Fugas - Viagens

A bela e o monstro no jardim de Java

Por Ireneu Teixeira

Há três décadas, a UNESCO dava por encerrados os trabalhos de restauração do maior templo budista do mundo, um monumento envolto em misticismo e, durante oito séculos, sonegado aos homens pela selva e cinzas expelidas pelo vulcão Merapi. O lugar mais visitado da Indonésia, forma, com Angkor Wat (Camboja) e Bagan (Birmânia), uma espécie de Santíssima Trindade de uma Ásia mágica por desenredar.

Cinco da manhã em ponto. O silêncio da negritude nocturna é entrecortado pela algazarra das cigarras, besouros ou mariposas e o piar tímido de algumas aves que esvoaçam sob o manto do céu estrelado. Alguns, poucos, motociclos passam por nós em passo tão sonolento que nem dão pela nossa presença fantasmagórica. A pontualidade lusa não estava a ser correspondida pela javanesa. Minutos volvidos, enceto a primeira tentativa. O teste é redarguido pelo enervante atendedor de chamadas do telemóvel de Galih. Estranho! Rememorizo todo o filme e não havia lapsos nem de memória nem de localização. Era ali mesmo, à frente do nosso despretensioso hotel em Yogyakarta, que deveríamos ser transportados até Borobudur, ainda pelas trevas da noite, para nos deslumbrarmos com o acordar do astro-rei. Mas nada, nem ninguém. Solto um desabafo!

- “Será que se esqueceu de nós? Estava tudo marcado, não entendo!”

Sem resposta certa, o Zé encolheu os ombros, num jeito macambúzio de quem, como eu, teve um final de dia, princípio de noite, agitado no vagão do comboio que umbilicou, durante oito longas horas, Jacarta a Yogyakarta. Foi precisamente no coração da capital que nos conhecemos, em plena praça Merdeka, junto ao Monas, como é conhecido o longilíneo monumento de 132 metros de altura, assemelhando-se a um gigantesco obelisco, que representa a luta dos indonésios pela independência. Yogyakarta era a paragem seguinte comum a ambos, e como já havia contratado uma agência local para dois dias, o meu inesperado companheiro de Amarante não se fez rogado e acordámos partilhar as despesas e a solidão.

E ali estávamos à hora previamente acordada. Nada acontecia. Os primeiros feixes de luz prognosticavam uma aurora esplendorosa; enquanto nós permanecíamos postados e notoriamente agastados por estarmos a perder um fenómeno ímpar: observar o nascer do sol no maior templo budista do mundo, abraçados por um ambiente de um misticismo incomparável. Do outro lado da estreita rua estaciona uma pequena carrinha bege, de vidros escurecidos. O olhar assombrado do condutor só podia ser o de Galih – tinha de ser, aliás! Abre-se a janela do veículo.

- “É o português?”

- “Sou, e estou aqui desde as cinco, respeitando o acordado.”

Voara uma hora e meia e o céu já se tingira de cores afogueadas, leves mas quentes. De nada me valeria a lanterna e a máquina fotográfica preparada com as lentes e sensibilidade ISO adequadas, e os filtros para o acto solene.

- “O que se passou?” Indaguei num tom menos suave do que a ténue brisa que entretanto se levantara.

- “Vim ao hotel ontem à noite para saber de si, mas não havia nenhum hóspede registado com o seu nome. Estranhei que tivesse cancelado e agora só passei aqui por descargo de consciência. Nem sei o que lhe diga.”

Disse-lhe eu, informando-o que só tinha feito o check in às duas da manhã, hora a que chegara o comboio de Jacarta. Galih ruborizou de opróbrio, manifestamente perturbado. No interior da viatura, a jovem esposa , mergulhada num silêncio incomodado, exibia um barrigão de sete meses. Resolvemos, porém, cumprir o percurso pré-estabelecido, ainda que agora totalmente à luz do dia e após um ligeiro pequeno-almoço tradicional oferecido na casa do patriarca, e dono da agência, onde o casal habitava. À fugaz paragem seguiu-se a desembaraçada viagem até Borobudur, por um percurso através de uma paisagem salpicada de esverdeados arrozais alagados e enérgicas aldeias repletas de comércio e cor.

Com o bilhete de entrada na mão e envolvidos, à cintura, por um sarongue– tecido largo, estampado e ornado a cores, de uso obrigatório em festividades locais ou templos religiosos, como era o caso – estávamos, por fim, defronte da imensa escadaria conducente ao majestoso templo piramidal.

Buda sob fogo cerrado

A adrenalina estava nos píncaros do êxtase, a visão era arrebatadora, agora que estávamos cara a cara com o motivo de tamanha demanda. Oculto nas profundezas da histórica e vetusta ilha de Java, o lugar sempre despertou mistérios vários. Segundo os historiadores, o nome Borobudur tem génese no sânscrito “Vihara Buda Uhr”, ou seja, o “mosteiro budista na montanha”, afastado da curiosidade humana por mais de oito séculos, sem que isso, no entanto, representasse um quotidiano pacífico. No decurso dos seus 1200 anos de existência – foi construído entre 750 e 850 -, o templo sofreu ataques ferozes das forças da natureza e, também, de mãos humanas. Durante o período de abandono que durou quase um milénio, tremores de terra e erupções vulcânicas desassossegaram o monumento e a selva javanesa reclamou o lugar à medida que as suas gigantes raízes penetravam no espaço, triturando incontáveis blocos de pedra vulcânica. Com a sua redescoberta, a fama cresceu exponencialmente, levando o rei Chulalongkorn do Sião a visitar o lugar, em 1896, de onde surripiou dúzias de esculturas e painéis com relevos, alguns expostos no museu nacional de Banguecoque. Mais recentemente, a 21 de Janeiro de 1985, as bombas dos oponentes a Suharto, que governou a Indonésia ao longo de 21 anos, explodiram nos níveis superiores de Borobudur, danificando nove pequenas stupas. Periodicamente, o hiperactivo vulcão Merapi, chamado de “monstro” pelos locais, atapeta de cinzas a bela Borobudur.

Chegara a altura de perscrutar segredos desta desmedida edificação religiosa. Para se alcançar o monumento é necessário ultrapassar um íngreme vão de escadas, cujo esforço, aliado às altas temperaturas que já se fazem sentir, colam a roupa ao corpo num ambiente humidamente abafadiço. Apesar de munido de livros da especialidade, solicitámos os préstimos de um guia oficial que se expressasse em português. Debalde. Indicaram-nos, porém, Suryon, um indígena fluente em castelhano mas carregado de forte sotaque bahasa. De sorriso fácil, todo ele era boa-disposição, dando mostras de conhecer a história do lugar como o caminho que, diariamente de motorizada, percorre entre a vizinha Magelang e o santuário budista.

“Sabe como aprendi espanhol?”, questionou, para deslindar em seguida: “Com os livros e pela Internet. Nunca tive um professor ou alguém que me ensinasse”.

Visivelmente satisfeito pelas virtudes autodidactas, Suryon encantou-se pelo significado do monumento, assumindo-se agora budista em terras de Alá. Pese a cantilena debitada provavelmente mais do que uma vez ao dia, os ensinamentos e a vida de Siddhartha Gaumata, ou Buda, tinham de ser partilhados com emoção. Era esse o motor da sua existência.

- “Nos sete primeiros níveis do templo - o edifício tem dez -, as stupas têm losangos a decorá-las, passando a quadrados nos últimos três, porque se está mais próximo do nirvana, da perfeição. E, sendo difícil explicar o que é a meditação e a busca pelo paraíso, os painéis figurativos que revestem o templo de Borobudur passaram a resumir a história da rainha Maha Maya, esposa de Suddhodana, e do filho Siddharta, futuro Buda.”

Suryon reportava-se aos 2672 baixo-relevos esculpidos na pedra, que encerram, de facto, uma beleza e valor inestimáveis, todos dedicados à vida e ensinamentos de Buda, que “não é Deus”, como anota o solícito guia, mas, antes, “um professor espiritual que nos ensina o caminho da libertação”.

Rumo ao nirvana

Buda nunca esteve desacompanhado na região. A Indonésia foi penetrada por quatro correntes de pensamento distintas, acrescentando várias influências ao animismo que se desenvolveu simultaneamente na área. Nos séculos I e II, mercadores indianos levaram o hinduísmo para o país, com a religião e a cultura hindu a desenvolverem-se durante os séculos VI a XIV. Porém, nos séculos VI, VII e VIII, o hinduísmo foi ultrapassado pelo budismo e, uma vez mais, pela mão e conhecimentos dos comerciantes indianos. Uma e outra religião subsistiram lado a lado em Java, em perfeita coexistência até à chegada do Islão, nos séculos XII e XIII. O reino islâmico iniciou a sua duradoura era em 1205 - durou até 1903 -, levando ao abandono de Borobudur, 200 anos após a sua construção, ainda que, no seu auge, o templo budista fosse um dos mais demandados em todo o mundo. Apagado da visão de todos pelo Islão, cinzas do Merapi e encoberto pela selva, o monumento só voltaria a ver a luz do dia em 1814, através de escavações arqueológicas.

Na origem da construção do templo estiveram milhares de braços durante várias décadas. Os trabalhadores desenvolveram um processo em que transportaram dois milhões (!) de blocos de pedra, dispostos como peças da Lego, de modo a eternizaras crenças cósmicas budistas.

- “Toda a obra foi concebida sem qualquer tipo de argamassa , técnicas de engenharia ou ferramentas modernas. Tinham, apenas, cordas, martelos, carrinhos de mão e, o mais importante, músculos”, ressalvou, divertido, o jovem de cabelo e olhos negros e tez escurecida pelo sol inclemente.

Prosseguimos a viagem pela aprendizagem, através da labiríntica teia de galerias e escadas, no sentido dos ponteiros do relógio, representando a eterna caminhada humana. No total, são seis plataformas rectangulares onde assentam três terraços concêntricos, todos esculpidos em pedra vulcânica, decorados com os “tais” 2672 painéis em relevo, numa espécie de rosário budista feito de pedras, e adornados com 504 estátuas de Buda. No topo, a stupa principal está ladeada por 72 estátuas de Buda, protegidas em stupas menores e perfuradas. Segundo a lenda, se alcançar uma das estátuas pode formular um desejo que o mesmo será atendido. É melhor nem enumerar a quantidade de braços que se esticam através das pequenas aberturas dessas stupas...

O caminho ascendente tem uma razão de ser, como, aliás, tudo por aqui.

- “O templo é conhecido como um santuário mas também como local de peregrinação. A romaria enceta-se na base e termina no topo, onde se atinge o nirvana. O percurso representa a jornada do espírito do homem em busca da perfeição espiritual e paz superior.”

O 10.º nível, o do nirvana ou da iluminação, oferece uma prodigiosa visão periférica. A envolvência do local é magia pura, sitiado por uma desmedida mancha verde perene, maculado por uma fina camada de névoa, guindada dos arrozais e coqueirais, revelando a silhueta dos distantes vulcões. O lugar emana um misticismo especial apesar da horda de turistas, a contrastar com a solenidade da construção. Ao fundo, majestoso, o Merapi mantém-se faroleiro e sobranceiro a toda uma vasta área assinalada como o jardim de Java.

Extraterrestres na pirâmide

A atmosfera encantada parece arrebatada aos primórdios do mundo. Bem menos terrenas afiguram-se algumas explicações para a existência deste complexo projecto piramidal, designadamente se visto de cima. As imagens aéreas revelam uma gigantesca mandala budista, cuja palavra sânscrita significa círculo ou aquilo que circunda um centro. É uma representação geométrica da relação dinâmica entre o homem e o cosmos como um local espiritual de orações e meditação; no entanto, continua sem explicação científica a criação de um símbolo religioso tão entrelaçado que só pode ser visto do ar. De acordo com os teóricos dos Astronautas Antigos – defendem que seres ou criaturas extraterrestres visitaram a Terra há milénios e que as civilizações do passado interagiram, de alguma forma, com esse contacto - a resposta, nesta pirâmide, pode ser encontrada nas 72 estruturas com a formação de sinos pousados, conhecidos como stupas, abrigando cada uma uma estátua de Buda. Esta corrente acredita que as stupas são ovos ou úteros de transformação, ou escadas cósmicas para o paraíso.

- “Hello mister; hello mister”.

Vejo-me forçado a regressar à Terra por uma melodia riscada. Alço a cabeça que enterrara no guia de bolso e deparo-me com um alegre grupo de jovens, enfiados em uniformes escolares azuis-bebé. Fitam-me com a curiosidade de quem encontrou um extraterrestre, alto, alvo e com pêlos a forrar braços e pernas, contrariando os padrões autóctones. Sentimo-nos assaltados por simpáticos caçadores de imagens: queriam posar connosco com os cliques a serem disparados até à exaustão. Fotos em grupo, individuais, ora com elas ou só com eles. Instalara-se o festim. Não havia como resistir à hospitalidade desta gente, que é curiosa e aproveita o ensejo para desenferrujar um inglês precário. Fomos dando conta do recado, mas a descida do nirvana até à base redundou numa espécie de desfile de Buda por entre os seus seguidores.

Finalmente só, como um eremita na sua caverna. O dia ameaça enveredar pelo  trilho conducente ao ocaso. Sento-me num dos primeiros degraus da escadaria de acesso à alameda ajardinada antes de fechar a cortina sobre o monumento. Pouso os sentidos naquela obra de arte celestial, enaltecendo, mentalmente, o hercúleo trabalho de restauro promovido pela UNESCO, terminado há cerca de 30 anos (finais de 1983), após uma década a desmontar cada peça deste incomensurável puzzle de pedra. Relembro o génio de Mozart: “Para fazer uma obra de arte não basta ter talento; não basta ter força; é preciso também viver um grande amor”.

Shiva, batik e becak

Desta vez Galih não se equivocou. De cabeleira farta e negra, rosto esférico e imberbe lá estava ele no lugar acordado. O ronco emanado pelo motor da pequena carrinha nipónica anunciava a segunda etapa: o conjunto de templos hindus de Prambanan, edificados no final do século IX e início do século X. Tal como Borobudur, os templos permaneceram abandonados e em ruínas até  recentemente, ainda que apresentem diferenças não só pela vocação religiosa que os fez surgir (os primeiros são hindus, o segundo é budista), mas também pela forma arquitectónica como essa vocação se expressa. No total são 244 edifícios dedicados a Trimurti, Deus tripartido em criador (Brahma), conservador (Vishnu) e destruidor (Shiva), as três forças essenciais do universo.

Constata-se, logo no átrio principal, por que razão é um dos maiores e mais belos templos hindus em todo o Sudeste Asiático. Extasio-me com o edifício central, o maior do complexo, com 47 metros de altura, dedicado a Shiva, o mais importante e interessante do triunvirato de templos, tal como manda a mitologia Hindu. As paredes dos templos assemelhavam-se a rendas de bilros na pedra, com destaque para as inúmeras representações da árvore da vida. Se em Borobudur reinam soberanas as imagens de Buda, nestes templos hinduístas, Brahma, Vishnu e Shiva são as três principais divindades do hinduísmo. Nota ainda para a escultura que adorna o templo vizinho, de Candi Nandi: um poderoso touro esculpido na pedra maciça e que representa Nandi, o “veículo” de Shiva.

O complexo religioso de Prambanan é arrebatador e merecedor de uma outra atenção. Imagino que seria o destino cultural de eleição de Java caso não vivesse na sombra da vizinha Borobudur. Ainda assim, parece haver espaço para a sã convivência que sempre pautou as relações entre budistas e hinduístas.

A menos de meia hora de estrada, um lugar bem mais mundano: Yogyakarta, a base ideal para explorar a região. Fatigados de tanto calcorrear – só em Borobudur, a peregrinação até ao nirvana consome cinco quilómetros de sola de borracha – refastelámo-nos numa colorida becak, o riquexó local de tracção humana e zero emissões de CO2. Os laranjas acastanhados agrupam-se no horizonte conjecturando uma rápida saída de cena do astro-rei, pelo que este era o meio mais rápido e, sobretudo, prático para uma incursão pela sede ancestral da cultura javanesa e capital cultural da Indonésia, onde as artes e as tradições são mais fortes. Aqui descubro um palácio de um sultão, o Kraton, que ainda hoje é habitado pelo último sucessor, preservando o título de príncipe da cidade. Ainda dentro do palácio, vou a tempo de assistir, de passagem, a um espectáculo  tradicional de música e teatro de sombras.

Não muito longe existe um edifício especial também pertencente ao sultão, o Taman Sari. É conhecido por castelo de água e foi construído por um arquitecto português. No final da obra foi executado para que apenas o sultão conhecesse o segredo de um quarto do... prazer. Apesar disso não subsistiram rancores, por, em 2004, a fundação Calouste Gulbenkian ter apoiado a sua reabilitação.

Aninhada a noite e agregadas as derradeiras forças, o final do dia ficou entregue ao supérfluo, encorpado na rua Malioboro. Trata-se de um gigantesco bazar, com centenas de lojas de recordações e glamorosas boutiques de batik. Batik é uma forma de expressão artística que consiste em desenhar com cera quente sobre um tecido, com o resultado a ser obtido após sucessivos tingimentos e com tintas de diferentes cores. Este método tradicional sofreu pouquíssimas alterações nos últimos séculos, levando a UNESCO, em 2009, a considerá-lo herança cultural da Indonésia.

Montanha de fogo

O preço para ver o nascer do sol era convidativo – 20 dólares –, mas não sendo perceptível a montanha de fogo pela moldura da janela do meu quarto, previ que o dinheiro fosse mal empregue. O manto de nuvens que ocultava o vulcão Gunung Merapi era desencorajador, mas não o suficiente para nos manter à distância. Galih não foi connosco, mas providenciara um veículo de tracção integral, para nos conduzir o mais longe e, sobretudo, alto possível, ainda que, nesta época, não fosse permitido escalar até ao cone. As condições do terreno e atmosféricas complicavam-se à medida que nos abeirávamos do monstro de 2968 metros mais odiado pelos locais. E o caso não é para menos. Só nas últimas décadas, o Merapi entrou em erupção várias vezes. Em 2006 destruiu a parte Sul de Yogyakarta após causar um forte terramoto; em 2010 matou 353 pessoas e forçou a evacuação de outras 50 mil, valendo-lhe o justo epíteto de vulcão mais activo da Indonésia, país que acolhe outros 126 cones activos. Aliás, acredita-se que, no século XI, o antigo reino dos Mataram foi forçado a abandonar Borobudur devido à lava expelida pelo Merapi.

Viajamos ao som destas tétricas informações, provocando uma apreensão normal entre os convivas, atendendo a que o vulcão desperta, sensivelmente, de três em três anos, ou seja, podia ser a qualquer altura e sem aviso prévio. Parámos nas aldeias de Kaliedam e Kinahrejo, onde só resta a toponímia. Tudo o resto são tristes recordações, destroços da lava e lápides, recordando a luta inglória do ser humano contra a força da natureza. Nem escolas ou edifícios religiosos sobreviveram ao fogo da montanha.

Começa a chover de forma impiedosa. A temperatura cai a pique, arrastando o ânimo de quem pisa terra sofrida. Alguns, corajosos (loucos?) reergueram barracos, a que chamam de lar, nesta terra de ninguém. As placas de alerta são menosprezadas. A montanha de fogo está diante de nós, mas não se vê um metro que seja. Viramos-lhe costas e, ao longe, aninhada na selva profunda, a bela Borobudur sorri-nos resplandecente.

Dias volvidos, já acomodado no aparelho da Guaruda que me trazia de regresso a Portugal, entregam-me o Jakarta Post. Lê-se em parangonas: “Na região central de Java, o vulcão Merapi entrou em erupção, levando à evacuação de centenas de pessoas, com a nuvem de cinza a alcançar os 69 quilómetros da cratera”. Buda iluminou-me.

Guia prático

Como ir
A capital Jacarta é a porta principal de entrada na Indonésia para voos internacionais ou regionais, possibilitando ligações a barcos, autocarros ou comboios – esta última foi a minha opção para alcançar Yogyakarta. De Portugal, é mais prático partir de Lisboa com escala única no Dubai, pela Emirates Airlines. Em Jacarta existem várias companhias low cost que completam o percurso a preços bastante tentadores. As saídas do Porto são mais dispendiosas e obrigam, no mínimo, a efectuar duas escalas.

Quando ir
A ilha de Java, como quase todo o arquipélago formado por 17 mil ilhas, tem apenas duas estações: a seca e a húmida, mas invariavelmente quente. Por isso, pense em que altura prefere visitar o país. Em Maio, na véspera de um dia de lua cheia, realiza-se, em Borobudur, a espectacular procissão Waisak, que marca o nascimento de Buda. Centenas de monges budistas seguram velas e flores numa romaria comovente que tem início no templo de Mendut. Junho também é apropriado para se visitar a região, por o céu se apresentar geralmente pouco nublado, para além de ser o mês do Ramayana, festival de dança hindu que ocorre igualmente em Borobudur. A partir do final de Setembro aparecem as  tormentas que se prolongam até Março, ainda que tal não obste ao surgimento de vários dias soalheiros.

O que fazer
Yogyakarta é considerada a capital cultural e universitária da Indonésia onde as artes e as tradições são mais fortes. Portanto, não faltam actividades lúdicas e de cariz cultural. Se tiver tempo, para além dos destinos “obrigatórios”, como Borobudur, Prambanan, Merapi ou o palácio Kraton, visite o mercado das aves, onde pode ver alguns exemplares exóticos, infelizmente muitos vendidos no mercado negro e ilegal. As agências locais oferecem várias excursões de um ou mais dias, pelo que compare os preços e veja a sua disponibilidade temporal. As marcações pela Internet têm uma fiabilidade de praticamente 100%.

O que comer
Está no sítio certo para cometer o pecado da gula. Em Yogyakarta pode provar a verdadeira comida de rua, quer na movimentada Rua Malioboro quer no bairro de Prawirotamam. Se optar pela primeira, na parte Norte servem-se deliciosos ayam goreng (frango frito embebido e leite de coco) ou nasi langgi (arroz de coco bem condimentado). Os estudantes, que surgem aos magotes ao final do dia, são apreciadores do oseng oseng, uma espécie de mini nasi campur (arroz com... tudo o que possa imaginar). Eu fiquei fã do gudeg, caril de jaca com frango, ovos e arroz, muito fácil de encontrar à volta dos mercados. A parte central da cidade afigura-se como uma espécie de restaurante gigante a céu aberto, onde pode encontrar todo o tipo de pratos javaneses, indonésios e ocidentais, com ou sem picante, mas sempre impregnados de aromáticas especiarias. Um verdadeiro manjar para os sentidos. Lembre-se que está num país muçulmano, pelo que o consumo de álcool está vedado em quase todos os lugares.

Onde ficar
Existe uma variedade razoável de hotéis nas proximidades de Borobudur, apesar de os baratos serem em número reduzido se comparado com Yogyakarta. Se optar por alojamento próximo ao monumento terá direito a um voucher de desconto na entrada do mesmo. Ainda nas redondezas, a aldeia montanhosa de Kamal oferece acomodações em madeira em estilo javanês com vistas soberbas para Borobudur. Em Yogyakarta, ou  “yogya”, como é chamada pelos locais, a oferta é vasta e vai desde os luxuosos hotéis de cinco estrelas até às despretensiosas e económicas guest houses. Eu optei por um misto, em estilo tradicional, o hotel Kampoeng Djawa.

Informações
Ao longo de 25 anos, os portugueses depararam-se com inúmeras dificuldades para entrar na Indonésia devido ao corte de relações diplomáticas decretado no seguimento da invasão de Timor-Leste. Agora, basta ter o passaporte em dia e pagar o visto (de 30 dias) de entrada à chegada ao aeroporto e conviver com um povo de uma amabilidade inigualável. Tratando-se de um lugar bastante turístico, é necessário estar-se vigilante, sobretudo em Yogyakarta, não tanto pela segurança mas, essencialmente, pelos vendedores/enganadores que pululam na cidade, postados, principalmente, junto ao palácio Kraton. Atenção que o palácio tem duas entradas, pelo que não se engane nem vá na cantiga do vigário dos vendedores presentes, os mesmo que tentam convencer o turista a visitar, gratuitamente, exposições de batik mas depois de entrar na loja é um sarilho sair sem efectuar uma compra. Por último, acerte o preço antes de subir para uma becak, os coloridos riquexós locais. Alugar um carro não é aconselhável pelos preços praticados, pelo mau estado das estradas secundárias, pela dificuldade em ler as informações e pela forma irresponsável como se conduz no país. Por isso, opte por viajar em transportes públicos ou através da marcação de serviços em agências oficiais, com preços em conta e informação quanto baste.

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