos dias bons, vendemos 14 ou 15 livros. Nunca tivemos um dia em que vendêssemos só um ou nenhum", diz Francisco Antolin, o único dos sócios que trabalha apenas na carrinha, já que Domingos mantém o seu trabalho como advogado e João é publicitário.
Numa tarde no Príncipe Real (pelo menos à terça-feira, que dizem ser dos dias mais fracos), o que mais fazem não é necessariamente vender, mas conversar sobre os livros e os autores, sobre Lisboa e Portugal. De vez em quando, dão-se indicações a turistas para chegarem à Estrela, ou mesmo a portugueses, sobre como ir ter à Avenida da Liberdade. "É também por isso que o nosso nome é Tell a Story, é isso que queremos: conversar e ter histórias para contar", diz Francisco. Já têm algumas: apresentaram o Memorial do Convento a um turista que andava a fazer a rota dos mosteiros, já disseram muitas vezes às excursões de dezenas de brasileiros nos Jerónimos que não vendem chapéus, só livros... Domingos ficou a ver uma cliente ler durante três horas O Ano da Morte de Ricardo Reis, que tinha acabado de comprar, e depois conversaram sobre o livro. "São estas coisas que me realizam", diz.
Quando chegam à carrinha dos anos 50 e se deparam com a ardósia que dizPortuguese authors for sale, os turistas pouco ou nada sabem sobre literatura nacional. Lola, estudante francesa de Filosofia, recorreu aos livreiros para comprar Cus de Judas. "Aconselharam-me e ajudaram-me a escolher, apresentaram-me os autores e acabei por ficar com este." Acontece com a maioria dos turistas: têm que conversar com Domingos, Francisco ou João para se orientarem. "Só os nórdicos gostam de ficar sossegados a ler, sem que interfiramos na escolha", conta Domingos.
Lola está em Lisboa de férias para conhecer a cidade. É este tipo de turista que mais interessa à Tell a Story - os que querem conversar e conhecer o país também pelos seus escritores. "Não procuramos os turistas que não têm tempo porque têm uma agenda cheia de excursões", diz Domingos. Na sua teoria, os turistas que vêm a Portugal no Inverno são diferentes dos que vêm no Verão: mais que aproveitar o bom tempo, praia e monumentos, querem conhecer as pessoas e a cultura. É este espírito que identifica nos turistas franceses, os seus melhores compradores e conversadores, particularmente interessados pela cultura e literatura.
O país em que vivemos
Na carrinha da Fundação Francisco Manuel dos Santos, também há turistas e muitos. O que mais os fascina é o conceito de biblioteca itinerante, que nunca viram em nenhuma parte, diz Susana Piegas, dinamizadora do projecto junto do público. "Perguntam se temos outras [obras] traduzidas para inglês ou para outras línguas", diz Susana e acrescenta que muitas vezes estão interessados em conhecer melhor a situação portuguesa actual.
Na Costa da Caparica, na praia de S. João, a uma sexta-feira de manhã, quase não há vento, mas os dinamizadores da biblioteca na praia aconselham-se com um dos praticantes de windsurf que está por ali. Ele explica-lhes a direcção do vento de leste e acrescenta que só pelas seis da tarde é que a brisa pode ser mais forte. O medo de Pedro Neto, um dos dinamizadores, é que as estantes que montaram no areal tombem.
Há curiosos com a grande carrinha no parque de estacionamento ou com as estantes à entrada do areal onde se lê: "Abra um livro, prepare-se para o debate". Com o calor abrasador, não há muitos que parem. Só os mais corajosos perguntam que iniciativa é esta. O debate de que fala o chamamento nas estantes e no autocarro é o Presente no Futuro, que o ano passado reuniu portugueses para imaginarem Portugal nos próximos 30 anos. Este ano, o tema é Portugal europeu. E agora? "Todos falamos da Europa, mas é um tema confuso", diz Filipa apontando para a complexidade do assunto. "Quando entrámos [na União Europeia], éramos grandes entusiastas, agora estamos perto dos britânicos, mais cépticos", acrescenta.
Para a FFMS, compreende-se o país em que vivemos pelos estudos sobre os últimos 25 anos em Portugal e pelos ensaios sobre questões como a economia, o sistema nacional de saúde, a televisão pública, mas também a família ou a sexualidade. "As pessoas tendem a perguntar se há romances, se há uma literatura mais juvenil ou infantil", conta Susana. Quando compreendem o tipo de livros disponível, a preferência recai sobre um ensaio que nada tem de infantil: A Morte, de Maria Filomena Mónica, aborda a eutanásia através da sua experiência pessoal e é dos mais escolhidos para levar para o areal. Outros temas densos e também muito requisitados são os que têm a ver com a economia portuguesa.
Susana Piegas nota naqueles que acabam por levar livros interesse em saber mais, em especial sobre temas relacionados com gestão e que acabam em pequenos debates nas cadeiras à sombra que se montaram ao início da manhã junto das estantes e do school bus. "Há debates muito interessantes que se criam e dinamizam aqui em relação a temas mais acesos como por exemplo o da corrupção, ou o livro do Pedro Pitta Barros sobre o sistema nacional de saúde".
"Por vezes, torna-se difícil motivar as pessoas para a leitura, elas estão mais preocupadas em desligar-se deste mundo que têm tido durante o ano. A forma que temos de cativar é a nossa carrinha, que tem tido muito sucesso", conta Pedro. É frequente que peçam para tirar fotografias ao pé do autocarro, ou mesmo ao volante, e só em seguida vêem os livros. Por dia, chegam a emprestar uma média de 30 e cerca de um terço é depois vendido. Sem preocupações e com mais tempo, os adultos com mais de 40 anos e sem crianças são aqueles que mais aderem à iniciativa.
Perto das 20h no Jardim do Príncipe Real já corre uma brisa, talvez semelhante àquela que o windsurfer previa para as seis da tarde na Costa. Quando não há muito que fazer, os livreiros da Tell a Story sentam-se à porta da sua Renault, em cadeiras de cartão resistentes, a ler as traduções que têm nas prateleiras na rua. "Às vezes, parece que carreguei no botão do invisível", diz Francisco sobre as alturas em que alguém passa e nem desvia o olhar. Para aqueles que não ficam curiosos com o negócio, o truque é mostrar-lhes os postais com retratos de autores portugueses que têm para oferecer e que muitos acabam por levar, sem nenhuma contenção. "Se o nosso negócio fosse postais, vendíamos muito bem", comenta Francisco com Domingos sem arrependimento de, no entanto, passar o dia a vender livros.