Estamos num morro do Rio de Janeiro, de frente para o mar, num dia de calor. Ouve-se bossa nova como música de fundo e sopra uma brisa agradável na varanda do Favela Inn, um albergue na comunidade Chapéu Mangueira. Na parede, por cima do frigorífico, há um pequeno quadro, que passa quase despercebido aos visitantes, bem mais impressionados com a vista de mar. Mas, quase no final da conversa, Cristiane de Oliveira olha para ele com um sorriso. “Gosto muito desse quadro. Tem praia, asfalto [zonas ricas], Cristo Redentor e favela. A favela faz parte da paisagem”, diz, orgulhosa, a gerente do hostel que já se tornou uma das atracções desta favela pacificada desde 2009, a quarta a receber uma Unidade Pacificadora de Polícia (UPP).
Cristiane já foi cabeleireira, auxiliar de escritório no Ministério de Agricultura, funcionária numa barraca de praia e já ficou em casa a tomar conta dos quatro filhos. Agora é uma empreendedora. Gere o Favela Inn, em sociedade com o marido e o cunhado. Formaram uma empresa e querem ajudar a trazer economia (riqueza) para dentro de uma comunidade ainda muito pobre.
As favelas, quase sempre notícia por maus motivos, estão a tentar entrar no circuito turístico do Rio de Janeiro. Até já existe um site a promovê-las (www.guiadasfavelas.com). Da Rocinha ao Complexo do Alemão, passando pelo Cantagalo e Vidigal, oferece-se um pouco de tudo: bailes, aulas de samba e de funk, feijoadas e churrascos, capoeira e até exposições de grafitti.
Numa manhã quente do Rio, fomos espreitar o Morro da Babilónia/Chapéu Mangueira, a dois passos de Copacabana. No calçadão da praia do Leme, já há muita gente a correr e a passear quando começamos a subir a encosta. Basta andar algumas centenas de metros e entramos noutro mundo. Wagner Luiz, mais conhecido como Vaguinho, espera-nos ao cimo da rua. À esquerda, é a comunidade da Babilónia, à direita a Chapéu Mangueira. Moram aqui dez mil pessoas, diz Vaguinho, homem alto, forte, sorriso franco, vestido com calções claros, uma t-shirt do Favela Inn e sapatilhas sem meias.
Com boné na cabeça e água na mão, iniciamos a subida para o morro da Babilónia, que tem um trilho até à pedra do Urubu, com vista magnífica da cidade. Antes, o esgoto corria pela ladeira abaixo. Agora já há saneamento, embora ainda se sintam no ar muitos maus cheiros. Há obras por todo o lado, na estrada e em casas, construídas para alojar pessoas da favela. Muitos dos caminhos de terra são agora em cimento, abrindo caminho aos moto-táxis, os únicos que sobem à favela.
O caminho é sempre a subir. Passamos à porta de um pequeno posto, azul e branco, onde está instalada a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), formada por 170 agentes. Neste passeio não vimos nenhum polícia. “A gente não viu, mas eles vêem a gente. Eles colocam-se em sítios estratégicos”, explica Vaguinho, que está contente com a nova vida da comunidade. Em favelas como a Rocinha, têm ressurgido problemas entre traficantes e polícia. Na Babilónia e Chapéu Mangueira, as coisas estão mais calmas. “Nada é perfeito. O tráfico não acabou, mas a pacificação acabou com a ostentação de armas e com a bala perdida. Nós, os moradores, é que temos de manter isso”, diz Vaguinho, contando que em tempos a irmã foi baleada à porta de casa. A vida dele, porém, “sempre foi pacificada”.
A polícia trouxe mais alguma tranquilidade, a Bolsa Família (um subsídio) trouxe algum rendimento, mas só isso é insuficiente. “Não adianta só pacificar e dar Bolsa Família. Tem de acompanhar as pessoas. Tem mãe que pensa que quanto mais filhos, melhor”, queixa-se o nosso guia, defendendo que o Estado tem de estar mais presente, especialmente na educação: “Tem de trazer projecto. As crianças continuam vendo arma, seja de polícia ou de outros. Então, se não tiver projecto para tirar as crianças do meio do caminho, vai piorar.”
Música e cinema
Um passeio pela favela é algo mais do que um passeio turístico. Vaguinho quer mostrar que precisam de atenção. “A gente ficou muito tempo abandonado pelo poder público”, diz, concentrando as suas atenções nas crianças: “Tem meninos que não estudam, porque falta auto-estima aos pais. Por isso, é preciso acompanhamento das famílias.” “Dar estrutura é mais importante do que dar dinheiro, porque chega-se lá em baixo [às lojas] e o dinheiro acaba. Educação ninguém tira”, diz, enquanto passamos pelo bar montado por um norueguês, que à noite organiza festas de pagode, com o Corcovado no horizonte.
As favelas não têm propriamente atracções turísticas, nem locais históricos. Mas têm muitas estórias. A comunidade de Santa Marta agarrou-se a Michael Jackson, que em 1996 subiu o morro para gravar o vídeoclip da música They Don’t Care About Us. Aqui, na Babilónia, há uma referência cinematográfica. A favela foi um dos locais de filmagens de Orfeu Negro, que venceu a Palma de Ouro em Cannes (1959) e o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro (1960) — um filme de Marcelo Camus, a partir de uma peça de Vinicius de Moraes e com música de Tom Jobim.
Continuamos a subir, o calor aperta. Acaba-se o cimento e começa o trilho de terra, debaixo de árvores, numa zona de protecção ambiental. Fica um pouco mais fresco. Parte desta floresta no topo do morro é zona militar. Foi aqui que, no século XVIII, os portugueses construíram um forte para vigiar a baía de Guanabara. Depois de andarmos mais um pouco, chegamos a um miradouro, com vista para Copacabana. Um postal ilustrado da cidade.
O jornalista e escritor Zuenir Ventura costuma dizer que no Rio de Janeiro a melhor vista é dos pobres, porque as favelas ficam no morro, enquanto a classe alta mora em frente à praia. O miradouro sobre Copacabana é a prova disso e o mesmo acontece mais à frente na caminhada, quando chegamos ao topo da montanha, onde está a Pedra do Urubu. “É a pedra do Flamengo”, brinca Vaguinho, numa referência ao facto de o urubu ser o símbolo do maior clube de futebol do Brasil, o seu clube, pois claro.
Os urubus planam por cima do morro, com uma vista fabulosa para a praia de Botafogo e o Pão de Açúcar. Vemos todos os contrastes do Rio: a praia e a montanha, os arranha-céus e as favelas. “Nunca tinha visto o Pão de Açúcar deste ângulo”, diz Cristine, uma brasileira que nasceu no Rio e mora em França. “Antes ninguém subia cá”, diz ela, que foi ao morro por sugestão de uma amiga.
É hora de começar a descer. “Quem não conhece a favela pensa que aqui só tem bandido e gente que não presta”, diz Vaguinho, enquanto passamos por um pequeno campo de futebol em terra batida, onde cães descansam à sombra.
Saímos da zona florestal e descemos por escadas, no meio de casas. Dizem-nos que há cada vez mais estrangeiros a viver nas favelas. “Essa casa aí é de um estrangeiro”, aponta Vaguinho. Batemos à porta. Aparece um rapaz branco, de calções. Chama-se Matisse Bonzon e vive aqui há dois meses. Trabalha no Meu Rio, uma rede mobilizadora de cidadãos. Escolheu morar na favela por várias razões: “O astral é bom, a vizinhança é simpática e o aluguel é mais barato do que no asfalto”, diz este franco-brasileiro de 25 anos. Único problema: “Tem de gostar de subir escada”, brinca, antes de se retirar, porque tem pressa para voltar ao trabalho.
A maioria das casas é em tijolo e muitas estão inacabadas, mas vêem-se centenas de antenas parabólicas. Vaguinho conta que antes havia muito “gato”, o termo utilizado no Brasil para as ligações ilegais de electricidade, televisão ou água. “Agora as pessoas pagam as contas”, diz, revelando que a empresa de electricidade trocou os frigoríficos velhos por novos e dá desconto a quem entregar lixo reciclável, sejam latas de refrigerantes, garrafas de plástico, papel ou óleo de cozinha. Graças à reciclagem, há mais de um ano que a família dele não paga electricidade.
Na descida, fazemos mais uma paragem para conhecer uma pessoa: Marcos Rogger, um artista foto-plástico que veio da Bahia para o Rio. Marcos brinca com o sotaque português, antes de, a sério, explicar por que vive há dois meses na favela: “É na comunidade que se conhece o Rio. O desavisado fica no hotel e não tem contacto com o verdadeiro Rio”, argumenta este mulato, um amigo da família do Favela Inn, onde costuma fazer caipirinhas.
Feijoada sustentável
Mais um pedaço de caminhada e chegamos ao Favela Inn, um modesto prédio, transformado em albergue. A fachada de tijolo foi colorida pelo artista plástico Coco Barçante, distinguindo-o dos prédios em redor. A ideia de fazer um hostel foi de um guia francês, que costumava trazer algumas pessoas para conhecer a comunidade. Vaguinho e Cristiane tinham uma barraca na praia, onde alugavam cadeiras e vendiam bebidas, e de vez em quando mostravam a favela aos turistas, com samba e tudo. “Um dia um grupo perguntou se tinha lugar para dormir, depois do samba e da caipirinha”, explica Cristiane. O cunhado tinha alguns quartos que alugava para famílias e assim o prédio foi transformado num albergue, em Novembro de 2010. Foi o segundo na comunidade, onde agora há 15 hostels, a maioria de estrangeiros.
Em baixo, há seis quartos, com três camas cada — a dormida custa 55 reais (17 euros) por noite/pessoa. Em cima, a laje (varanda) foi transformada numa sala e kitchenette, onde os hóspedes podem cozinhar. A decoração é barata e ecológica: uma porta de vidro virou balcão da cozinha, o telhado de amianto foi trocado por outro feito de pacotes de leite e garrafas, canas de bambu formam uma das paredes da sala e garrafas servem para o mesmo efeito na escadaria. Os candeeiros também são de plástico reciclado.
O hostel mudou tudo na vida deste casal. Vaguinho deixou a praia. “O dia tem 24 horas: oito para trabalhar, oito para descansar e oito para estar com a família. Na praia, você sai de manhã e chega em casa à noite. Não está com a família. Não vive”, diz, ajeitando o boné na cabeça. “Achei melhor estar trabalhando, mas junto com a minha família. É um projecto que está no meu sangue e estou a trabalhar dentro da minha comunidade.”
A vida de Cristiane mudou ainda mais. Deixou a vida doméstica e tornou-se gerente. Fez vários cursos para empreendedores, aprendeu gerir os fluxos de caixa, recebeu lições de compra e venda. Um dos cursos chamava-se “Sei controlar o meu dinheiro”, que é o mais difícil para alguém habituado a receber salário e que de repente passa a ter dinheiro na mão todos os dias. “Era complicado”, diz a gerente, de vestido e havaianas.
A formação também ajudou a aproveitar melhor os alimentos. “Agora fazemos uma feijoada sustentável. Por exemplo, eu fazia couve, mas o talo ia para o lixo. Agora uso para uma farofa vegetariana. A casca de laranja vira uma bala cristalizada para tomar com café. Com abacaxi, que é a sobremesa, usamos a casca para fazer suco e do suco fazemos um doce. Ou podemos fazer chá com a casca, que é antioxidante”, explica Cristiane, falando de um antes e depois na sua vida.
“Antes servia feijoada e a gente perdia dinheiro, porque comprava a mais. Estávamos pagando para trabalhar. Agora sabemos as porções necessárias para não faltar, mas também para não desperdiçar”, diz a sócia do hostel, que no dia seguinte à visita da Fugas ia cozinhar uma feijoada para o ex-futebolista francês Eric Cantona.
Pelo Favela Inn, passam brasileiros e estrangeiros (na mesma proporção). “Sem sair da minha comunidade e do meu país, conheci pessoas de várias nações, vários idiomas, culturas muito diferentes. Essa troca de informação é muito rica”, afirma Cristiane, ansiosa por aprender inglês — a filha mais velha também já está a aprender.
Sentada na varanda, com vista para o mar, Cristiane explica como o hostel mudou a sua vida. Uma das diferenças foi ter criado uma empresa, tornando-se uma micro-empreendedora. É a favela a entrar no mundo formal. “Quem tinha birosca [pequena janela na parede], virou mercearia. Quem tinha casa de aluguel, virou hostel. Quem tinha bar, virou restaurante. Agora já estamos nos guias do Rio de Janeiro”, diz Cristiane. “Agora no banco já me olham com outros olhos”, acrescenta Vaguinho.
A palavra favela está normalmente associada a algo negativo. Cristiane e Vaguinho não tiveram medo de a usar no nome do albergue. Porque há um espírito comunitário no projecto. “Minha sogra faz comida, meu esposo faz o tour, eu administro”, diz Cristiane: “É como antigamente, em que as mães saíam para trabalhar e as vizinhas tomavam conta dos filhos. Você precisa de alguma coisa e um vizinho te dá. A gente quer que o Favela Inn seja isso, um leque de oportunidade, em que um depende do outro, como se fosse corpo humano.”
Outra das atracções da Chapéu Mangueira é o Bar do David. Cristiane indica-nos o caminho, descendo as ruas estreitas da comunidade. Antes não havia nomes de ruas, agora já vemos placas. Uma delas tem o nome de Lúcio de Paula Bispo, avô de David e um dos fundadores da Faferj (Federação das Associações de Favelas do Rio). “O meu avô lutou muito contra a remoção das favelas”, diz David, enquanto nos mostra a ementa.
“Sirvo a mesma comida que faço em casa”, afirma David, um pescador profissional, mestre de bateria em escola de samba e agora dono de um dos botecos mais na moda do Rio, premiado em vários concursos. Provamos linguiças panadas, umas interessantes batatas fritas de mandioca e um delicioso feijão tropeiro.
David sente que as pessoas estão com mais curiosidade em saber como é a vida na favela. Já deu entrevistas para o New York Times, Le Figaro, BBC e Al Jazeera. “É um bom momento para montar empreendimento”, diz o dono do boteco, embora realce que houve “especulação imobiliária” e “a vida na favela ficou mais cara”.
O Mundial 2014 e os Jogos Olímpicos 2016 ajudam, mas ninguém quer criar ilusões. “Não falo em Copa, nem Rock In Rio, nem Olimpíadas. É um momento bom, mas é um dinheiro momentâneo”, diz Cristiane. “Os meus filhos comem todos os dias”, acrescenta a dona do hostel, que acima de tudo espera que esses eventos e a pacificação ajudem a acabar com o medo e o preconceito em relação às favelas, que para esta brasileira nunca foram o que por aí se diz: “Isto não era bang bang todo o dia. Não era uma faixa de Gaza. Se fosse, nenhum ser humano moraria aqui, ou fazia família aqui. E tem gente morando cá há 70 anos.”