Passou a vida a ver passar comboios, mas nunca tinha entrado neste. Durante 60 anos, o Comboio Presidencial esteve ao serviço dos chefes de Estado e a suas viagens estavam sempre envoltas em muitas precauções e algum secretismo. A subida a bordo estava reservada a um grupo muito restrito de ferroviários, do qual Bartolomeu Falcão nunca fez parte. Este antigo trabalhador dos caminhos-de-ferro entrou na composição com interesse redobrado. “Não imaginava como isto era por dentro”, conta.
Ferroviário durante 42 anos, foi um dos 150 passageiros a bordo da primeira grande viagem do Comboio Presidencial pela Linha do Norte, desde a sua recuperação integral, que na quinta-feira ligou o Entroncamento a Lousado, em Famalicão. O neto de Bartolomeu foi o segundo classificado num concurso de fotografia promovido pela Fundação do Museu Nacional Ferroviário (FMNF) e tinha direito a trazer mais um acompanhante. Convidou o avô, que trabalhou no serviço de sinalização quase toda a vida na grande cidade ferroviária portuguesa.
“A viagem é muito boa”, diz Bartolomeu, elogiando o conforto. Este foi sempre “um comboio especial”, lembra. Para os ferroviários, era uma espécie de mito, com o qual os contactos eram reduzidos, obrigando a trabalho redobrado à sua passagem. Aqui viajaram os Presidentes da República até 1970 e algumas comitivas ministeriais e chefes de Estado estrangeiros, como a Rainha de Inglaterra. “O que se conta é que a última viagem que ele fez foi para o funeral do Salazar”, acrescenta o ferroviário do Entroncamento. Nessa ocasião, este comboio viajou entre uma estação improvisada em frente ao Mosteiro dos Jerónimos e Santa Comba Dão, com uma carruagem extra onde ia a urna do ditador.
Essa foi, de resto, uma das últimas viagens deste comboio que depois entrou num processo de degradação. A FMNF teve de recolher os seis veículos que formam este comboio em vários depósitos de material ferroviário em todo o país. O material encontrava-se em muito mau estado. “Algumas delas estavam mesmo esventradas”, conta Maria José Teixeira, que coordena o projecto na fundação.
O Comboio Presidencial entrou ao serviço da República em 1910, aproveitando carruagens usadas pelo Comboio Real, adquiridas na fase final da monarquia, em 1890. Estas sofreram uma renovação profunda no final dos anos 1930, tendo sido acopladas mais duas carruagens, um furgão e a carruagem do Presidente, comprada à Alemanha nazi.
Ali viajaram Presidentes da República do Estado Novo, Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás, na maior parte das vezes entre Lisboa e o Porto, ou, por vezes, rumo a Coimbra. Mas não se sabe ao certo quantas vezes a composição percorreu a Linha do Norte. “Não foi possível perceber com que frequência é que o Comboio Presidencial fazia esta linha”, conta Maria José Teixeira. Desde 2009 que a fundação vem trabalhando neste projecto, localizando as peças e fazendo investigação histórica. Esse trabalho permitiu concluir que este “era um comboio bastante vigiado”, mas poucas foram as cartas impressas encontradas que permitissem saber quais as rotas utilizadas.
O que se sabe, com certeza, é que a viagem desta quinta-feira foi a primeira em direcção ao Norte desde o processo de reabilitação do Comboio Presidencial, terminado no ano passado pela FNMF nas oficinas da EMEF em Contumil, no Porto. Em Dezembro, a composição já tinha viajado entre Lisboa e o Entroncamento, mas este foi o seu primeiro grande teste. Além de dar a conhecer o veículo renovado, a incursão pela Linha do Norte serviu também para aferir a capacidade do material em resistir à viagem, bem como os aspectos técnicos da operação.
As carruagens do Comboio Presidencial ainda brilham, com as madeiras renovadas às quais foi puxado o lustro e as cores que se acredita serem as originais recuperadas e bem vivas nas paredes e nas alcatifas. A carruagem-restaurante vai cheia de gente à conversa, sobretudo aficionados dos comboios que usam termos técnicos acerca desta composição e das locomotivas que estiveram ao serviço do Comboio Presidencial. Ao longo do comboio havia gente a gravar sons, a filmar a viagem, muitos a fotografar o interior.
No salão dos ministros, o verde é a cor dominante no aveludado estofo das poltronas que se encontram à volta de uma mesa, no centro da composição. É ali que encontramos dois guitarristas, tocando viola clássica e guitarra portuguesa, que vão entretendo os viajantes com música.
A Câmara de Famalicão, parceira desta viagem, decidiu fazer deste um comboio das artes. A bordo houve também recriações históricas feitas por dois actores que interpretaram as personagens de Camilo Castelo Branco e Artur Cupertino de Miranda, duas figuras históricas com ligação à cidade.
Depois de quatro horas, o comboio chega a Lousado, localidade onde se afastam a linha de Guimarães e a linha do Minho – que liga o Porto à Galiza e de onde deriva o ramal de Braga. É aqui que se situa o mais bem conservado dos museus ferroviários portugueses, onde uma banda de música recebeu o comboio, como as descrições do século XIX contam ter sido feito repetidamente nas viagens inaugurais das linhas férreas nacionais.
Era este o destino da viagem, que poderá tornar-se frequente. “Nós gostaríamos que assim fosse”, confessa o presidente da Câmara de Famalicão, Paulo Cunha. Desde o início que foi esse o propósito da recuperação integral do Comboio Presidencial, que custou 1,6 milhões de euros – co-financiados por fundos comunitários e pelo Turismo de Portugal, que o considerou um projecto estratégico em termos de criação de novos produtos turísticos. O comboio recuperado vai estar exposto no Museu Ferroviário do Entroncamento, mas é passível de ser usado em passeios turísticos ou culturais como este, ao longo das linhas com via larga da rede férrea nacional.
A FNMF está agora a estudar os vários modelos de negócio possíveis para a exploração comercial do comboio enquanto produto turístico, que podem passar por parcerias com autarquias como esta com Famalicão, com a CP ou empresas privadas. Para já, há mais duas viagens agendadas: em Maio, entre o Entroncamento e Castelo Branco, e, em Junho, em direcção ao Sul, com destino a Faro. Ao contrário do que aconteceu durante o Estado Novo, agora qualquer um poderá subir a bordo.