Já estava em Bristol há cinco dias quando abri a Enciclopédia Geográfica e tomei consciência de que Cardiff fica a apenas 45 minutos de distância. Apesar do cansaço acumulado — Bristol é uma daquelas falsas pequenas cidades onde o tempo e os passos respondem a relógios diferentes —, e mesmo dispondo de pouco mais de 24 horas até ao voo que me traria de volta a Lisboa, fui incapaz de resistir à tentação de apanhar o comboio e passar a noite na capital galesa.
Se não fosse uma capital o mais certo é que não tivesse ido. Há outras localidades à volta de Bristol que poderia ter visitado — Bath, por exemplo, património Mundial da UNESCO, por muitos considerada a mais bonita cidade do sudoeste inglês, recheada de edifícios georgianos e alimentada por milagrosas águas termais que tanto poderiam ter feito pelas minhas maleitas —, mas a verdade é que tenho um fascínio primário por capitais, fronteiras e novos países. A razão para que, ainda hoje, no tempo em que os mapas não só nos guiam como também nos falam, continue a carregar às costas uma pesada obra da Selecções do Reader’s Digest datada de 1988.
Foi o meu primeiro livro. Tal como algumas pessoas não conseguem viajar sem a sua almofada, eu não consigo viajar sem ele, por mais desactualizada que esteja a informação. Gosto de rever o que foi escrito na época e comparar com os dias de hoje. Agora toda a gente sabe onde fica o Burkina Faso ou o Lesoto, mas nos anos oitenta do século passado alguns colegas de escola chegaram mesmo a acreditar serem dois países inventados por mim, por mais que lhe dissesse que a capital do Burkina era Uagadugu e que o Lesoto era um enclave incrustado na África do Sul.
Apesar de conhecer todas as páginas de trás para frente, pelo menos assim julgava, nunca tinha reparado que a informação o País de Gales é quase nula. O destaque é dado em exclusivo ao Reino Unido. Eis o singelo parágrafo que os autores lhe reservaram. “Gales, País de, Reino Unido. Principado situado na parte ocidental do Reino Unido. O filho mais velho do soberano é geralmente o príncipe de Gales. Tem cerca de 20.761 km2 e uniu-se à Inglaterra em 1536-1542. Actualmente, reina um nacionalismo intenso na região: um quarto da população fala galês. Carfiff é a capital e Newport e Swansea são as principais cidades industriais. População: 2.749.600”.
Sobre Cardiff fala-se até mais que sobre o próprio país: “Originalmente forte romano da margem norte do canal de Bristol, tornou-se o maior porto carvoeiro do Mundo (servindo as minas carboníferas de Gales do Sul), no século XIX. Actualmente possui um esplêndido complexo de edifícios governamentais, um grupo de contruções de obediência arquitectónica paisagística segundo um plano formal equivalente, em pequena escala, à capital indiana, Nova Deli. A cidade alberga ainda duas faculdades da cidade do País de Gales, uma catedral na zona suburbana Llandaff, bombardeada durante a II Guerra Mundial e entretanto reconstruída, um castelo e o estádio nacional de râguebi, o Cardiff Arms Park — provavelmente, o coração emocional do País de Gales. População 281.000”.
Dados manifestamente insuficientes para que tenha criado qualquer memória das paisagens galesas no filme da minha infância. Mesmo enquanto adulto, exceptuando as referências a nomes como Ryan Giggs e Christian Bale, o rei e o príncipe dos relvados galeses, Ken Follet, um dos barões dos best sellers e actores como Anthony Hopkins, Catherine Zeta-Jones ou Timothy Dalton, o James Bond que ninguém se lembra que o foi, o País de Gales nunca passou para mim de um destino quase inexistente. Provavelmente à semelhança do que acontece com o resto do mundo.
A minha primeira vez
Assim que entrei no First Rail Western comecei de imediato a separar os ocupantes entre galeses e ingleses. Apesar dos muitos traços em comum, sobretudo aquela expressão de quem regressa a casa depois de um dia de trabalho, revelou-se um passatempo certeiro para a viagem, de tal forma que nem sequer me apercebi de que entretanto havíamos cruzado uma fronteira (não há fronteiras, naturalmente) e entrado num novo país. Numa outra realidade.
Foi a um galês típico, pelo menos o tipo de galês que sempre idealizei, que fiz questão de me dirigir assim que saí da estação.
- Sabe onde fica um hostel chamado Riverouse?”
- Sorry?
- Riverouse?
- Sorry.
- Um hostel chamado Riverouse... Fica junto ao rio.
- Ouse? O que é isso?, desculpe mas não estou a perceber.
- Ouse, OUSE... Não sabes o que raio significa casa?
- Ah... house?!
- Desculpe, não pronunciei de forma correcta.
- Não tem mal, eu é que peço desculpa. Basta passar o estádio, atravessar a ponte e virar à direita. Fica a apenas cinco minutos de distância.
Se todas as viagens guardam algo de marcante — ideia com que estou em total desacordo, ainda que já tenha ouvido esta “teoria” defendida por gente que muito prezo —, talvez ter ficado alojado pela primeira vez num hostel seja esse momento para mais tarde recordar. Daqui a alguns anos é possível que venha a esquecer-me por completo dos passos dados ao longo das 24 horas que tão lenta e diligentemente agora reproduzo, continuarei, porventura, a recordar-me de que centenas de hotéis, resorts, turismos rurais, guesthouses, bed&breakfast, tendas de campismo, cadeiras de aeroporto, sofás e bancos de jardim depois, cedi por fim à tentação de partilhar o quarto com desconhecidos. Não adianta aventar as razões que me levaram a ter adiado esta experiência até tão tarde, mas foi assim que aconteceu.
Antes de dormir fui, contudo, comer qualquer coisa ao The Prince of Wales, pub sugerido pelo rapaz da recepção. Um simpático britânico que me levou a questionar uma vez mais essa verdade insofismável de que ninguém sabe receber melhor do que os portugueses. Foi a pensar no assunto que fiz os cinco minutos de percurso. “Vá em frente, vire à esquerda, passe pelo estádio e fica do lado direito. São apenas cinco minutos a pé.” Ao contrário de Bristol, onde os minutos se transformam em horas, os habitantes de Cardiff parecem saber ao certo a dimensão da sua cidade. Pedi-lhe que me indicasse um local tipicamente galês que não fosse muito caro. Não sei como é um local tipicamente galês — parece-me, ainda assim, não ter sido enganado.
Sentei-me logo à entrada, numa mesa junto à televisão onde passava um jogo do Manchester United para a Liga dos Campeões, escolhi um dos cinco bifes do menu, meio litro de cerveja da casa e esperei que me viessem atender.
- Tem que fazer o pedido ao balcão – disse-me o homem da mesa ao lado, percebendo que a minha espera e passividade não me iriam levar a lado nenhum.
Assim foi.
- Em que mesa está sentado?
- Na mesa da entrada junto à televisão.
- Há várias televisões. Qual é o número da mesa?
- Não sei...
- Se não me disser o número da mesa, não lhe posso fazer o pedido.
- Dê-me uma mesa qualquer, então.
- Pode ser aquela logo à entrada, junto à televisão?
Lá voltei à minha mesa, comi o bife, mal passado, tal como pedira, acompanhado de ervilhas e batatas fritas, e vi o que restava do jogo. Ainda estive alguns minutos a tentar perceber se o casal do lado, na casa dos quarenta anos, falava em galês ou inglês, de forma a medir o pulso a uma possível onda nacionalista que se fazia sentir já em 1988, mas como não trocaram qualquer palavra ao longo da refeição, e estando os outros grupos já demasiado lançados para que eu pudesse apanhar a carruagem, decidi ir dormir. O quarto tinha quatro camas, era dia da semana, terça para quarta-feira, e acabei por passar a noite sozinho.
Primeira vez, parte II
Às dez da manhã já estava dentro do estádio. Ficava mesmo ali à minha frente, do outro lado do rio, tinha passado três vezes por ele na noite anterior e tornou-se impossível resistir. Não o Millennium Stadium, substituto do antigo Estádio Nacional, que apesar de ser um dos mais modernos e avançados estádios do mundo é em tudo semelhante a um moderno e avançado estádio em qualquer parte do mundo, mas no rugby ground do mítico Cardiff Arms Park, ali mesmo ao lado do novo. Uma espécie de parente mais velho onde jogam os Cardiff Blues, da histórica Liga Celta (agora chamada de RaboDirect Pro12), competição que inclui doze equipas profissionais da Irlanda, Itália, Escócia e País de Gales.
Foi o homem que trata da relva artificial quem me passou a informação e confirmei de imediato na Internet. Ainda não há muitos anos pesquisávamos na Internet e confirmávamos com as pessoas, agora perguntamos às pessoas e confirmamos na internet. Disse-me também que os Blues estavam de folga, mas que no final do dia haveria jogo. Para aparecer, se quisesse.
Não sei se por sempre ter sido um apaixonado por estádios tipicamente ingleses, se mais uma vez influenciado pela Enciclopédia Geográfica, que diz ser este, “provavelmente, o coração emocional do País de Gales”, a verdade é que por momentos senti que era capaz de ficar ali o dia todo. Logo eu que de râguebi não percebo nada. Só não o fiz por vergonha, por saber que mais tarde nunca perdoaria a mim mesmo ter ficado o dia todo sentado num velho estádio galês a ver um funcionário tratar do relvado sintético, quando um dia, uma tarde, era precisamente tudo o que tinha para visitar a cidade. Antes de sair o homem fez-me mais uma revelação: que a cidade tinha sido eleita Cidade Europeia do Desporto em 2014, estando programados uma série de eventos e competições, entre eles a final da Supertaça Europeia de futebol, algo que considerava muito bom para o turismo na cidade, que tem crescido muito nos últimos anos, sobretudo depois de a revista National Geographic ter considerado a cidade como um dos 10 destinos de Verão para 2011.
- Sorry?
Desta feita o espanto foi meu.
- Tem a certeza?
- Tenho.
Fui mais uma vez à Internet, agora incentivado pelo próprio.
- O estádio tem wireless grátis e não precisa de password.
Cardiff ocupava, de facto, um surpreendente e honroso sexto lugar de uma lista que abria com os lagos e as paisagens de Muskoka, na província canadiana de Ontário, e fechava com as praias da Istria, na Croácia. Abaixo de Cardiff locais como o arquipélago de Roatan, nas Honduras, considerado um dos últimos segredos do mar das Caraíbas, e os Açores. Sim, os nossos Açores.
- Eu não viria passar férias para aqui no Verão, mas eles é que sabem.
Ao contrário do que possa ser expectável, a descoberta emprestou-me uma certa sensação de desconforto. Estava em Cardiff quase por acaso, de passagem, a correr (ainda que sem pressa alguma para ver o que quer que fosse), crente de que além dos galeses, dos britânicos e de meia dúzia de viajantes com prioridades e bússolas trocadas ninguém ligava nenhuma à cidade e agora via ainda mais reforçada a obrigação de fazer alguma coisa. De ter que cumprir o meu dever não só enquanto turista, mas também enquanto jornalista. Combinação que dificilmente dá bom resultado. Pelo menos comigo.
Durante alguns minutos e meia dúzia de ruas ainda empunhei com firmeza o caderno de apontamentos e a máquina fotográfica, mas logo desisti de fazer uma reportagem sobre a cidade, até porque era quase meio-dia e não tardava a noite voltaria a cair.
Passeei durante mais quatro horas, é um facto. Passei pelo renovado porto, Cardiff Bay, uma área com cerca de 200 hectares desde sempre ligada ao carvão que as autoridades locais gostam de referir como um dos mais bem sucedidos projectos de reconversão no Reino Unido, repleto de espaços de restauração e lazer, entre eles o Wales Millennium Centre, sala de espectáculos com capacidade para cerca de duas mil pessoas; passeei pelo mercado, na St. Mary Street, um bonito edifício vitoriano construído em 1891; passei pelo Castelo, um entre os muitos do país, este datado do século XI; passei na nova e Cardiff Central Library, inaugurada em 2009, onde jurei voltar um dia com mais tempo, promessa vã que, ainda assim, serviu para apaziguar a culpa perante a impossibilidade de mergulhar em tanta e tão boa literatura, mesmo sabendo que o meu inglês não me deixaria desfrutar na plenitude um único livro, quanto mais 90 mil; passei e passeei-me ainda por mais dois ou três distintos edifícios e cuidadas ruas dos quais fui incapaz de reter o nome; comi uma salsicha grelhada numa banca de rua e provei o típicoWelsh rarebit, pão tostado com queijo derretido por cima; fiz tudo isto e muito mais (não fiz nada, é só uma força de expressão) — não me perguntem, contudo, se Cardiff valeu verdadeiramente a pena.
Quando olhei para o relógio já eram 16h30. Regressei ao estádio, sentei-me num lugar que fingi ser meu desde sempre e assisti a disputado jogo de râguebi entre duas equipas amadoras. O primeiro jogo de râguebi da minha vida.
Na viagem de regresso fui o caminho todo a dormir.
Guia prático
Quando ir
O Inverno não será, porventura, a mais indicada das épocas para visitar uma cidade britânica, mas a verdade é que Cardiff nem é das mais geladas ou chuvosas. Nesta altura do ano as temperaturas mínimas dificilmente chegam a valores negativos (rondam os 2 ou 3ºC), mas também é verdade que, por norma, não passam dos 10º. A partir de Março o calor começa a dar um ar da sua graça e entre Junho e Setembro dias com temperaturas superiores a 20ºC são uma constante. É aqui que a cidade mostra toda a sua força, com muita vida na rua, uma boa agenda de concertos e muitos eventos desportivos. (Convém lembrar que Cardiff é a Cidade Europeia do Desporto em 2014). Uma época com mais turistas, é um facto, sobretudo desde 2011, quando a revista National Geographic a considerou um dos 10 destinos de Verão a ter em conta, ainda assim, longe do movimento e confusão de outras cidades europeias.
Como ir
Não há voos directos para Cardiff, mas chegar até lá está longe de ser uma carga de trabalhos. A easyJet tem duas a três ligações semanais para Bristol (cidade inglesa situada a cerca de 70km). As ligações efectuam-se por norma às terças, quintas e domingos. Convém estar atento às promoções. A partir de 1 de Abril haverá bilhetes a partir de 20,99 euros. E não é fictício. No meu caso, a viagem (com taxas incluídas) ficou por pouco mais de 60 euros. De Bristol a Cardiff poderá optar pelo comboio, autocarro ou alugar um carro e assim explorar outras partes do país. Quem estiver em Londres, por exemplo, também não terá dificuldades em chegar à cidade, afinal fica a pouco mais de 200km de distância. São várias as ligações de avião e comboio.
Onde comer
Talvez seja um exagero dizer que não há gastronomia como a britânica, mas também não será totalmente verdade dizer que tudo é mau por Terras de Sua Majestade. Até porque o País de Gales tem uma tradição gastronómica que pode surpreender os mais incautos, fruto da sua ruralidade e relação com o mar. Os apreciadores de cordeiro estão no país certo. Em Cardiff pode não encontrar propriamente a receita feita pela avó, mas são vários os restaurantes que garantem apostar em carne de qualidade. Inclusive nos pubs. O The Prince of Wales (81-83 Mary Street, bem no centro da cidade) é disso um bom exemplo. Boa cerveja, simplicidade na confecção e apresentação, mas com carne de qualidade. E preço a ter em conta. Por falar em pratos típicos, não deixe também de experimentar o welsh rarebit (ou welsh rabbit). Uma entrada quente tão simples como saborosa: pão tostado com queijo derretido por cima. Para quem não quiser perder muito a procurar o restaurante perfeito, o ideal talvez seja procurar em Cardiff Bay, onde abundam as opções, do local mais chique ao mais descontraído, da cozinha francesa à mexicana. Quem preferir poupar tem sempre as famosas lojas de conveniência britânicas, abertas até às 23h, ideais para refeições leves e baratas.
Onde dormir
De pequenos hotéis de charme, passando pelos bed&breakfast, até hotéis das mais conceituadas cadeias internacionais, não é difícil encontrar opções de qualidade em Cardiff, ainda que a oferta não seja tão diversificada como nas mais cosmopolitas capitais europeias — afinal, trata-se de uma cidade relativamente pequena. No que aos hostels diz respeito, está igualmente bem servida, seguindo a tendência que se vem registando um pouco por toda a Europa de há uns anos a esta parte. O Riverhouse (www.riverhousebackpackers.com) e o Bunkhouse (www.bunkhousecardiff.co.uk/) são dois dos melhores exemplos. O primeiro fica junto ao rio, como o próprio nome indica. Mais do que hostel, é uma espécie de grande casa familiar que recebe hóspedes. Ou um bed&breakfast. É que, ao contrário de muitos e bons hostels, em que quase todos os extras são cobrados, aqui até o pequeno-almoço está incluído. E não se limita a um croissant ou pão com manteiga. A oferta é variada e pode comer o que quiser. Apenas tem que lavar a loiça. As casas de banho são cuidadas, com chuveiro individual. Já Bunkhouse fica no coração da cidade, na incontornável St Mary Street, próximo do mercado. Um local cheio de estilo onde não só se pode dormir, como ir beber um copo ou comer algo. Há camas a fazer de sofás e uma decoração tão caótica quanto sofisticada e surpreendente.