Xiàguan é um aglomerado urbano que tem vindo a crescer com a recente fase de industrialização da China e a cidade é conhecida, também, por (Nova) Dàli. Mas não é Xiàguan o destino último de muitos dos viajantes que desembarcam na sua moderna estação ferroviária. Uma boa parte dirige-se aos autocarros estacionados na praça, procura o algarismo “8” no meio dos caracteres chineses e ruma à Velha Dàli (Dàli Guchéng), uma cidade histórica situada vinte quilómetros para norte, num lugar encantador, entre a montanha Cang Shan e o lago Erhai.
As sete horas de viagem de comboio desde a capital do Yúnnán não ficariam mal num dos capítulos de Riding the Iron Rooster, relato da jornada de Paul Theroux por milhares de quilómetros da rede ferroviária da China. A composição, com dezena e meia de carruagens, vem apinhada de gente – as celebrações do Ano Novo chinês arrastam milhões de chineses para os transportes públicos interurbanos, para umas curtas férias ou para o convívio familiar nas suas terras de origem.
Dentro das carruagens do Expresso Kunming-Lìjiang depara-se o viajante com um microcosmos da velha e da nova China, um jogo de contrastes e de contemporâneas articulações como as que vamos encontrar em Dàli Guchéng, Lìjiang ou Zhongdiàn, nos Himalaias, agora rebaptizada como Shangri-la por imperativos turísticos. Os revisores, aprumados nas suas fardas cinzentas, desbordando gestos teatrais e falas humorísticas, a julgar pelo riso e pelas salvas de palmas dos passageiros, vão distribuindo fast food chinesa e a necessária água a ferver para a preparação instantânea, jogos, casinos portáteis e outras maravilhas das artes de entretenimento.
A uma certa hora, todos se atiram aos esparguetes e às sopas embaladas, farnéis e câmaras digitais de última geração em convívio à mesa. Findo o desfastio, como que a consumar um pacto prévio, declara-se aberta a época de jogo: cartas, piões, jogos electrónicos. A fina flor da juventude chinesa, ridente e exuberante, símbolo axiomático da classe média emergente, atira notas de yuan para as mesas, fazendo acompanhar o gesto de monossilábicas interjeições, entretém-se a visionar nos tablets filmes populares ou a dormitar com auscultadores aparafusados nos ouvidos. Depressa nos vimos em Xiàguan, acotovelados todos no autocarro n.º 8, a caminho da montanha Cang Shan, a Montanha Verde, e da antiga capital do reino Nanzhao.
Murmúrios de água
A região beneficia do excepcional clima de uma das províncias mais meridionais da China, primaveril quase todo o ano. Dàli fica a quase dois mil metros de altitude e esta condição, combinada com a latitude (uns escassos graus acima do Trópico de Câncer, a mesma do Sara Ocidental), favorece um ambiente climático sem inopinados caprichos, livre de grandes variações de temperatura ao longo do ano e, as mais das vezes, abençoado por uma azulíssima abóbada celeste que parece pintada por mão de artista.
Reinam aí os pergaminhos do clima subtropical: depois de um aguaceiro, o ar faz-se ainda mais cristalino e o céu mais azul, mais nítidos, ainda, os horizontes montanhosos sobre os quais se recortam as silhuetas dos velhos pagodes do templo Chóngshèng. A proximidade do lago e das montanhas acrescenta um outro timbre, que inspira uma fantasia de marketing: Dàli é também conhecida na China como “a Suíça do Oriente”.
Sejam quais forem os passos centrífugos com que o viajante se perca, às voltas por trechos da possante muralha, pelas travessas dos mercados ou pelas ruelas onde os restaurantes expõem os legumes à entrada, à escolha do comensal, a Fuxing Lu, via pedestre de muitas casas com arquitectura riscada na madeira, que atravessa a cidade e liga as portas Norte e Sul (testemunhos arquitectónicos do império Nhanzao), é uma passagem inevitável.
A rua é uma espécie de espinha dorsal do velho burgo, e, ao mesmo tempo, o coração que faz pulsar, ou onde se sente pulsar, o ritmo da multidão, nas suas andanças vitais ou de supérfluo lazer. Um desassossego de gente de câmara fotográfica em riste (o turismo interno chinês cresce a um ritmo assombroso), camponeses de vara funâmbula aos ombros e cestos equilibrados nas extremidades, gente mais idosa concentrada, ao cair da tarde, nos seus exercícios de tai-chi ou em danças populares.
A rua é, enfim, um embriagante sopro de vida: lidas de comércio, visitantes em vaivém, sem bússola, abreviados jardins, um ou outro templo, vozes, risos, cacofonias de músicas dispersas e variadas, movimento. E murmúrios de água sob os passos dos caminheiros, porque de cada lado da via correm uns estreitos canais, alimentados pelas fontes da Montanha Verde. No cruzamento da Renmin Lu, um velho músico toca com delicadeza o seu erhu (violino chinês de duas cordas) e a melodia ecoa como um acompanhamento da toada das águas.
Na Fuxing Lu, estão quase todas as encruzilhadas decisivas da cidade e da sua vida social, e é por ali que passam todas as paradas e folias das celebrações do Ano Novo chinês e da Festa da Primavera: os dragões, as danças, as bandeiras, grupos de música tradicional da minoria Bai e as tamboradas, com os seus ritmos percutidos em grandes tambores de pele, em desfiles que correm a rua de porta a porta, a do Norte, por onde se anunciavam as caravanas do Tibete e a do Sul, elo de ligação às outras províncias meridionais do império chinês.
Fala o mestre taoista
Do cimo da muralha avista-se bem o fio azul do lago Erhai, cingido por serranias cor de terra, panorama que ressoa vagamente a paisagem andina. Uma estrada em linha recta atravessa áreas de arrozais e termina na aldeia de Cáicun, à beira do Erhai. Para além dos pitorescos batéis de pesca ancorados num cais rodeado de juncos, há umas lanchas modernaças que levam os turistas às voltas pelo lago e até à ilha e ao templo de Putuó. Mas será, talvez, a atmosfera rural e a arte da pintura de paisagens nas paredes alvas das casas, certamente tão expressiva como nos áureos tempos da dinastia T’ang, já lá vão mais anos do que os de um milénio, que melhor justifica o zelo de uma curta jornada até às margens do lago.
Mesmo se lá para as bandas da região de Xinjiang, no coração da Ásia, persistam práticas de intolerância e instabilidade nos territórios dos Uigures, uma volta por Dàli dá conta da variedade de credos na China. Além da pequena igreja protestante da Fuxing Lu, num quarteirão popular, encontramos numa travessa da Renmin Lu uma bela catedral cristã, mestiçagem arquitectónica que cruza inspiração ocidental com elementos da arquitectura Bai. As três naves, em madeira, estão coloridas de azul claro e há figuras pintadas nas paredes e estrelas de prata a brilhar nos caixotões do tecto.
À distância de uma caminhada de vinte minutos a partir da Porta do Norte, e já no sopé da Montanha Verde, fica o grande templo de Chóngshèng, um complexo religioso-cultural budista que se tornou o principal símbolo da Velha Dàli, com os seus três icónicos pagodes de estilo Bai. O pagode Quianxún, o mais alto, é um dos mais antigos da China (século IX) e um dos mais altos, com 70 metros de altura. Os outros dois pagodes, mais pequenos, foram edificados no século seguinte e formam, com o seu irmão mais velho, um dos poucos vestígios monumentais do reino Nanzhao.
Enquanto ex-líbris de Dàli e da cultura Bai, é um quebra-cabeças escolher a hora mais adequada para o visitar. Sem pretensão a ciência, talvez a melhor opção seja ir de manhã muito cedo, à hora da abertura, antes de começarem a chegar os autocarros para as visitas de grupo, um fenómeno que atinge dimensões inenarráveis durante a Festa da Primavera.
A meia centena de quilómetros de Xiàguan, na direcção sul, há uma outra visita interessante, entre as tantas que na vasta China nos lembram a sofisticação e os fulgores da mais antiga civilização do mundo, que começou a afirmar-se muito antes da nossa era e cujas realizações fazem empalidecer muitas das “invenções” europeias. Na Montanha Weibao (Weibao Shang), perto de Weishan, que foi o maior centro taoista do Sul chinês (o taoísmo é, aliás, uma expressão cultural meridional), podemos admirar alguns extraordinários murais executados por artistas taoistas, uma filosofia que antecipou em muitos séculos alguns aspectos do relativismo contemporâneo.
Num tempo em que a soberba de saberes absolutistas e impositivos reincide, e insiste em reproduzir-se, disfarçada, nos manuais escolares e através da parafernália omnipresente dos actuais meios de comunicação, vale a pena recordar a sábia humildade de Zhuang Zhu, que demonstrava, num breve diálogo, como o conhecimento contém em si mesmo o seu contrário. Zhuang Zhu caminhava certo dia pelas margens de um rio e comentou: “Como se divertem os peixes na água!” O amigo objectou: “Tu não és peixe, como sabes que eles se divertem?” Zhuang Zhu terá respondido, certamente mais interrogativo do que assertivo: Tu não és eu; como sabes que eu não sei que os peixes se divertem?”
Do que se conta dos Bai, que nestas partes da China vivem
Há várias etnias minoritárias na região, como os Yi e os Hui, de confissão islâmica, que deram na segunda metade do século XIX umas quantas dores de cabeça aos poderes centrais chineses por causa das minas de prata e ouro exploradas nos seus territórios. Mas são os Bai, entre todos os povos minoritários que nestas partes da China vivem, os que em maior número se contam, chegando ao milhão e meio de pessoas. Vestígios arqueológicos apontam para o facto de serem gente de muita antiguidade, supondo-se que se terão estabelecido na região há cerca de 3000 anos.
Politicamente, a época de ouro dos Bai coincidiu com a constituição do reino Nanzhao, que chegou a exercer soberania, no início do século IX, sobre uma boa parte do Yúnnán e territórios que fazem agora parte do Laos, da Birmânia e da Tailândia, resistindo com êxito aos movimentos de expansão do império chinês. Já no século X, uma ofensiva da dinastia T’ang levou à desagregação do reino Nanzhao, substituído a seguir pelo reino de Dàli, que durou até à chegada do exército mongol, em meados do século XIII. As consequências desta invasão foram também fatais para a China, que acabou por mergulhar numa fase de decadência, após o esplendor das dinastias T’ang e Sung.
Apesar da conquista brutal realizada pelos invasores mongóis, que deixou um rasto de destruição (subsistindo poucos vestígios de carácter monumental do reino Nanzhao), e da onda de “progresso” que atravessa actualmente uma parte da China, há um número eloquente de indícios das singularidades dos Bai, incluindo tradições arquitectónicas populares, práticas sociais e culturais e alguns templos taoistas. A actual Dàli, que chegou a ser um importante entreposto nas rotas de comércio com o Tibete e com a Birmânia, foi fundada já no século XV, no tempo da dinastia Ming, e conserva abundantes sinais arquitectónicos desse tempo.
Para uma percepção de alguns aspectos da cultura Bai, vale a pena agendar uma visita ao mercado semanal (segunda-feira) de Shapíng, uma aldeia situada na margem do lago, a trinta quilómetros de Dàli e a uma hora de autocarro. Entre outros artefactos criados pelas mãos da gente Bai, podemos descobrir ali os famosos batiques algodão e em seda da região.
“Kung Hei Fat Choy!”
O Ano do Cavalo chegou ao planeta há pouco mais de 24 horas e neste instante devem andar os maus espíritos em fuga para outras bandas do Universo, pelo menos durante os próximos tempos. Mas quanta fadiga e perseverança exigiu a criação deste momento festivo e promissor! A preparação das celebrações do Ano Novo chinês inicia-se muito antes da data, que este ano caiu no último dia de Janeiro do calendário gregoriano, com o minucioso cumprimento de uma série de preceitos, que apresentam variedade consoante a geografia e as comunidades celebrantes, ainda que o essencial se repita.
Há primeiro que proceder à limpeza geral das casas e das estátuas das divindades, para que a boa fortuna trazida pelo Ano Novo melhor possa fazer a sua entrada na vida das gentes. A confecção das especialidades gastronómicas pode também ter de ser iniciada com antecedência, tal como acontece com a decoração das casas e das ruas, a transbordar de luzes, lanternas e frases em letras douradas sobre fundos vermelhos (como a figura do “Fu”), uma componente importantíssima da festa, já que a cor vermelha dos elementos decorativos é essencial, de acordo com crenças ancestrais, para garantir a protecção contra os maus espíritos. Esta função é justificada por uma antiquíssima lenda sobre um monstro que devorava as colheitas dos camponeses. Tendo sido descoberto (ou revelado por um sábio) que a besta nutria um temor de morte por tal cor, passaram os aldeões a usar fitas de papel vermelho nas janelas e nas portas para se protegerem.
O grande momento (tal como na comemoração ocidental da passagem de ano do calendário gregoriano) é a noite da transição de ano, com o tradicional jantar anual de família, a contagem decrescente e o lançamento de abundante fogo-de-artifício, que perdura em muitas paragens até ao amanhecer. O rebentamento de petardos (uma prática com séculos, consumada antes com canas de bambu cheias de pólvora) é também muito popular, representando mais um exercício simbólico de afastamento dos maus espíritos. Acender, depois da meia-noite, o primeiro incenso do ano é um gesto cheio de significado e propiciador, também, de boa sorte.
O primeiro dia do ano é reservado para visitas aos parentes mais velhos e aos amigos. É também o dia da troca de presentes, por tradição fruta, doces e os tão simbólicos lai-see, envelopes vermelhos com dinheiro. As comemorações do Ano Novo chinês, que uma tradição secular designa, igualmente, por Festa da Primavera, estendem-se por quinze dias, cada um deles com particular simbologia e implicando práticas, ou interditos, diferentes. O ciclo termina no 15.º dia do primeiro mês lunar com o Yuanxiao, a Festa da Lanterna. Durante estes dias, as danças do dragão e do leão representam alguns dos mais animados momentos de vivência colectiva.
O calendário chinês baseia-se no ciclo lunar (se bem que o ano de 365 dias tenha sido calculado há mais de dois milénios por astrónomos da China) e, por esse facto, a data do Ano Novo varia, fixando-se normalmente entre os dias 21 de Janeiro e 20 de Fevereiro do calendário gregoriano. A festividade é celebrada tradicionalmente por budistas, taoistas e confucionistas, embora, na prática, pouca gente fique de fora. As celebrações ocorrem em todo o mundo onde existam comunidades chinesas significativas (o que confere à festa um carácter praticamente universal): na China, em todo o Sudeste Asiático (Tailândia, Malásia, Singapura, Filipinas, Birmânia e Laos). Sydney, Nova Iorque, São Francisco e Londres são outros locais onde as celebrações têm uma dimensão significativa.
As festividades originam a maior movimentação sazonal de seres humanos no planeta – o que, na China, dá lugar a operações especiais de organização dos transportes ferroviários e rodoviários. Previa-se para este ano 3,6 mil milhões de viagens, o que significa um aumento de cerca de duzentos milhões relativamente aos números do ano passado. Mais milhão, menos milhão, porque uma estatística é apenas uma estatística. Certo é que este número impressionante de celebrantes estejam ainda a trocar entre si os habituais votos de felicidade e prosperidade para o ano que agora começa: “Kung Hei Fat Choy!”
_______________
Guia prático
Como ir
A cidade de Dàli fica situada a cerca de 350km a Oeste de Kunming, capital da província do Yúnnán. Como não há voos directos de Portugal para Pequim ou Xangai, escalas indispensáveis para chegar a Kunming, é necessário passar por uma capital europeia – como, por exemplo, Paris, Amesterdão ou Londres. A partir destas cidades há voos para Pequim e Xangai, onde é fácil conseguir uma ligação aérea para Kunming. Há várias companhias europeias a fazer estas ligações, mas a opção por uma companhia chinesa, como a Hainan, a Eastern China Airlines ou a South China Airlines pode ser bastante conveniente em termos de tarifas. Estas companhias têm acordos de codeshare com companhias europeias.
Da capital do Yúnnán para Dàli, há várias opções possíveis: via aérea, autocarro ou comboio. Por via terrestre a viagem requer entre seis e sete horas. Em épocas festivas, como a do Ano Novo e da Festa da Primavera, é aconselhável fazer as reservas de viagem com pelo menos uma ou duas semanas de antecedência.
Onde ficar
Há uma ampla oferta de alojamento em Dàli. Duas sugestões, ambas com tarifas e conforto médios. A primeira, do lado de fora da muralha e a cinco minutos da Porta Oeste: Jade Emu Guesthouse, West Gate Village (www.jade-emu.com; email: reservations@jade-emu.com). Uns pontos acima está o Jim’s Tibetan Hotel, dentro das muralhas, mesmo ao lado da Porta Sul, Yu Xiao Lu, 4 (www.jims-tibetan-hotel.com/; email: jimstibetanhotel@gmail.com).