Ainda antes de aterrar, e com um abençoado lugar junto a uma janela, Las Vegas lembra uma árvore de Natal numa noite escura. Lá longe, um amontoado de luzes brilhantes. A toda a volta, a brutal escuridão, um nada.
Depois das formalidades próprias da entrada no país, processo que mais parece saído de um filme de ficção científica - e sem que falte um Elvis de peruca e vestido de branco entre os recém-chegados (“Ah! Nunca falha”, diz um companheiro de viagem na sua 10.ª incursão à cidade, “em todas as viagens há sempre um Elvis.”) -, rumamos ao hotel para logo a seguir começarmos esta escapada a Las Vegas por onde a própria cidade começou.
Na Freemont Street, baptizada em honra do engenheiro e explorador John C. Frémont que chegou a Las Vegas Valley, quando este ainda era território mexicano, em 1844, volta a haver Elvis. Mas também Marilynes e até um Super-Homem, de mecha de cabelo enrolada e colada à testa. Pode-se dizer que foi aqui que nasceu Las Vegas. Nesta extensa rua foi inaugurado o primeiro hotel da cidade (hoje designado por Golden Gate, cuja principal atracção reside num tanque de tubarões que se pode atravessar num tobogã), foi ligado o primeiro telefone ou montado o primeiro elevador. Actualmente, com grande parte da rua vedada ao trânsito e uma panóplia de gente de copo na mão a passear de um lado para o outro, houvesse colares de contas brilhantes penduradas aos pescoços e ainda se poderia pensar tratar-se do Mardi Gras.
Sobre as nossas cabeças, a uma altura de quase 30m, uma tela gigante, que percorre mais de 450m de céu, exibe um concerto que deixa todos de nariz empinado. Da rua vai saindo gente para o interior dos edifícios, provavelmente para mais uma tentativa de ter boa sorte ou apenas com o intuito de jogar sem querer saber se ganha ou se perde. Ao mesmo tempo que uns abandonam esta espécie de centro comercial ao ar livre, outros chegam, promovendo uma rotatividade que ajuda a manter os ânimos.
Numa das pontas, a música que vai sendo debitada por uma DJ parece animar duas mãos-cheias de gente que vão pulando e exercitando acrobacias à vez. No canto oposto, um concerto rock que recorre a modificados instrumentos de corda não fica atrás e há quem, literalmente, vibre a cada nota. Já para nós, ainda em horário de Lisboa, quatro da manhã parece uma excelente hora para jantar e nada como alinhar nos pratos mais típicos. Como um hambúrguer, com queijo, bacon e cebola. Mas atenção na hora de pedir a bebida: tudo é servido com porções astronómicas de gelo. Desde a água que nem sequer é preciso requisitar até todo e qualquer refrigerante.
Com o berço de Las Vegas percorrido, para outra noite ficaria aquela que hoje é a rua mais conhecida da cidade. É na Strip, que se estende por quase sete quilómetros da Las Vegas Boulevard, que se encontram as coqueluches da hotelaria da cidade que parecem encaixar-se umas nas outras ao ponto de, por vezes, não sabermos bem onde acaba um hotel e começa o outro. A única coisa que temos a certeza é de que, com tanto circo à volta, mais parece que se acabou de chegar a uma espécie de Disneylândia. Mas só para adultos.
No The Venetian reproduzem-se os canais venezianos sem que faltem gôndolas ou gondoleiros vestidos a preceito (e que até cantam – mal, sublinhe-se – o tema O sole mio), pontes românticas, cenários diurnos e nocturnos da cidade italiana, candeeiros de rua em ferro forjado. À frente, no Mirage, um vulcão artificial simula uma erupção a cada meia hora, entre as 18h e as 23h. Ao som de uma banda sonora dramática q.b., é lançado fogo para todos os lados e a rua inteira parece paralisar para apreciar o espectáculo gratuito.
É possível ainda ir ver os gigantescos repuxos de água ao Bellagio, onde, de 15 em 15 minutos, centenas de pessoas se juntam. Já os leões que marcavam o dia-a-dia do MGM tiveram direito à reforma e agora podem ser vistos num rancho perto da cidade. Contava-nos o nosso taxista no último dia, um imigrante etíope a viver em Las Vegas há quatro anos (“e sem intenção de voltar a não ser para visita”), que o espectáculo dos leões foi cancelado após um dramático incidente com o tratador. No entanto, várias pesquisas não devolveram quaisquer resultados que indicassem o macabro desfecho e preferimos imaginar a bondade de simplesmente decidir proporcionar uma vida mais tranquila aos animais.
Oásis no deserto
Las Vegas pode ser comparada a uma ilha rodeada de areia, terra e calhaus por todos os lados. Melhor: um oásis de luz e vida no meio do deserto. É a mesma sensação da chegada de avião que volto a ter no alto da Stratosphere que, localizada na parte norte da Strip, é considerada a torre de observação mais alta do país, com um total de 350m.
Entramos pelo gigantesco casino quando faltam minutos para o encerramento da bilheteira que vende os acessos ao piso onde se situa o panorâmico terraço. O tempo que falta para o fim das visitas é tão pouco que a rapariga que se senta atrás do balcão não resiste a dar uma ajuda. Afinal, entre sairmos para o terraço, ver a vista e ouvir o anúncio que o varandim vai fechar não devem ter passado mais de cinco minutos. Por isso, dá as dicas e, em vez de nos vender os bilhetes de 18 dólares por pessoa, ensina-nos a lá chegar: “Apanham ali o elevador – dizem que querem ir ao 107 Lounge; aí há outro que os levará ao miradouro.”
Deliciados pela perspectiva de ainda podermos espreitar a vista, e experimentando uma leve sensação de traquinice por estarmos a fazê-lo a custo zero, damos por nós numa viagem-relâmpago de elevador que em menos de um minuto nos leva ao nosso destino: “Estão a sentir-se bem?”, pergunta sorridente o rapaz que tem à sua responsabilidade os botões do elevador.
A subida é tão rápida que é impossível deixar de sentir uma estranha sensação de vertigens. Porém, esta torre, onde se encontram quatro divertimentos radicais em altura, não foi feita para medrosos. Uma daquelas atracções, por exemplo, dispara, literalmente, os corajosos visitantes para o vazio. E se se quiser perceber do que se está a falar basta ir ver o Last Vegas, filme que, estando entre as opções do sistema de info-entretenimento da British, acabaria por agradavelmente retardar o regresso – críticas à sua realização ou à originalidade do argumento à parte.
Às armas e ao jogo
Estar em Las Vegas e não jogar deve estar para o adágio mais comum “ir a Roma e não ver o Papa”. E, tendo em conta que, fora umas apostas no Euromilhões, umas idas ao Bingo, o Loto a feijões com os avós ou um king com os amigos, nunca tinha jogado, depressa concluí que Las Vegas seria o sítio ideal para me estrear nos casinos. No entanto, acabaria por deixar a investida para a recta final e já depois de visitados os outlets e com prendas para os miúdos na bagagem de volta.
A slot tinha uma sereia desenhada no topo e aceitava apostas a partir de um dólar que davam direito a uma mão-cheia de tentativas. E logo da primeira vez em que puxei a alavanca, o dólar transformou-se em um dólar e 75 cêntimos. O ticket cuspido pela máquina e guardado religiosamente serve de prova.
A ida ao Silverton Hotel & Casino tinha como objectivo almoçar. Não hambúrguer, como durante quase toda a viagem. Mas salmão grelhado – bastante recomendável, garanto –, sendo que a refeição, sem sobremesa e com bebida, fica por pouco mais de 10€. Mas a incursão depressa se transformou numa visita turística com uma vertente quase antropológica.
O casino, cuja entrada é marcada por um gigantesco aquário com peixinhos de várias cores e formas, esconde uma gigantesca loja de artigos para caça, pesca e armas, com divertimentos incluídos. Casos de um tanque para a prática de pesca desportiva, de um recanto para o tiro ao alvo com luz – não acertei em nenhum – ou salas para a prática de tiro com munições reais. Mas para as usar há que levar a própria arma e munições. E essas são de guardar: “Desde que o senhor de pele castanha”, diz o homem que está atrás do balcão e que claramente não depositou o seu voto em Obama, enquanto passa com os dedos de uma mão pelas costas da outra, “está na Casa Branca que as pessoas passaram a guardar tudo em casa”. Um pouco por todo o lado da loja se encontram frases que defendem o armamento dos cidadãos, assim como o seu direito em usá-lo.
Mas o sentimento anti-Obama não é um exclusivo daquele homem que culpa o actual Presidente pela falta de clientes nas suas salas de tiro. São visíveis, aqui e ali, em pequenas observações, as formas de estar tão distantes de Washington que, afinal, fica “apenas” a quatro mil quilómetros de carro – os mesmos que teríamos de percorrer de Lisboa a Minsk, capital da Bielorrússia. Afinal de contas, isto não é só um país; é quase um continente. E a imensidão toma conta de nós assim que trocamos a confusão da malha urbana pela quietude do deserto.
A passo de caracol
Estamos ainda praticamente no início do Vale da Morte, uma depressão a norte do deserto de Mojave, que, ao longo de mais de 200km, marca a fronteira entre os estados da Califórnia e do Nevada. A zona é tão conhecida pelas altas temperaturas – que, no Verão, já atingiram os 57º C (valor registado a 10 de Julho de 1913 e que mantém o estatuto do segundo mais alto registado até hoje) – como, mostram-nos as placas e avisam-nos os locais em Furnace Creek, onde paramos para almoçar (um hambúrguer, claro!), pelas inundações instantâneas (flash floods). Uma destas, em 2013, deixou a estrada que passa em Badwater, uma das atracções do local, intransitável durante meses. E, em Agosto de 2004, uma tempestade foi inclusive a causa da morte de duas pessoas, destruindo a estrada que liga o Vale da Morte a Las Vegas – a chuva acabou por exigir obras de oito meses que se saldaram em cerca de dez milhões de dólares.
A ida, já no fim de Janeiro, é porém garantia de que não seremos nem apanhados por um temporal súbito – embora, registe-se o espanto (nosso e do taxista que nos conduzia) quando fomos brindados com chuva no último dia em Las Vegas – nem teremos de lidar com temperaturas insuportáveis.
No lugar disso, a viagem traz um ligeiro sabor a Verão ameno, com o sol a aquecer não só o corpo como o espírito. A manga comprida dá lugar às alças e não tarda que se esteja a proteger a cabeça dos raios mais violentos – ou assim parecem para quem há menos de 24h lidava com o céu cinzento que, no fim de Janeiro, parece ter transformado Lisboa numa capital da Europa Central.
A ideia de aproveitar o período de um dia de descanso para, de carro alugado, dar um salto ao Vale da Morte, que um parceiro das escritas havia descrito como “do outro mundo”, era demasiado aliciante para que me deixasse desmoralizar por um qualquer “mas isso leva muito tempo”. E foram vários.
Afinal, o que os vários sites de tráfego me diziam era que, de Las Vegas a Furnace Creek, onde se pode encontrar o Centro de Interpretação do parque, eram menos de 200km, distância que, nos meus cálculos, levaria, na pior das hipóteses, umas duas horas e meia a percorrer. Já com paragem pelo meio para um café (água quente com ligeiro sabor a café).
Aquilo que não contabilizei: a real possibilidade de, qual cogumelo, aparecer um carro da polícia do nada, sendo que as multas de excesso de velocidade podem ser tudo menos meigas. Além do mais, acreditem, depois de perceber que se está em pleno faroeste americano a vontade de alguém se ver em qualquer incidente com as autoridades é diminuta.
Por isso, a partir do momento em que me sento ao volante, as velocidades máximas são para cumprir. O que nem é um problema nos primeiros quilómetros de auto-estrada, em que o limite são as 65 milhas por hora (mph), isto é, cerca de 100km/h. Mas à medida que se entra cada vez mais pelas montanhas, que parecem fazer cerco a Las Vegas e que servem de porta de entrada para o Vale da Morte, os limites tendem a ser cada vez menos máximos e mais mínimos. Até nos vermos obrigados a seguir à velocidade cruzeiro de 35mph (55km/h).
No entanto, também há a possibilidade de acelerar até onde o carro que se seguir for capaz: no Las Vegas Motor Speedway, onde se consegue ter uma brincadeira por preços terrestres e, ao mesmo tempo, minimizar a frustração de ter de lidar com as velocidades tão limitadas nas estradas.
Mas deixemos as velocidades para as pistas. Já no regresso do Vale da Morte passaríamos por uma pequena localidade, onde no lugar do letreiro de “boas-vindas” estavam outros dois: um que avisava a existência de uma “Neighbourhood Watch” (Vigilância de Vizinhos), acrescentando um assustador “We're watching you” (qualquer coisa como “Estamos de olho em si”); outro a indicar a velocidade limite de 25mph.
Só tínhamos de percorrer uns 4km e parar numa bomba para abastecer. Mas a única coisa que me passava pela cabeça era um “quero sair daqui”. Era o carro do xerife a passar lentamente ao nosso lado; o senhor agente na bomba de gasolina de mão no coldre e a medir-nos de alto a baixo; a mulher na caixa da bomba que não compreendia o facto de nenhum de nós saber quantos galões levava o depósito daquele carro. Naquele instante nem calcular galões (a memorizar: um galão equivale a 3,78 litros). E, quase, quase à saída, um radar na berma com mais um carro das autoridades parado à espera que alguém se atrevesse. Escusado será dizer que aqui, como se lia naquela placa à venda na loja de caça, pesca e armas, “não há tiros de aviso”.
Há ainda outro detalhe que faz com que a viagem demore mais tempo do que inicialmente prevíramos. Quase que de dez em dez quilómetros alguma coisa nos leva a parar ou, pelo menos, a abrandar. Seja a dimensão do horizonte, a planície branca (de sal) a perder de vista ou os vários pontos de interesse que, mesmo sem muito interesse, nos levam a travar a marcha. Outros, porém, que à distância se assemelhavam a apenas mais um amontoado de terra, conseguem arrancar-nos alguns sons de surpresa.
Entre a arte e o inferno
O vale por que tanto ansiávamos e que se assemelha mais a uma vasta planície entre duas correntes de montanhas está por fim diante de nós. Sem fim à vista, vamos percorrendo uma estrada estreita que ora nos leva até ao centro da depressão, ora nos obriga a regressar para junto do sopé do conjunto de montanhas negras que se desenham à nossa esquerda.
Todas as curvas são iguais quase ao milímetro. E, ao fim de cinco ou seis vezes, este traçado serpenteante apenas serve para nos aumentar a sensação de não haver fim à vista. Pelo menos uma coisa conseguimos pelo caminho: compreender o porquê de tal nome.
“Imaginam alguém percorrer este vale a cavalo?”, pergunta um colega no banco de trás. É, de facto, difícil de imaginar. E a morte deveria ser o destino mais certo para quem desafiasse a agrura com que a natureza se veste. É que a água até que existe, mas os níveis de sal devem ser tão altos que bebê-la provavelmente apenas colocaria o viajante um passo mais perto da morte.
Se a imagem nos agride nesta altura em que as temperaturas não ultrapassam os 25ºC, a realidade deveria ser o inferno na terra durante os meses mais quentes. Muito apropriadamente uma das zonas foi baptizada de The Devil's Golf Course (numa tradução literal, O Campo de Golfe do Diabo). Trata-se de um mar revolto de sal, cujas tonalidades castanhas daquele composto cristalizado contrastam com a alvura que antes tínhamos testemunhado junto a Badwater, o ponto mais baixo de toda a América do Norte, a 86m abaixo do nível do mar, que chegou a ser considerado até o mais baixo de todo o hemisfério ocidental – Laguna del Carbón, na Argentina, a 105m abaixo do nível do mar, acabaria por lhe surripiar o título.
Uma curiosidade: Badwater dá também nome a uma das mais esgotantes maratonas que é percorrida anualmente em meados de Julho. São mais de 217km, desde a bacia homónima até Whitney Portal, no Monte Whitney, a 2548m acima do nível do mar. Dupla curiosidade: em 2013 foi o português Carlos Sá que se sagrou campeão.
Mas voltemos ao campo de golfe que, dizem, se o fosse de verdade apenas poderia ser usado pelo próprio Satanás e que da estrada não se vê. O tempo urge, a fome aperta, e ainda ponderamos não arriscar perder mais minutos em algo que, ao longe, nos parece muito pouco atractivo. Mas já viráramos costas à Natural Bridge Canyon que nos obrigaria a mais de 10km por estrada batida e a vontade de deixar coisas por ver não era muita. Por isso, com apenas cerca de um quilómetro de mau caminho, optamos pelo desvio.
Pelo campo esburacado, vários turistas, de outros estados norte-americanos mas também de paragens mais longínquas como nós, parecem crianças num gigantesco parque de diversões, procurando o caminho possível entre as rochas e os buracões que se formam entre elas. Cada uma parece uma jóia por esculpir, com os sais expostos ao sol a reflectirem todo o seu brilho. A surpresa é tal que, em vez de sairmos e voltarmos a entrar no carro, deixamo-nos ficar entre o espanto e a incredulidade ante o cenário que nos leva a crer que acabámos de aterrar noutro planeta.
Não à toa, várias das cenas do planeta Tatooine, do episódio IV da saga Guerra das Estrelas, foram filmadas pelo Death Valley. Nomeadamente na Artist's Drive (Caminho dos Artistas), pelo qual se pode observar uma verdadeira palete de tons, resultante da oxidação de diferentes minérios.
Manchas de um pálido rosa misturam-se com pinceladas de laranja para, logo na colina a seguir, se notar como o roxo e o verde brincam com os vermelhos. Parece, de facto, que as colinas serviram de tela a alguém. O caminho, de sentido único, é feito de curvas e contracurvas e, sobretudo, de acentuadas lombas que após ultrapassadas revelam um cenário sempre mais assombroso que o anterior.
Experiência idêntica haveria de ter no dia a seguir em Red Rock Valley. Não tanto pelas formações vermelho ocre que parecem ter sido esculpidas à mão e que contrastam com as montanhas a cinza. Mas sobretudo pela visão de, curva após curva, se observar um mundo novo, em que montanhas a verde e outras a branco nos parecem tomar de assalto.
Em Red Rock Valley é possível percorrer a estrada de bicicleta, parar a qualquer instante para tirar um montão de fotos ou mesmo para apreciar um piquenique. Lamentavelmente, de série 4 Cabrio, acabámos por ter de ser escoltados por ordem dos rangers do parque, limitando os movimentos e, claro, as paragens.
Para lá da morte
Não era apenas o Vale da Morte que me atraía a fazer esta viagem. A morte em si que lhe dá nome não deixou de ter algum efeito encantatório. Sobretudo depois de saber da existência de cidades-fantasma. “Há quem jure que ouviu a voz do tio ou da avó”, relata um dos meus companheiros de viagem, provavelmente tentando criar o clima mais apropriado.
Já na fronteira Este do parque, Rhyolite vive hoje da prosperidade da morte após ter crescido com a febre do ouro. A cidade começou a fervilhar no início do século XX quando uma campanha descobriu a existência do metal precioso na região. Como em qualquer bom western com a corrida ao ouro como mote, milhares de garimpeiros, mineiros, empreendedores, assim como prestadores dos mais variados serviços, acorreram a Rhyolite, que se situava junto à rica Mina Montgomery. Na mesma altura, foi feito o investimento em condutas de água, na electricidade, nos transportes. Em pouco tempo a cidade floresceu, incluindo até um hospital ou uma sala de espectáculos. Mas tão depressa cresceu como entrou em decadência. E, em cerca de 15 anos, a população passou de uma estimativa de cinco mil habitantes para um redondo zero.
Da mesma maneira também não demorou muito tempo entre o momento em que foi abandonada e a altura em que começou a ser atracção turística. Sobretudo após ter sido estrela em vários filmes, ainda no tempo do mudo, como foi o caso de The Air Mail (1925), de Irvin Willat.
Mas os fantasmas chegaram mais tarde, com o artista belga Albert Szukalski que, em 1984, criou a escultura A Última Ceia, uma reprodução fantasmagórica da obra de Leonardo Da Vinci, em tamanho humano, cuja criação consistiu em moldar modelos vivos, criando uma espécie de capas que hoje, antes da entrada da cidade, vão sendo “vestidas” pelos visitantes na foto para a prosperidade.
À volta, outras esculturas marcam o ambiente. Sobretudo uma que, com uma série de objectos pendurados, desde colheres até caricas, compõe uma banda sonora tão mais interessante se o vento estiver a favor. Não era o caso. E os ruídos não eram suficientemente audíveis para que provocassem o efeito desejado: arrepios. Mais sucesso teria um sinal a aconselhar cuidado dada a possível presença de cobras no local. Até que podia ser como aqueles sinais que avistamos pelas estradas portuguesas de que a qualquer momento poderá atravessar-se no nosso caminho um veado, mas que, arrisco, raros são os que conhecem alguém que já tivesse tido a experiência. Mas, sabendo da existência de uma espécie venenosa nesta região norte-americana, a cascavel, o melhor é não arriscar nenhum encontro indesejado.
Prosseguimos estrada acima em direcção ao coração do que já foi uma cidade. Hoje, são apenas ruínas. Estruturas, outrora imponentes, à espera do dia em que irão por fim desabar. Pela estrada cruzamo-nos com outros visitantes que, embora assombrados, deverão sair com a mesma desilusão: ninguém ouviu a voz de um tio ou de um avô. Nem na imaginação.
Mas para o que não tínhamos a imaginação preparada era para o encontro imediato, real e repleto de adrenalina, que mais nos marca toda a memória da viagem.
Subitamente, a meio caminho da entrada do deserto, no meio do nada, aparece-nos o bicho. Num movimento brusco, estanco o carro, engato marcha-atrás e paro no meio da estrada que, depois de muitas milhas percorridas, parecia não ter fim. Tratava-se de um canídeo que ainda demorámos uns segundos a identificar – não que os nossos conhecimentos zoológicos sejam assim tão maus, mas a surpresa foi tanta que ainda nos custou a processar a sua aparência.
Lá fomos fazendo contas, em voz alta ou para os nossos botões: “Lobo, definitivamente, não é”. Para raposa, não era difícil de observar, faltava-lhe a graciosidade e aquele focinho pontiagudo que a caracteriza. E, para mabeco, além de estarmos longe das suas regiões originárias, era demasiado bonito. Por fim, faz-se luz: um coiote. Ali, mesmo à nossa frente. E, aparentemente, muito interessado na nossa existência.
Ao mesmo tempo que nos ia rodeando, uma e outra vez, sem parecer nem assustado connosco nem tão-pouco agressivo, fomos registando o momento. Câmaras fotográficas em registo amador, iPhones sedentos por um pouco de rede para mostrarem aos amigos "o" momento do dia. Pela janela, e incapazes de conter o entusiasmo, íamos tentando apanhar o bicho de todos os ângulos possíveis.
É que, se ver um animal no zoo pode ser uma experiência emocionante e educativa, ter à frente o mesmo animal no seu habitat natural, ainda por cima num como este em que não se avista rigorosamente nada, sabe a dádiva. Porém, o divino pouco tinha a ver com esta prenda visual. Sob o carro onde seguíamos, alguns restos de comida deixados por outro veículo que nos precedera eram o alvo do coiote, provavelmente alarmado perante a possibilidade de lhe ficarmos com o repasto.
Assim que o vimos, olhos nos olhos, sentimos de imediato que este encontro era mais real e ofuscante que os mil e um neóns de Vegas, que a miríade de slot machines ou as cansadas ancas de uns “reencarnados” Elvis ou Marilynes. Um coiote com olhar Las Vegas, faiscante e ambicioso, feliz por ter conseguido o seu muito próprio jackpot. Já o nosso, foi mesmo vê-lo.
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Guia prático
Como ir
Viajámos pela British Airways, com escala em Londres e direito a cadeira que se transforma em cama. De forma que, já no regresso, quando me perguntam a distância e as horas de viagem só me apetece responder que a distância de Las Vegas a Londres é de um filme e um sono. Mas há formas mais económicas para chegar à cidade do jogo. Mesmo pela British, que faz a ligação desde cerca de 900€, o mesmo preço encontrado em algumas pesquisas na TAP para viajar nos próximos três meses.
Já a US Airways é a alternativa mais barata: faz a ligação Lisboa-Las Vegas, com escalas, desde cerca de 750€, taxas incluídas.
Do aeroporto McCarran ao centro da Las Vegas Boulevard, há transferes. Se se optar por um táxi a conta fica em menos de 20 dólares (14,50€) e se a ideia passar por alugar um carro (não esquecer de fazer a reserva online também com antecedência), o que compensa tendo em conta os valores do combustível, há um autocarro junto à saída das chegadas do aeroporto que nos leva directamente ao centro de rent-a-car.
Uma das coisas a ter em conta, e que entra para a lista dos prós na decisão de alugar ou não um carro, é a existência de parqueamento em todo o lado: gratuito se o arrumarmos nós; custando o preço de uma gorjeta se se optar pela solução valet em que alguém nos estaciona o carro e o irá buscar na altura de irmos embora. Note-se ainda que no estado do Nevada a carta de condução portuguesa (mesmo a velhinha cor-de-rosa) é válida.
Onde ficar
O que não falta em Las Vegas são soluções de alojamento. Também aqui é de reservar com a máxima antecedência, mas o mais certo é acabar num hotel cheio de atracções pelo preço de um três estrelas em Portugal.
Até porque não é com os quartos que os hotéis ganham dinheiro, mas com os casinos – excepção feita ao relativamente recente Mandarin Oriental (desde 160€), onde fiquei, e que não inclui salas de jogo no seu interior. Unidades no centro da Strip, como o histórico Flamingo ou o gigante Stratosphere, oferecem soluções à volta dos 20€/noite. Entre os cinco estrelas, o Trump estava com tarifas à volta dos 100€/noite.
Onde comer
Com alguns jantares e almoços incluídos no programa da visita, não houve nem tempo nem necessidade de fazer uma busca exaustiva aos restaurantes. No entanto, é de referir que, à excepção dos espaços mais exclusivos, não é caro comer em Las Vegas.
Os hambúrgueres são o mais fácil de encontrar (e valem bem a pena – o melhor: em Furnace Creek), sendo que uma refeição destas, com batatas, salada, refrigerante e café fica à volta dos 15 dólares (10€).
Preço semelhante pagaria por um delicioso salmão grelhado numa cama de espinafres e acompanhado por um copo de vinho. No entanto, se se vai de orçamento contado, o ideal é obter informações sobre o buffet do hotel onde se pretende ficar.
Informações
Para entrar nos Estados Unidos em lazer, um cidadão português tem de possuir passaporte válido e preencher um formulário ESTA online, uma autorização de viagem que prescinde a emissão de visto e que custa 14 dólares.
As entradas nos parques naturais são pagas (preço por carro), valor fixado para ajudar à manutenção do espaço, e dão acesso aos mapas e às informações mais relevantes.
Las Vegas, arrisco, deve ser a cidade norte-americana mais amiga do fumador. Pode-se fumar em todos os casinos o que, aqui, significa que basicamente se pode fumar em todo o lado.
Se há algo que caracteriza a cidade para além do jogo é a quantidade e a qualidade dos espectáculos que podem ser vistos noite após noite, assim como os concertos ao longo de todo o ano. Antes de ir é de fazer uma prospecção do que se está a passar e ao que se pretende ir e fazer logo a reserva online.
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A Fugas viajou a convite da BMW Portugal