Fugas - Viagens

Pontevedra é muito mais do que um caminho

Por João Ferreira Oliveira (texto e fotos)

Santiago de Compostela, Corunha, Vigo ou Ilhas Cíes. Todos estes nomes vêm à frente de Pontevedra quando se fala da Galiza. Mas há muito para ver e viver nesta pequena cidade espanhola. Mesmo não sendo o mais fácil dos destinos de vender.

Em O Lobo de Wall Street, filme de Martin Scorsese que retrata a história de Jordan Belfort, um corretor nova-iorquino que construiu um império à custa de fraudes, há uma cena em que este pede a alguém que lhe venda uma caneta. Não interessa se a caneta é boa ou não, apenas tem que ser suficientemente persuasivo de forma a conseguir vendê-la. Eu, que tenho tanto de vendedor como de Leonardo DiCaprio, sinto que Pontevedra é a minha caneta espanhola e esta é a oportunidade de a vender.

Tarefa difícil, apesar de tudo. Se Jordan Belfort prometia este mundo e o outro aos seus clientes, garantindo-lhes que a Bolsa seria a porta de entrada no paraíso, ninguém minimamente sensato poderá apresentar Pontevedra como o maior dos tesouros galegos ou o último dos segredos de Espanha. Está longe de ostentar uma história e um património arquitectónico de cidades como Salamanca, Alhambra, Cáceres ou Toledo (apenas para citar alguns dos nomes classificados como Património Mundial pela UNESCO); não possui a alma de Santiago, a movida de Vigo nem o charme da Corunha; não tem, em suma, uma bandeira com que acenar aos turistas, por mais que se auto-intitule de capital das Rias Baixas e seja oficialmente capital de província. A pergunta é, por isso, tão óbvia quanto inevitável: porquê visitar Pontevedra?

Nada como pedir ajuda a um vendedor encartado.

- Não é nada fácil descrever esta cidade, não é nada fácil. Digamos que se fosse uma mulher nunca seria uma senhora vistosa, daquelas modelos que fazem parar o trânsito, mas alguém que nos vai conquistando, pouco a pouco. Um dia damos por nós e apercebemo-nos de quão bonita é esta mulher. Qué tal?

A analogia está longe de ser tão fresca como os mariscos que todas as manhãs chegam à sua banca, em pleno mercado municipal - espaço com mais de meio século de vida renovado em 2003 por César Portela, homem da terra galardoado com o Prémio Nacional de Arquitectura Espanhola em 1999 -, já deve ter sido mesmo usada para descrever inúmeros destinos um pouco por todo o mundo, mas encaixa que nem uma luva nesta cidade galega. Numa época em que toda a gente parece procurar os extremos, o tudo ou o nada, o campo ou a cidade, a aventura ou o sossego, Pontevedra é o meio termo que cada vez mais parecemos fazer questão de valorizar.

Se fosse literatura, se fosse um livro, seria um long seller, uma daquelas obras que não entra nos tops nem ornamenta as vitrinas das livrarias mas que, pouco a pouco, vai encontrando o caminho dos seus leitores.

Cidade praça

Há um lado pessoal nesta história, está bom de ver. Ninguém tenta vender uma cidade que não é sua e Pontevedra já é um bocadinho minha. É a cidade espanhola onde estive mais vezes, onde fui mais bem tratado – e ninguém gosta de ver um local que tão bem nos recebeu ser olhado com indiferença pela maioria dos compatriotas, que por norma a encaram como um mero ponto de passagem do Caminho Português de Santiago.

Era também assim que eu olhava para a cidade há cerca de dez anos, até ter conhecido Alfonso. Fomos vizinhos e tornámo-nos amigos durante o ano em que estudou e viveu em Lisboa. Já Alfonso tinha regressado a casa quando aproveitei uma ida ao Norte do país para lhe fazer uma visita surpresa. Juntei um grupo de amigos e convenci-os de que Pontevedra seria o destino ideal para passar um sábado à noite. Que tinha lá um amigo, que o meu amigo tinha um bar, e toda a gente sabe que aos vinte e poucos anos conhecer o dono de um bar, ainda por cima em Espanha, é argumento mais do que suficiente para mover até as pedras da calçada.

Nada correu como previra. Alfonso estava a passar uma temporada em Barcelona, o bar encerrado para balanço, a verdade é que a noite acabou de manhã e voltámos a casa com a certeza de termos feito uma descoberta improvável.

- É parecido com Guimarães -  lembro-me de alguém ter dito.

É um defeito comum a várias gerações, compararmos o que vemos ao que já conhecemos, ajuda-nos a manter o sentido de orientação. Acabaria por regressar à cidade uma série de vezes ao longo destes dez anos – de dia, com outros olhos, com idade e distanciamento suficientes para perceber que Guimarães tem um património com que a cidade galega dificilmente conseguirá ombrear, apesar de mais populosa (cerca de 52 mil “contra” 82 mil habitantes) –, ainda assim, ainda hoje não consigo deixar encontrar algumas semelhanças entre ambas. E quem diz Guimarães diz Viana do Castelo ou a parte antiga de Braga. Além da arquitectura, da História, da proximidade geográfica, do tempo e da língua, parece haver um fio sentimental que une estas cidades e as torna muito mais próximas entre si do que com as respectivas capitais.

Mas depois há os finais de tarde. A vida de rua. É aí que Pontevedra bate as cidades nortenhas aos pontos. É aí que Espanha bate Portugal aos pontos. Naquele período morto que os portugueses passam na estrada e os espanhóis vivem na rua. (Não haverá mais comparações ibéricas a partir deste parágrafo). Uma constatação também ela pouco original e mil vezes repetida, mas uma realidade demasiado forte para que possa ser ignorada. Sobretudo numa cidade de província – e é sabido que nas cidades de província é suposto nada acontecer.

Se à noite todos os corpos parecem caminhar em direcção à calle Charino, rua em que há quase um bar em cada porta, a mesma onde me perdera há cerca de uma década, ao final da tarde todos os caminhos vão dar às praças do centro histórico.

- Diz-me um sítio onde nos possamos encontrar para comer umas tapas ao final da tarde, proponho a Alfonso no primeiro dia desta minha nova incursão pela cidade. Era essa a condição. Ele trabalhava, eu vivia como um espanhol na sua própria casa.

- Escolhe um café no centro e depois envia-me uma mensagem a dizer onde estás, respondeu-me.

- Um qualquer?

- Sim, um qualquer. Para tapear os bares do centro são todos bons.

- Tens a certeza?

- Tenho.

Assim fiz e escolhi o Rianxo, na Plaza de Leña.

- É fantástica, esta praça, não é? Dá vontade de levá-la para casa.

Desta vez as palavras vêm em língua portuguesa: Maria José e António, dois lisboetas com quem partilho a esplanada por mero acaso. Estão apenas de passagem, claro está.

“Vimos à Galiza pelo menos duas vezes por ano, uma a Santiago de Compostela e outra a Baiona, temos lá amigos, mas esta é a primeira que passamos por Pontevedra. Íamos na auto-estrada, vimos a placa e dissemos, porque não?”

Não sei se chegaria ao ponto de levar a Plaza de Leña para casa, mas seria nesta praça que procuraria casa se por qualquer razão ou acaso acabasse a viver aqui. Uma pequena praça onde, na Idade Média, se comercializava toda a lenha que aquecia e alimentava as habitações e cozinhas da cidade. A praça mais fotografada de Pontevedra, rezam os guias. O lugar perfeito, mais do que um lugar comum. Casas em granito com varandas em madeira, balcões recheados de flores, arcadas, esplanadas com cadeiras em madeira e um cruzeiro do século XVI bem no centro, no coração da praça. As mais distintas características da cidade parecem ter sido reunidas aqui.

É também aqui que se situa um dos seis pólos do Museu de Pontevedra, que reúne cerca de 16 mil peças que narram a história da Galiza ao longo dos séculos, por entre pinturas, esculturas, moedas, instrumentos musicais ou  objectos arqueológicos. Entre eles uma pequena réplica do Santa Maria, embarcação que levaria Cristóvão Colombo a descobrir a América e que, segundo alguns historiadores, terá sido construído nos estaleiros da cidade.

Deveria ter começado a vender Pontevedra por aqui. Pelas praças. Ao contrário de outras cidades espanholas, aqui não há uma grande praça para onde todas as artérias parecem confluir, mas sim várias praças, pequenas praças, um sem-número de praças como que convidando cada pessoa ou grupo de amigos a adoptar a sua.

“Não há habitante que não tenha a sua praça favorita.”

Plaza da Ferrería, Plaza da Verdura, Plaza de Méndez Núñez, Plaza de Curros Enríquez,  Plaza Alonso de Fonseca, Plaza de España, Plaza de San José, Plaza de la Peregrina ou Plaza del Teucro, uma das mais charmosas e referenciadas, não só pela sua dezena  de laranjeiras mas também pela lenda que lhe está a associada. Reza então a quase sempre mui sensata mitologia que Pontevedra foi fundada por Teucro, guerreiro grego que depois da Guerra de Tróia viajou para Ocidente e terá fundado a cidade.

São também estas praças que se enchem de gente nas inúmeras festas e festivais organizadas ao longo de todo o ano, com a incontornável Festa da Peregrina, (padroeira da província) a reclamar para si o estatuto de festa maior. Uma celebração que começa no segundo domingo de Agosto e que durante uma semana transforma esta pequena cidade num gigante parque de tradições, com concertos de música popular, touradas ou desfiles de carros alegóricos. A Festa dos Maios, que decorre na Praça da Ferrería, ou a Feira Franca, uma grande feira medieval que tem lugar na primeira semana de Setembro, são outros dos momentos emblemáticos, mas é o Festival de Jazz e Blues que tem colocado Pontevedra na rota dos festivais de música a nível internacional. Um festival que tem lugar em pleno Verão, durante o mês de Julho, e que é um verdadeiro bálsamo na sua vida cultural, emprestando-lhe também um toque mais contemporâneo e cosmopolita. Até porque todos os concertos são ao ar livre e gratuitos. Este ano comemorará a sua 22.ª edição e, como vem sendo hábito, haverá jam sessions e workshops com artistas e professores consagrados.

- Já deve haver pouca gente que não goste de jazz e blues, nesta cidade. Pelo menos uma semana por ano – confessa-me Alfonso, por entre mais uma cerveja e um pedaço de tortilha.

- Voltas cá nessa altura?

A ilha das esculturas

Apesar de não possuir uma obra icónica, também a coerência arquitectónica da cidade acaba por surpreender, com construções em pedra e um conjunto de igrejas em excelente estado de conservação. A Igreja de São Francisco, de estilo gótico, construída nos séculos XIV e XV, a Basílica de Santa María la Mayor, uma das jóias mais valiosas da arquitectura gótica galega, datada do século XVI, a Igreja da Peregrina, capela do século XVIII, ou ainda as Ruínas de Santo Domingo, convento fundado em 1281 onde actualmente funciona mais um dos pólos do Museu de Pontevedra, são algumas das que mais se destacam. Mas o que mais surpreende, por mais vezes que se visite a cidade, são as suas inúmeras esculturas.

Tal como as praças, tal como as suas ruas ou obras arquitectónicas, não parece haver nenhuma que se sobreponha , mas há em quantidade e diversidade suficiente para que, também neste campo, habitantes e visitantes possam escolher a sua. Esculturas quase sempre em pedra, de dimensões relativamente reduzidas e espalhadas por todos os cantos, do mais óbvio ao mais improvável. A estátua de Valle Inclán (praça Méndez Núñez), dramaturgo, romancista e poeta galego que marcou a literatura espanhola nos finais do século XIX e inícios do século XX, ou a escultura "La Tertulia" (praça de San José), representativa da tal forma de estar e viver espanhola, são apenas dois dos bons exemplos. Mesmo que, aqui e ali, algumas delas sejam vandalizadas, o governo local parece não desistir deste cartão de visita.

Levam a “obsessão” tão a sério que, em 1999, decidiram mesmo construir uma “Ilha das Esculturas”. Um espaço de 70 mil m2, nas margens do rio Lérez, numa área declarada como lugar de importância comunitária e incluída na Rede Natura 2000, onde os patos, os cisnes e as garças dividem as atenções com doze esculturas em granito. O primeiro projecto no país de transformação da paisagem através da arte, garantem os responsáveis. Entre as várias obras destaca-se a do português José Pedro Croft. É dele uma pequena casa em granito sem portas nem janelas que parece nascer da terra, no meio das árvores, como uma árvore, como se também ela fizesse parte da natureza e não apenas da paisagem.

É para aqui que os habitantes vêm praticar desporto, mergulhar, fazer piqueniques, assim que o nem sempre bem-disposto tempo galego o permita. É também aqui que sempre me despeço da cidade. Um destino que, terminado o texto, concluo pela enésima vez não ser o mais fácil de vender (as Ilhas Cíes, ali tão perto, pequeno arquipélago que, em tempos, viu o jornal britânico The Guardian classificar uma das suas praias como a mais bonita do mundo seria, certamente, um destino bem mais fácil de adoptar e divulgar), mas, é sabido, há locais que não nos cabe a nós escolher. São eles que nos escolhem a nós.

Voltarei no Verão, sim. Quem sabe não encontrarei mais alguns portugueses?


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Guia prático

Quando ir
Pontevedra rima com Primavera e Verão. Não só porque as temperaturas estarão bem mais convidativas (este ano foi um dos mais chuvosos das últimas duas décadas), mas porque durante estas estações haverá eventos um pouco por toda a cidade. A Festa dos Maios, que terá lugar no dia 1 de Maio, o Festival Internacional de Jazz e Blues, que no mês de Julho cumprirá a sua 22.ª edição, e as Festas da Peregrina, a decorrer na segunda semana de Agosto, são apenas três das opções.

Como ir
Situada a 84km de Caminha, 170 m do Porto ou a 473km de Lisboa, Pontevedra é uma cidade a que, por norma, se chega de carro. Saindo da cidade Invicta basta seguir pela A3 em direcção a Valença, continuar para Vigo sem sair da auto-estrada e depois seguir as indicações para Pontevedra. Chegar a Vigo de comboio (cidade situada a cerca de 30km de distância) é também uma boa opção. Há ligações diárias a partir do Porto. Santiago de Compostela fica a 61km e Madrid a 615km.

Onde comer
Sem ser considerada uma capital gastronómica por excelência, dificilmente alguém sairá decepcionado com a cozinha local. Das tapas a pratos mais tradicionais (sobretudo peixe e marisco), há opções um pouco para todos os gostos. Se há cidades em que os restaurantes do centro estão um pouco inflacionados e desvirtuados, Pontevedra será um bom exemplo do contrário, sobretudo no que às tapas diz respeito. Em pleno centro histórico é difícil não encontrar uma esplanada com uma boa tortilla, uns calamares bem fritos ou os inevitáveis pimentos Padrón que, recorde-se, são provenientes de uma pequena localidade galega com o mesmo nome. 

São também alguns os locais mais modernos que fazem uma abordagem mais contemporânea, mas sem perder a essência, como o La Fuga del Blas, na rua Padre Luis, 3.  O restaurante A Punto, na Rua Nova de Arriba, 7, é outro dos bons exemplos.

Quem quiser comer mais do que tapas, no centro histórico, e não tiver grande paciência para escolher ou consultar guias, o melhor é dirigir-se à bonita Plaza de la Leña. Eirado da Lena, Rianxo, Casa Filgueira ou A Trigueira, qualquer um destes nomes é altamente recomendável. Um pouco mais afastado do centro, mas com menus e preços bem convidativos, fica o restaurante Alcrique (Jose Casal Bajo, 7). Tem menus a menos de dez euros e uma saborosa cozinha entre o tradicional e o contemporâneo.

Onde ficar

Este será, porventura, um dos defeitos maiores da cidade. Não é que não haja hotéis ou camas disponíveis, mas não abunda a oferta termos de hostels ou pequenos hotéis de charme e que se enquadrariam perfeitamente no ambiente e arquitectura da cidade.

O Hotel Restaurante Rúas (Calle Sarmiento, 20), entre a já mil vezes referida Plaza de la Leña e a Plaza da Verdura, o Hotel Rías Bajas (rua Castelao, 3) a 100 metros do centro histórico, e o Boa Vila (rua Real, 4 – 6) são, ainda assim, três opções seguras. Este último, uma casa do século XIX com dez quartos, será mesmo o local com mais charme de entre os três. Para os adeptos dos paradores espanhóis, Pontevedra tem também o seu, situado na rua do Barón, 19. Ocupa um palácio renascentista dos séculos XVI/XVII.

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