Fugas - Viagens

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    Prova Corrico Feminino (pesca), organizada pelo Clube Naval de Santa Maria Nelson Garrido
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    Mergulhadores a caminho do ilhéu das Formigas Nelson Garrido
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    Mergulhadores a caminho do ilhéu das Formigas, que se vê ao fundo Nelson Garrido
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    Mergulho em Santa Maria Nelson Garrido
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    Santa Maria. Mergulho com jamantas Nelson Garrido
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    Santa Maria. Mergulho com jamantas Nelson Garrido
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    Santa Maria. Mergulho com jamantas Nelson Garrido
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    Santa Maria. Mergulho com jamantas Nelson Garrido
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    Santa Maria. Meros amistosos na Baixa do Sul Nelson Garrido
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    Santa Maria. Mergulho com jamantas na Baixa do Ambrósio Nelson Garrido
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    Encosta repleta de vinhas em socalcos, na zona da Maia Nelson Garrido
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    Santa Maria. Mergulho nas águas límpidas Nelson Garrido
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    Prova de Corrico Feminino (pesca), organizada pelo Clube Naval de Santa Maria Nelson Garrido
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    A vencedora do torneiro de Corrico Feminino (pesca), com uma achova de mais de sete quilos Nelson Garrido
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    Santa Maria. Lapas Nelson Garrido
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    Festa em Santa Bárbara, com caldo de nabos Nelson Garrido
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    Santa Maria. Só mais um mergulho Nelson Garrido

Em voo livre no azul eléctrico do Atlântico

Por Marisa Soares

Chamam-lhes peixe-diabo injustamente. As jamantas são, afinal, anjos que voam pelo oceano Atlântico, companheiras dos golfinhos e dos meros curiosos. A Fugas pegou no equipamento de mergulho e foi conhecer estes e outros tesouros escondidos no mar de Santa Maria.

Estivemos quase a perder a esperança. Enquanto o barco baloiçava, embalado por ondas pequeninas, e nos preparávamos para o terceiro mergulho, já pensávamos que as jamantas não iam aparecer. Não é que tivéssemos encontro marcado — e também não estávamos ali só para isso — mas ir a Santa Maria e não ver jamantas era como ir a Roma e não ver o Papa. Teríamos sorte à terceira tentativa?

Antes de partirmos de Lisboa rumo a Vila do Porto, o único concelho da ilha, fizemos uma pesquisa rápida na Internet. As notícias mais recentes eram animadoras: “Concentração invulgar de jamantas atrai turistas a Santa Maria”. Dizem os empresários com centros de mergulho na ilha que esta espécie de manta da família das raias tem aparecido em maior número nos últimos anos. Garantem que aquele é o melhor sítio da Europa para mergulhar com estes enormes peixes e parecem ter convencido sobretudo os turistas estrangeiros, que ali têm chegado em romaria.

Tínhamos de confirmar. E para isso fomos munidos de armas e bagagens. Na mala da jornalista, 20 quilos de equipamento de mergulho habituado a estas andanças. Na do fotógrafo, uma caixa estanque para a máquina fotográfica e um curso de mergulhador tirado mesmo a tempo da viagem. Tudo a postos para ir conhecer os segredos subaquáticos da ilha mais continental dos Açores.


Comprimidos para o enjoo

Somos oito ao todo no barco do centro Paralelo 37, fora o skipper, que conduz o semi-rígido carregado de coletes agarrados às garrafas de ar, máquinas fotográficas e de filmar, barbatanas e mochilas com o lanche. É sábado, saímos cedo do porto da vila, cerca das 9h30, e só contamos regressar a terra por volta das 17h.

Rui, um dos guias, tinha avisado na noite anterior: levem roupa quente, a viagem é longa. Até ao ilhéu das Formigas, um aglomerado de oito pequenos rochedos situado a cerca de 24 milhas náuticas a nordeste de Santa Maria, demora-se cerca de duas horas. Isto se não encontrarmos golfinhos ou tubarões-baleia no caminho, avisou Rui. Se os encontrássemos, até podíamos demorar o dia inteiro, pensámos nós.

Tubarões-baleia não vimos. Um grupo de mergulhadores avistou um poucos dias antes de chegarmos à ilha, mas não tivemos a mesma sorte. Tivemos outra. Quando vimos um bando de cagarros alvoraçado percebemos que não estavam sozinhos: estas aves, muito características dos Açores, caçam em parceria com os golfinhos. É como uma coligação que resiste ao passar do tempo: os golfinhos atacam os cardumes de peixes debaixo de água e os cagarros aproveitam os peixes que fogem para a superfície, mergulhando num voo picado para os apanharem.

À medida que nos aproximamos, os cagarros afastam-se e os golfinhos pulam, calorosos, em volta do semi-rígido, com as barbatanas dorsais a rasgar a superfície da água, e não nos largam durante uns dez minutos. Parecem estar em êxtase, quase tanto como nós, por os vermos. Pelo caminho, à ida e à volta, encontramos quase uma dezena de grupos de golfinhos comuns e riscados, com o mesmo entusiasmo.

Avistamos ao longe o pequeno farol das Formigas, com a espuma das ondas a rebentar contra os rochedos. Não é tão mau como parece. No mergulho que fizemos no dia anterior, junto à costa Sul da ilha, na Baixa da Pedrinha, o mar estava tranquilo. Mas em mar aberto o caso muda de figura. O segredo é cair logo na água e descer, para fugir da corrente à superfície, mas quando o estômago começa às voltas não há como voltar atrás. Nota mental para a jornalista: para a próxima, levar comprimidos para o enjoo.

Os primeiros mergulhadores caem na água, que ronda os 21 graus. Nada mau para quem está habituado a mergulhar no continente, em Sesimbra, com temperaturas médias de 15 graus. Equipados a rigor — fato de neoprene, cinto de chumbo à cintura, barbatanas, colete com garrafa às costas, máscara e regulador —, deixamo-nos cair também.

É como se entrássemos num aquário gigante, sem paredes, onde quase não se vê o chão. Cardumes de encharéus, lírios, bicudas, aqui e ali um peixe-porco, peixes-rainha e outros peixes coloridos tropicais, ou não fosse esta a única ilha dos Açores que repousa na placa geológica africana. À entrada de uma gruta, um enorme ratão, primo das raias, com a sua grande cauda apontada para fora. Mas de jamantas, nem sinal.

Voltamos a bordo e preparamo-nos para um segundo mergulho. O semi-rígido “estaciona” a poucos metros do ilhéu, sobre a Baixa do Sul. As baixas, elevações do fundo marinho que chegam por vezes a escassos metros da superfície, são frequentes nos Açores. Estendemos o olhar sobre a água cristalina à procura de um sinal do peixe-diabo (outro nome dado à jamanta), que muitas vezes nada junto à superfície. Nada.


Encontros imediatos

Outra vez a corrente — e outra vez o enjoo. Descemos o mais rápido que podemos agarrados ao cabo que segura o barco ao fundo do mar, e seguimos atrás dos guias. A visibilidade de 20 a 30 metros torna tudo mais fácil. Avistamos logo um grande mero, como que a levitar sobre as algas que forram o fundo, entre duas rochas. Aproximamo-nos para o ver de perto e ele continua ali, quieto, com os seus grossos “lábios” e os olhos salientes, que parecem observar-nos, curiosos. Mais à frente, outro mero sai de um buraco na rocha e vem pedir atenção. E enquanto agita as barbatanas num jeito desalinhado, deixa-se tocar.

Os meros são uma das fortes atracções dos Açores. Por se manterem quase sempre no mesmo sítio e terem um comportamento amistoso com os mergulhadores, são fáceis de encontrar e deixam qualquer um enternecido.

À nossa volta, novamente cardumes prateados de lírios, bicudas e encharéus. Encontramos moreias escondidas nas rochas, vejas (peixes de escamas largas e com um bico que parece de papagaio) e corais.

De repente, ouvimos o som metálico das maracas que o guia usa para chamar o grupo. É como música para os nossos ouvidos. Como que saídas do nada, surgem ao longe duas jamantas — as tão esperadas Mobula tarapacana — que rasgam o azul num voo livre, uma atrás da outra, a 20 metros da superfície.

Tentamos nadar até elas mas a injecção de adrenalina é tanta que, no meio de uma cãibra, mal saímos do lugar. Nada do que nos ensinam no curso de mergulho sobre como tirar uma cãibra resulta quando mais precisamos.

Desistimos e ficamos ali a pairar, inebriados. E em menos de nada, as jamantas, que nadam em círculo à volta do grupo de mergulhadores, passam mesmo aos nossos pés, devagar (pelo menos, aquele minuto parece demorar uma eternidade). Nunca o ditado “se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé” fez tanto sentido.

Graciosas, parecem bailarinas que agitam os braços suavemente, num enorme palco onde são as únicas estrelas. Isto apesar do mero e da raia que aparecem a pedinchar atenção, enquanto elas passam. Mas os olhos dos mergulhadores estão todos postos nas jamantas que, imponentes, batem as “asas” pontiagudas — têm pelo menos três metros de envergadura. No dorso verde dão boleia às rémoras. Estes pequenos peixes parasitas viajam junto aos “cornos” que as jamantas têm nas laterais da cabeça (daí o nome peixe-diabo) para ajudar a direccionar o fluxo de água para a boca. As jamantas comem plâncton e as rémoras apanham os restos, enquanto desfrutam de uma espécie de voo de asa delta submarino.

O espectáculo dura talvez dez minutos. Quando deixamos de as ver, percebemos que o mergulho acabou. Estamos quase há 40 minutos debaixo de água, o ponteiro do manómetro do ar marca quase na reserva, é tempo de subir. O ideal seria fazê-lo pelo cabo, mas à medida que avançamos a corrente é tanta que nem sequer conseguimos lá chegar. Deixamo-nos levar. Por sorte, saímos mesmo junto ao barco e conseguimos desequipar-nos sem problemas. E em poucos minutos o grupo está pronto para regressar a terra.


Mergulho no azul

Se fomos afortunados à terceira tentativa, à quarta saiu-nos a sorte grande. No domingo fizemos nova viagem, desta vez mais curta, em direcção a um dos principais spots de mergulho em Santa Maria: a Baixa do Ambrósio, a três milhas da costa Norte. O mar está ainda mais picado do que no sábado, mas mais uma vez descemos pelo cabo do barco. Fazemos o verdadeiro mergulho no azul: é como se caíssemos num poço sem fundo (o chão está a cerca de 50 metros de profundidade, não o conseguimos ver), uma sensação quase vertiginosa.

Paramos, agarrados ao cabo, entre os dez e os 15 metros. Não precisamos de descer mais. Ouvimos novamente as maracas do guia.

Num círculo perfeito à volta do grupo de mergulhadores, oito pares de “asas” batem energicamente, a poucos metros da superfície, como atletas de natação sincronizada. A dada altura, algumas desaparecem no azul, voltam em grupos de duas, ou de três, em fila indiana quase perfeita. De onde estamos, conseguimos ver-lhes o ventre branco, em contra-luz, e as rémoras coladas à barriga. Ficamos ali quase uma hora a vê-las passar.

Nem imaginamos o que estará aos nossos pés, que segredos guarda aquele fundo em mar alto. Os olhos, já habituados ao azul, detectam algures uma espécie de parede prateada, que parece formada por bicudas (ou serão anchovas?), às dezenas. Não conseguimos distingui-las a esta distância mas também não importa. O ar está no fim e subimos.

Paramos antes de um último mergulho numa zona abrigada do vento, junto à costa, e ficamos ali a baloiçar devagar, a fazer o intervalo de superfície. Não voltamos a ver as jamantas mas é como se fechássemos os olhos e elas passassem, outra vez, a voar na nossa direcção. A bordo trocam-se experiências, mais difícil é descrever as sensações. Da nossa parte, há uma inesquecível: pela primeira vez, tivemos vontade de chorar de alegria debaixo de água. E isso não se explica.

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Elas pescam, eles ficam ao leme

As mulheres de Vila do Porto foram para o mar no primeiro fim-de-semana de Agosto tentar a sorte no corrico. Não tiveram muita, mas nem por isso desistiram. Fomos ver quem apanhou mais peixe.

Por trás de uma grande pescadora, há sempre um grande skipper. Podia ser este o slogan do corrico feminino de barco, que se realiza há 11 anos na ilha de Santa Maria. É que nesta prova as protagonistas são elas mas em quase todos os barcos segue um homem ao leme. E o segredo para uma boa pescaria está, em parte, na perícia da condução. O resto é sorte, dizem. Mas este ano não houve muita.

Não é fácil juntar tantas mulheres no mar. A maioria das 66 participantes no torneio deste ano nem costuma pescar, ou fá-lo apenas ao fim-de-semana para passar o tempo. Mas o primeiro fim-de-semana de Agosto era delas. “É a nossa vez”, dizia, firme, Isabel Andrade, enquanto ouvia as regras do concurso, definidas pelo Clube Naval de Santa Maria (CNSM). Isabel, que vai a bordo do Kosmos, nunca falhou uma prova de corrico feminino — a única do género no país. O clube organiza também o corrico geral, que é para todos, embora atraia mais homens.

O corrico é uma pescaria lenta, feita à linha, na ponta da qual se prende a corrica, uma espécie de isco em forma de peixe, feito em materiais como metal ou plástico. Leva ainda um anzol e uma placa que brilha e faz atrito na água. Os peixes predadores sentem-se atraídos rasto deixado pela corrica.

A corrica é lançada na água de modo a ficar a 20 a 30 metros do barco, e este tem de seguir lentamente. Não pode parar, nem quando o peixe pica. É aqui que entra a perícia do skipper — das 18 embarcações a concurso, 16 tinham um homem ao leme. “Ele tem de levar o barco devagar, a uma velocidade constante. E tem de saber voltar ao sítio onde o peixe picou, para ver se apanhamos mais”, diz Helena Cabral, outra concorrente.

Helena participa no corrico feminino pela “quinta ou sexta vez”. Tal como as outras participantes, mora em Vila do Porto. Segue a bordo do Zenite. A melhor classificação que já conseguiu foi um quarto lugar, graças a uma anchova e muitas bicudas. É pescadora de fim-de-semana mas fá-lo com paixão. Gosta de lançar a linha e “sentir a batida do peixe”. A ansiedade é tanta que na noite anterior à prova nem consegue dormir.

O torneio decorre no sábado e no domingo. Os barcos deixam o porto às 17h e podem regressar até às 23h. São seis horas que “passam num instante”, garante Helena Cabral. É nesse período que os peixes predadores, maiores, costumam caçar.

Quem sai para o mar previne-se em terra. No barco, as concorrentes (três no máximo) levam todos os ingredientes para um fim de tarde de festa. É que enquanto o peixe pica e não pica, há tempo para tudo — beber umas cervejas, comer uns petiscos, ou dar música aos peixes tocando uns acordes.

À procura do atum

Os barcos podem dar a volta à ilha e afastar-se até 15 milhas da costa. Naquele fim-de-semana o mar não estava para grandes aventuras — aliás, o vento forte e o aumento da vaga levou a organização a cancelar o segundo dia de prova, por questões de segurança. Os resultados finais seriam os de sábado, dia de pouco peixe. “Logo hoje que íamos apanhar o atum”, lamentava uma concorrente no domingo. O mar trocou-lhe as voltas.

Nem tudo o que vem à rede é peixe. Ou melhor, nem todos os peixes que picam a corrica contam para o concurso. Apanhar um peixe-porco, por exemplo, pode compensar no prato (no fim, os concorrentes levam o peixe para comer em casa) mas não no da balança, onde o resultado da pescaria é pesado ao final da noite. Para a prova contam a bicuda, a anchova, o peixe-serra, o lírio, o encharéu, o bonito, o wahoo e o atum. Este último é, na verdade, o primeiro na lista de desejos das pescadoras. Mas em 11 anos de prova, nenhum mordeu o isco.

“Apanhar um atum à linha pode dar duas ou três horas de trabalho, até conseguir trazê-lo para o barco, mas compensa”, diz Isabel Andrade, que este ano chegou a terra sem peixe. O atum pode significar o primeiro prémio — normalmente é o peixe mais pesado, e quem tiver mais peso ganha — ou o prémio de melhor exemplar. O recorde pertence a um atum de 92 quilos, apanhado há uns anos no corrico que é mais para os homens.

Apesar do mar bravo, quem sabe da poda arrisca. E para as concorrentes do barco Swordfish valeu a pena arriscar. O skipper, Eduardo Soares, levou-as até à costa Norte da ilha, mais desabrigada do vento. A seu favor tinha a experiência: é armador e tem 52 anos de mar, conhece-o como ninguém. “Andei dois anos na caça à baleia [a ilha tem uma forte tradição baleeira, que entrou em declínio nos anos de 1960], cheguei a caçar quatro num só dia.” Talvez até tenha caçado mais, mas a memória já não recua tanto. Tinha 15 anos. Hoje tem 66, a pele queimada pelo sol e um jeito sereno que contagia.

A contrastar com a experiência do comandante, está o amadorismo da tripulação. Mas, já o dissemos, uma boa pescaria também se faz de sorte. E Sandra Tavares teve muita quando uma anchova de 7,710 quilos (o segundo maior peixe capturado desde sempre na prova) mordeu a sua corrica. “A cana até se ia partindo”, conta esta empregada de limpezas que participa pela segunda vez no torneio. Demorou “cinco ou dez minutos” a puxar a anchova para bordo. Mal sabia que tinha acabado de ganhar a prova.

Santa Maria em festa

O corrico feminino é só mais uma das muitas festas que animam Santa Maria durante o Verão — e no Inverno os marienses (cerca de 5000 residentes) também não se aborrecem. Apesar de na outra ponta da ilha se festejar o Sagrado Coração de Jesus, na freguesia de Santa Bárbara mais de uma centena de pessoas foi ao porto ver a chegada das pescadoras, no sábado à noite.

O primeiro barco chegou às 22h. “Normalmente os primeiros não trazem quase nada”, avisara João Batista, presidente do CNSM. Os recipientes de plástico entregues aos concorrentes para depositarem o peixe foram chegando com bicudas. Duas, três, oito. Aqui e ali um peixe-porco. Peixes-serra. Muitos chegaram vazios. Algumas caras pouco animadas, outras enjoadas à custa dos balanços do barco, outras ainda em festa. A anchova de Sandra Tavares era a única.

A pesagem do peixe é feita à vista de todos. O resultado, que era provisório, passou a final quando foi cancelada a prova de domingo. Mesmo assim, não foi mau: no total, as pescadoras de Santa Maria apanharam 53 quilos de peixe. Ficaram longe do máximo de 197 quilos apanhados em 2011, mas “este ano há pouco peixe”, aventava João Batista ainda antes de a prova começar. Não se enganou. Seja como for, pelo menos para a equipa do Swordfish valeu a pena. A anchova, da última vez que falámos, ainda estava “na friza”, o termo mariense para congelador, herdado dos norte-americanos (em inglês, diz-se freezer) que estiveram na ilha a construir o aeroporto, na década de 1940. Entretanto, já deve ter dado para um bom jantar. 

A pedra-que-pica (mesmo)

Tínhamos rumado a sul naquela manhã de sexta-feira ensolarada, encoberta a espaços por nuvens cor de algodão, para um primeiro mergulho. Saídos do fundo do mar, seguimos na direcção da Ponta do Castelo, no extremo sudeste da ilha. Vemos ao fundo o farol de Gonçalo Velho (herdou o nome do navegador que descobriu a ilha) mas o semi-rígido do Clube Naval de Santa Maria (CNSM) começa a abrandar o passo. Chegamos ao destino.

A cerca de 500 metros do farol, aos pés de uma enorme falésia que se precipita sobre as águas cristalinas do Atlântico, parece uma língua de areia branca vista de longe. Mas não é. Se dúvidas houver, atentem no nome: Pedra-que-Pica. O barco aproxima-se e percebemos que ali não há areia macia, que o chão que pisamos é pontiagudo e que as botas de mergulho não são o calçado ideal. Fica o aviso.

Para onde quer que olhemos num raio de cerca de 20 metros, só vemos fósseis. E mais fósseis. E um rasto da actividade vulcânica na ilha, com rochas rugosas de cor negra. Temos os pés sobre milhões de conchas desarticuladas de bivalves marinhos, algumas com mais de 20 centímetros de diâmetro, restos fossilizados de ouriços-de-areia, e sabe-se lá mais o quê. Diz-nos o guia, Paulo Ramalho, vice-presidente do CNSM e antropólogo, que aquela jazida fóssil tem cerca de cinco milhões de anos. É uma das mais antigas de Santa Maria, a única ilha dos Açores com fósseis marinhos.

Procuramos a explicação científica para o que parece ser um acidente geológico feliz. Depois de muito tempo sem actividade vulcânica, a ilha — que é a mais antiga do arquipélago, com sete a oito milhões de anos — ficou submersa, formando um gigantesco monte submarino. “Terá sido nesta altura, há cerca de cinco a seis milhões de anos, que os animais marinhos que nessa altura existiam se depositaram em grandes quantidades nos sedimentos marinhos”, no topo daquele monte, explica Sérgio Ávila, biólogo e paleontólogo da Universidade dos Açores, um dos vários investigadores que têm estudado as jazidas fósseis de Santa Maria.

Muitos daqueles animais fossilizaram. Com o ressurgimento da actividade vulcânica, há cerca de dois milhões de anos, a ilha emergiu novamente e elevou-se pelo menos 200 metros. “Talvez ainda o esteja a fazer.” Isto fez com que muitas jazidas estejam agora fora de água, sobretudo quando a maré baixa.

A Pedra-que-Pica formou-se a cerca de 50 metros de profundidade e terá resultado de uma grande tempestade, que fez acumular numa cova natural milhões de conchas, arrastadas para aquele local pela força das ondas. Além de conchas, os investigadores encontraram invertebrados de pequenas dimensões, dentes de peixes e de tubarões (não detectámos nenhum naquele puzzle desordenado).

Mas o que vemos agora pode ser apenas a ponta do icebergue. Segundo Sérgio Ávila, a jazida tem 2000 metros quadrados, “seis vezes menos do que a sua provável extensão inicial que rondaria, pelo menos, os 12 mil metros quadrados”. Não é fácil de imaginar. Mas uma coisa parece certa: se houver um paraíso na terra para os paleontólogos, deve ser algo parecido com a Pedra-que-Pica.

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GUIA PRÁTICO

Como ir
A companhia aérea Sata (www.sata.pt) voa para Santa Maria durante todo o ano, a partir do continente ou de outras ilhas do arquipélago. A partir de São Miguel, pode-se chegar à ilha também de barco entre Maio e Outubro, usando os barcos da Atlânticoline, onde pode transportar veículo próprio.

Onde ficar
A ilha é pequena (menos de cem quilómetros quadrados) e a oferta hoteleira é proporcional. Ficámos alojados no Hotel Santa Maria, a um quilómetro do aeroporto e a cerca de dez minutos do centro da vila, de carro.
Para quem quiser ficar mais perto da povoação, a mesma cadeia tem o Hotel Praia de Lobos. Ou então pode optar pelo Hotel Colombo, situado na zona das Pedras de São Pedro, a cinco minutos do centro de Vila do Porto, ideal para famílias com filhos, por exemplo, já que tem apartamentos onde é possível cozinhar.
Para mergulhadores, o Hotel Colombo é uma boa opção, uma vez que tem dois centros de mergulho “residentes”, o Paralelo 37 e o Haliotis.
A Pousada de Juventude de Santa Maria, mais perto do porto, é outra opção a considerar, mais em conta.
Em Junho do próximo ano deverá abrir o hotel Charming Blue, com centro de mergulho, a dois minutos do porto. Não faltam também casas de turismo rural.

Onde comer
Durante a nossa estadia comemos quase sempre no restaurante do Clube Naval de Santa Maria, que tem um bom polvo frito com batatas e um excelente naco de atum. Também provámos as deliciosas lapas grelhadas. Incontornável é o caldo de nabos que comemos na Festa do Sagrado Coração de Jesus, na freguesia de Santa Bárbara, e a carne de vaca assada em panela de ferro — e no Verão não faltam festas como esta um pouco por toda a ilha.
Com sorte (que nós não tivemos), quem visitar a ilha entre Junho e Setembro pode participar nas Festas do Divino Espírito Santo e comer o pão embebido numa sopa de carne distribuída de forma gratuita a quem quiser, nos vários impérios espalhados pela ilha.
A lasanha de albacora que comemos ao almoço no Restaurante Garrouchada, aberto das 9h à meia-noite na rua principal de Vila do Porto, também não desiludiu.
Ficámos curiosos com as pizzas do Central Pub (na mesma rua) que não conseguimos provar, embora nos tenham garantido que são “as melhores do mundo e arredores”.
Para petiscar com vista para o pôr do sol, a esplanada do Bar dos Anjos, na freguesia dos Anjos, que fica no Norte da ilha, é tentadora.
O bar O Paquete, mesmo junto à praia Formosa, também merece uma visita ao fim da tarde.

O que fazer
Entre Junho e Setembro, o mergulho é uma das principais atracções da ilha de Santa Maria. A ilha é pequena mas tem seis centros de mergulho (no próximo ano serão sete), com dez embarcações no total. Além do Paralelo 37, há o Haliotis, o Manta Maria, o Wahoo, o Dollabarat Sub e o CNSM. É só escolher. Quem não mergulha, tem outras opções. A ilha tem pelo menos dois trilhos pedestres assinalados, um na costa Norte e outro na costa Sul, muito procurados por quem aprecia birdwatching. Existe informação disponível em www.trails-azores.com.
Existe ainda Rota dos Corsários, que se estende um pouco por toda a ilha com paragens obrigatórias em sete locais, onde painéis contam a história de Santa Maria, recheada de saques e invasões.
Outra rota, mas dos fósseis, é imperdível para quem se interessa por paleontologia, e não só. Existem cerca de 20 jazidas de fósseis marinhos visitáveis, a maioria por terra. Apenas o trilho que inclui a Pedra-que-Pica é feito integralmente por mar, e para isso pode dirigir-se ao Clube Naval de Santa Maria. O Centro de Interpretação Ambiental Dalberto Pombo, no centro da vila, também disponibiliza informações aos visitantes. Além disso, às festas tradicionais que animam o Verão, em Agosto realiza-se o mais antigo e mais importante festival da região, o Maré de Agosto, na praia Formosa.

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A Fugas viajou a convite do Clube Naval de Santa Maria

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