Fugas - Viagens

Por florestas e grutas, em terra de índios e garimpeiros

Por Alexandra Prado Coelho

Caverna Aroe Jari, lagoa Azul, gruta Kiodo Brado. Mundos de pedra escavada pela água escondidos no meio da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso. Para lá chegar atravessa-se o cerrado, a mata ciliar, de novo o cerrado. Uma aventura digna de Indiana Jones. Depois, um salto a Cuiabá, uma das cidades do Mundial 2014.

“O nevoeiro vai levantar, o sol vem aí”, garante Jô, parada na recepção do hotel, na Chapada dos Guimarães. Tínhamos acabado de tomar o pequeno-almoço e, depois de no dia anterior a chuva ter caído sem tréguas, o dia amanhecera enevoado, e os nossos planos de conhecer este parque nacional estavam prestes a desmoronar-se. Foi nesse momento que Jô entrou em cena.

De colete de exploradora e mochila às costas, esta guia de rosto redondo e sorridente — e de nome completo Jolenil Martins — parecia absolutamente segura do que nos estava a dizer. “O sol vem aí. Ponham protector porque vão precisar, hoje vai estar muito calor.” Ainda cépticos, começámos a — apenas como hipótese — fazer algumas perguntas sobre os passeios possíveis.

Há a rota das cachoeiras, a Cidade de Pedra, enumerou Jô. Até que Nelson Garrido, o repórter fotográfico da Fugas, apontou para uma fotografia presa a um placard na parede. “E aqui, pode-se ir?”. A imagem mostrava uma gruta com água sobre um chão azul. Claro que sim, disse Jô. Pusemos o protector solar e pegámos numa garrafa de água.

Voltemos agora um pouco atrás, para situar esta história. Estamos no estado brasileiro do Mato Grosso, vindos de Campo Novo de Parecis, zona das grandes plantações de soja, e dirigindo-nos para Cuiabá, capital do estado e uma das cidades escolhidas para receber jogos do Mundial de Futebol, em Junho. Tinham-nos dito que, se estávamos por ali, não podíamos perder a Chapada dos Guimarães, a 15 minutos de carro de Cuiabá.

Tínhamos chegado na véspera — o tal dia chuvoso — e procurado abrigo neste simpático hotel, a Pousada Villa Guimarães, onde logo nos falaram da ligação a Portugal e da fundação da vila pela família dos Guimarães. Almoçámos no restaurante Morro dos Ventos, com vista para a lindíssima cachoeira Véu de Noiva — uma queda de água estreita caindo de uma altura imensa para o vale verde em baixo — , onde pedimos uma das especialidades da casa, o peixe do Morro, que consiste em peixe apresentado de três formas: cubos de filé de pintado ensopado com mandioca, filé de pintado frito e costelas de pacu fritas, tudo acompanhado por arroz branco, pirão de peixe e farofa de banana. Foi então que a chuva começou a cair.

E chegámos assim à nossa manhã seguinte, na sala do pequeno-almoço a mostrarmo-nos ainda hesitantes mas na realidade já convencidos a seguir Jô pelos caminhos da Chapada.

Esta é uma terra de índios, primeiro, e de bandeirantes e garimpeiros depois, estes atraídos pelo ouro, numa área que se espalhava pela região de Cuiabá até Diamantino. A zona da Chapada, terra fértil, alimentava o vale. Já estamos na zona do Mirante, no início do nosso passeio — precisamente no ponto equidistante entre os oceanos Atlântico e Pacífico e Jô aponta em baixo “a trilha pela qual a Chapada abastecia Cuiabá”.

Era, portanto, terra de homens duros e de escravos (parte deles índios, a outra parte negros) e havia lutas e disputas por causa do ouro, “que aparecia em autênticos tijolos”. A Igreja Santana do Santíssimo Sacramento foi construída, em 1726, precisamente para tentar acalmar os ânimos, e a povoação da Chapada foi crescendo em torno dela. À volta havia as grandes fazendas, que garantiam a alimentação dos colonos. Hoje, quando percorremos de carro estes caminhos em direcção às grutas que vamos visitar, vemos que grande parte da paisagem do cerrado foi já, também aqui, substituída pelos mais monótonos campos de soja, de que o Brasil é um dos grandes produtores mundiais.

De planta em planta

O nosso destino é a caverna Aroe Jari, na Fazenda Água Fria, a 46 quilómetros da Chapada. Jô tem esperança de no caminho vermos animais, mas o que vemos é, na terra molhada, sinais de que eles acabaram de passar há pouco — a nossa guia distingue cada pegada, e vai identificando — e aqui e ali uma saltitante seriema. Chegamos por fim ao pequeno bar de apoio ao nosso percurso, onde pomos as perneiras de pele, indispensáveis para andar pelo meio do cerrado, para nos proteger de cobras e outros animais indesejados. Devidamente equipados, seguimos Jô, que vai lançando gritos para chamar as araras.

O sol já começa a aparecer e percebemos o que Jô quis dizer quando falou do calor que vai ficar. “O cerrado da Chapada tem o maior número de plantas medicinais por metro quadrado do mundo”, diz a nossa guia, enquanto nos vai mostrando. “Este é o douradão, que desmancha pedra nos rins, aqui é a arnica, muito boa para hemorragias internas, esta é a mangaba, uma fruta do cerrado que só deve ser consumida madura, e ali o cajuzinho do cerrado, um caju mais pequeno, aqui tem muruci, fruta muito boa para chupar.” Paramos numa rocha com pequenas reentrâncias redondinhas. “Há 350 milhões de anos a Chapada foi mar, aqui seria um recife de corais.”

E assim, de fruta em fruta, de planta em planta, chegamos a um dos pontos mais bonitos do passeio, a Ponte de Pedra, “a maior do estado e talvez do Brasil”, local sagrado indígena. Percorremos a ponte de pedra até ao final (visto de cima parece que andamos sobre o dorso de um dragão) e abarcamos com a vista toda a região. Lá em baixo, no meio da vegetação, está tudo silencioso. “Quando há bicho grande, sobretudo onça, nenhum outro fala.”

Seguimos viagem, ainda pelo cerrado. Passamos pelo sabugueiro, “que é remédio para o dengue, em banho ou chá”, pela fruta de veado, pequena e doce, boa para comer, pelo pequi, muito utilizado aqui em alguns pratos, pela folha negra Mina, que ganhou o seu nome por causa das escravas negras que vinham do porto de Mina, em África, e que é usada na cosmética e boa para curar sinusite.

E de repente, sem aviso, a paisagem muda, e entramos na mata ciliar. “As árvores do cerrado são retorcidas e baixas, e têm uma raiz que pode ser cinco vezes maior do que elas”, explica Jô. Já aqui, na mata ciliar, as árvores são muito altas, a vegetação é intensamente verde, a humidade é muito superior. Atravessamos frágeis pontes de madeira sentindo-nos versões amazónicas do Indiana Jones. E encontramos coisas que não veríamos no cerrado, como um jatobá, árvore enorme — “são precisas três pessoas para a abraçar” —, e mais à frente uma colmeia de abelhas borá, sem ferrão (não se pense, por isso, que são menos perigosas, porque mordem), e depois uma caninha do brejo, boa para inflamações e para os rins. Um fruto meio comido no chão é sinal de que passou por ali uma cutia, mamífero roedor.

Já saímos da mata ciliar e entrámos novamente no cerrado. De repente, Jô avisa para termos cuidado. Olhamos para o chão e há um monte de formigas em grande actividade. “Muito cuidado, são formigas lava-pé, sobem pelas pernas acima e picam”. Mais à frente, outro perigo, uma palmeira com espinhos, o tucum. “Entra na corrente sanguínea, atenção.”

Jô e os efeitos da água

Este passeio tem um trilho mais curto, de seis quilómetros, e outro mais longo, de onze. Mas estamos com o tempo apertado e optamos pelo mais curto, que muito rapidamente nos conduz até à caverna Aroe Jari. O nome significa abrigo do fantasma na linguagem dos índios bororo e esta é a maior gruta de arenito do Brasil. O percurso que fizemos conduziu-nos até à cénica entrada lateral, uma grande boca por onde a água cai.

Dois pássaros verdes e amarelos saem da gruta, num voo espectacular, lançando grandes gritos, e logo de seguida voltam a entrar. “São as maritacas, vivem lá dentro.” Jô já começou a descer para o interior, avisando que é preciso ter cuidado porque as pedras estão escorregadias. “A caverna de arenito é diferente da de calcário porque não se vêem bem definidas as estalagtites e as estalagmites”, explica, enquanto guia os nossos passos no interior com a ajuda de uma lanterna. “O bom aqui é que pelas pegadas vemos o refúgio dos animais que vêm para cá para dentro.”

No interior desta caverna há um grande lago e por isso ela não pode ser atravessada de uma ponta à outra. As alternativas são a entrada principal, que também não permite avançar muito para o interior por causa da água, e esta entrada lateral. Mas uns metros mais à frente há outra abertura que merece uma visita. “Aqui é a lagoa Azul.” A tal que tínhamos visto na fotografia na Villa Guimarães. Jô pousa a mochila numa pedra e aponta para o interior. “Aqui tem os ninhos das maritacas. Olha lá o ninho naquele buraquinho. Elas estão lá só falando ‘estou aqui, estou aqui!”

A coloração azul do fundo desta gruta é dada pelas micro-algas, muito sensíveis, que aqui existem — e que são a razão pela qual não se pode nadar no interior. “Para vir da entrada da gruta até aqui só com equipamento de mergulho, e se erra o lugar de entrada vai para o fundo e acaba o oxigénio.” Jô gosta de ficar olhando para os efeitos que a água faz nas paredes da gruta. “Se ficar observando aparece cada coisa… olha ali, parece uma pessoa deitada, e na outra, um lobo.”

Temos tempo para mais uma visita, a uma caverna aberta ao público há pouco tempo, a Kiodo Brado, que pode ser atravessada de uma abertura a outra (cuidado para não pisar as fezes de morcegos), com a ajuda de uma passadeira de madeira, e da indispensável lanterna da Jô. A abertura da entrada é muito alta, uma garganta vertical que parece conduzir apenas à escuridão. Aventuramo-nos para o interior. A abertura enorme vai-se tornando uma entrada de luz cada vez mais pequena à medida que avançamos, mas quando já somos inteiramente dependentes do pequeno foco de luz com que Jô vai iluminando o chão e as paredes, surge à nossa frente outra entrada de luz, inicialmente pequena mas que vai crescendo até se transformar numa saída. O espaço por onde andamos não é mais, afinal, do que um sulco longamente escavado pela água, que foi moldando ondulações nas paredes de pedra.

É tempo de regressar. Percorremos, agora mais rapidamente, o caminho de volta, o cerrado, a mata ciliar, novamente o cerrado. E quando o sol já aperta, e o suor já escorre pela testa, avistamos o oásis que é o bar de apoio.

Um erro de cálculo fizera-nos dizer que não queríamos encomendar almoço antes do passeio. Agora estamos profundamente arrependidos. Mas a situação resolve-se. No bar prometem-nos um frango caipira frito para daí a pouco, e no tempo que demora a cozinhar vamos refrescar-nos à cachoeira do Almíscar, que fica a cinco minutos de carro, e tem uma água fresquíssima.

Em cima da mesa espera-nos um gigantesco copo de sumo. Pegamos nos pratos e servimo-nos de frango, arroz, pirão e farofa de banana. Quando terminamos, do frango caipira sobram apenas os ossos.

 

Cuiabá preparada para a Copa

A capital do estado de Mato Grosso foi uma das escolhidas para receber jogos do Mundial de Futebol. E assim, em 2014, Cuiabá deixará de ser a cidade por onde passam os turistas a caminho das paisagens naturais do Pantanal ou da Chapada dos Guimarães e tornar-se-á um destino ela própria. E o que oferece esta cidade onde a temperatura média é de 32º e que é conhecida pelo grande consumo de cerveja (que se explica pelas elevadas temperaturas) e, cada vez mais, também pelo fabrico de cervejas artesanais?

Cuiabá, onde fica o estádio Arena Pantanal que receberá quatro jogos, “deu uma repaginada” geral para receber a Copa e quando a visitámos, em Janeiro, as obras ainda decorriam a bom ritmo, dificultando a vida de habitantes e visitantes. Fundada no século XVIII por bandeirantes que chegaram à região para capturar índios e que ficaram depois de ali descobrirem ouro, Cuiabá atraiu nessa época muitos garimpeiros e riqueza.

Sobrevivem ainda vários edifícios de arquitectura colonial, como o que alberga o Museu da Imagem e do Som de Cuiabá (um dos lugares a merecer uma visita por quem se interessa pela história da cidade), ou o centro cultural SESC Arsenal, situado no antigo edifício do Arsenal de Guerra, onde ficavam armazenadas as armas dos militares de todo o Mato Grosso. Para conhecer os peixes da região, aconselha-se uma visita ao Aquário Municipal.

Mas o principal atractivo de Cuiabá, dizem os que a conhecem bem, é a vida nocturna. A cidade tem centenas de bares e restaurantes e muita da animação acontece em redor da Praça Popular e da Praça da Mandioca. Quem ficar por pouco tempo e quiser visitar uma verdadeira instituição de Cuiabá, deve ir ao Choppão, restaurante fundado em 1974 por Geraldo Barbosa, mineiro de Araxa. Desde essa época que o restaurante tem animado a cidade, sobretudo com o seu rodízio de Escaldado Choppão, uma sopa de tomate com frango e ovo escalfado, que é servida continuamente, até o cliente pedir tréguas. Também o Choppão se declara preparado para a Copa e, garante, será “ponto obrigatório das comemorações” pela noite dentro.

Nos muitos restaurantes da cidade podem-se ainda provar outras especialidades da região (uma gastronomia que mistura as influências portuguesa, indígena e africana), sobretudo os peixes, em pratos como o pacu assado, a mojica de pintado, a moqueca cuiabana, a ventresca de pacu frita ou o caldo de piranha, geralmente acompanhados por farinha de mandioca, pirão e farofa de banana. Para quem preferir carne, há a vaca atolada cozida com mandioca em panelas especiais de ferro, a canjiquinha de milho com costeleta de porco, a galinha com quiabo ou com mandioca, ou o arroz carreteiro, feito com carne seca e acompanhado por feijão e farofa de banana.

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GUIA

Quando ir
Esta é uma região de clima tropical e húmido, com uma temperatura máxima média de 32º. A época da chuva é de Setembro a Maio, sendo Janeiro um dos meses mais chuvosos. De Junho a Agosto as temperaturas são mais amenas e quase não chove. Na Chapada, geralmente a temperatura é ligeiramente inferior à de Cuiabá. A vacina contra a febre amarela é obrigatória para esta região.

Onde ficar
Há várias opções de alojamento tanto em Cuiabá como na Chapada dos Guimarães.
Na Chapada, a Villa Guimarães é um pequeno hotel simpático, com ambiente familiar e uma pequena piscina. (Rua Neco Siqueira, 41, tel.: +55 6533011366; email: pousada_villaguimaraes@hotmail.com).
Em Cuiabá, uma boa opção é o InterCity Premium, moderno, confortável e central (Rua Presidente Arthur Bernadez, 64, Bairro das Goiabeiras, tel.: +55 6530259900; email: reservas@intercityhoteis.com.br).

Onde comer
Na Chapada dos Guimarães, o Morro dos Ventos é uma excelente escolha, não só pela qualidade da comida, gastronomia típica da região, como pela simpatia, e pela magnífica vista para a cachoeira Véu de Noiva (Av. Rio da Casca, 1, Morro dos Ventos; tel.: +55 65 33011030).
Outra opção dentro do mesmo tipo, e com excelente vista, é o Bistro da Mata (acesso pelo quilómetro 2 da MT-251 para Campo Verde; tel.: +55 65 33013483).
Em Cuiabá é indispensável passar pelo Choppão (Praça 8 de Abril, 44, Bairro das Goiabeiras; tel.: +55 6536235005).

O que fazer
Na Chapada dos Guimarães existem várias opções de excursões. A que é descrita no texto é a visita às grutas, mas existe também a trilha das cachoeiras, com visita a seis cachoeiras, ou à Cidade de Pedra, subida a formações rochosas que fazem lembrar as ruínas de uma cidade, e de onde se avista toda a Chapada. Os percursos devem ser feitos com o acompanhamento de um guia de turismo (excepto a ida ao mirante de onde se vê a cachoeira Véu de Noiva, no Morro dos Ventos). Existem muitos guias que fazem também visitas ao Pantanal e a outros pontos de interesse na região. Fica o contacto de Jolenil Martins, a Jô que acompanhou a nossa visita – tel.: +55 65 99511346; email: jolenil@hotmail.com.

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