Fugas - Viagens

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Aqui há pastores. E artistas. E gente que quis voltar à aldeia

Por Ana Cristina Pereira

O tempo parece ter parado,a natureza dita o ritmo dos dias. Andámos a desbravar a serra. Partimos de Cinfães para descobrir toda uma região.

Desce a serra a pastora de rosto rosado, apoiada num bordão delgado, mas firme. Encostado ao peito traz um cabrito recém-nascido, embrulhado numa saca de serapilheira. As cabras e as ovelhas seguem à sua frente, vigiadas pelos cães, até à aldeia da Aveloso, que parece perdida na serra de Montemuro.

O rebanho é comunitário, a ida ao pasto rotativa. Quem mais gado tem, mais leva ao pasto. Chegando lá abaixo, à aldeia, cada bicho procura a sua porta. Qualquer coisa falhou hoje. Um pastor não dá com duas fêmeas. Há que subir à serra à procura delas. Estão grávidas as desaparecidas.

O tempo parece ter congelado nesta paisagem áspera. E é por isso mesmo que Ângelo Montenegro gosta de aqui trazer forasteiros. Trá-los cedo, a tempo de verem reunir os animais no interior da aldeia com ruas sujas de bosta. Podem ir atrás deles e do pastor, segui-los pela serra acima, observá-los.

Os forasteiros são bem-vindos, elevam a auto-estima do lugar, mas ninguém pára só para os aturar. Nesta aldeia, como noutras que pontuam esta paisagem de relevos vigorosos e vales profundos, a natureza é que vai ditando o ritmo dos dias. Cidália Duarte, nos seus 66 anos, que o diga.

De casa daquela mulher, que fuma o presunto como os antigos, saem umas 35 cabeças de gado. "Quase todos aqui têm gado. Agora pouco porque os velhos não podem e os novos quase todos fogem." Não falta trabalho. "Milho, feijão, batatas, cebolas, couves, planta-se tudo aqui. Os mimos todos! Muita terra de milho já fica de pasto porque não há quem a trabalhe!"

Acha ela que para aqui ninguém volta — "Só se houver uma crise muito grande que não possam viver nas cidades!" Mas há gente que regressa, seduzida por estas serras.

Ângelo regressou a Cinfães mal acabou o curso de desenho de construção civil no Porto. Já passaram tantos anos e ainda o fascinam estas serras que ora se animam com mantos de flores, ora se retraem com mantos de neve. Regista as variações com a sua câmara fotográfica. Mostra-as à filha.

Cinfães tem dois grandes traços: a Sul, a Serra de Montemuro, que atinge os 1382 metros de altitude, e a Norte o vale do Douro, verde, antes de ser vinhateiro.

Podíamos subir o Douro de barco. Apanhar o comboio em Mosteirô e ir até ao Pinhão ou até ao Tua. Andamos com Ângelo a desbravar a serra — que tem monumentos megalíticos, caminhos romanos, minas do volfrâmio. Há uns meses, era Verão, fizemos um piquenique numa aldeia desabitada — Levadas, em Castro Daire. Desta vez, é Primavera, fazemos o piquenique nas Portas de Montemuro.

Piquenique a sério, este. A comida veio num saco de pano colorido. Estendida uma toalha sobre as ervas, eis as pataniscas de bacalhau, o presunto serrano, o pão, as frutas… Imagine isso e os vestígios de um povoado fortificado da Idade do Ferro a separar a Beira Alta do Douro Litoral.

Sabe estas coisas todas a escultora Emília Viana, dona da Casa da Geada, na freguesia de Ferreiros de Tendais, unidade de turismo rural que também acolhe eventos culturais — cerâmica, escultura, pintura, literatura ou música. Diz ela que o Castro terá sido usado na época dos romanos e na reconquista cristã.

Aqui, nas Portas de Montemuro, nasce o rio Bestança, que desagua lá para baixo, no Douro, na zona do Porto Antigo. São mais de 13 quilómetros. "É um dos menos poluídos da Europa", orgulha-se Ângelo. E nós vamos comprová-lo seguindo trilhos a partir dos quais se pode apreciar a limpidez das águas, o viço da vegetação nas margens, as casas típicas com a fachada em madeira.

Sim, há gente que regressa. Teresa, a irmã de Ângelo, regressou muitos anos depois de daqui ter saído para estudar Direito, já com um longo currículo de gestão. É dela o restaurante O Meu Gatinho, na vila de Cinfães, um lugar agradável para quem procura cozinha tradicional com algum requinte (se passar por lá, experimente a posta arouquesa ou o bacalhau com broa).

Os irmãos e outros empresários estão a tentar chamar a atenção para aqui. Formaram o Turismo Rural do Douro, uma rede informal de casas de turismo rural e restaurantes de Cinfães, Baião e Marco de Canaveses, que deu origem a uma série de programas extra para ocupar quem está de visita, como acompanhar a saída do pastor em Aveleda ou a fazer uma caminhada no vale do Bestança.

Desejam que se comece a pensar em Cinfães como uma encruzilhada entre o centro histórico do Porto e o Douro Vinhateiro, adequado para visitar o litoral e o centro norte. Há uns meses, à mesa de O Meu Gatinho, Teresa desafiou-me a experimentar fazê-lo no Outono ou na Primavera.

Meti-me no comboio na estação de São Bento, no Porto, e saí na estação de Mosteirô, em Cinfães. Pousei o saco na Casa do Moleiro, na Pelisqueira (ver texto). Segui para a aldeia de Campo Benfeito, em Castro Daire, palco do Festival Altitudes, fruto da boa vontade e dos intercâmbios do Teatro de Montemuro.

Há teatro na aldeia

Era dia de espectáculo: "Ping Pong Pau", um delicioso nonsense, escrito por Ricardo Alves e encenado por Gonçalo Amorim. Na plateia, a aldeia misturava-se com aldeias vizinhas. Agora, imagine: está para fechar a carpintaria que o avô deixou de herança. O primo carpinteiro diz que não consegue competir com o IKEA e com as lojas dos chineses, que se multiplicaram por todo o país e que vendem colheres de pau mais baratas do que a madeira necessária para as fazer. A prima do marketing acha que a solução é ele começar a falar em verso ("vai trazer montes de clientes quando passar no programa da manhã!"). O outro primo acredita que o melhor é pendurar uma coruja empalhada à porta, de modo a afastar o avô e outras almas penadas. Recorrendo ao manual de feng shui, outra prima julga que o problema é a carpintaria estar "toda errada".

Antes do sol se pôr — e desta co-produção Teatro de Montemuro/Teatro Experimental do Porto me pôr a pensar na sobrevivência dos negócios de família neste Portugal tão periférico – tive tempo para caminhar pela aldeia, trocar algumas impressões, perceber como artistas e artesão se organizam para fazer vida aqui.

Eduardo Correia, o director artístico da companhia, oferece o café. Num instante, a conversa entra no tema inevitável: a sobrevivência do teatro, a sobrevivência do mundo rural, a sobrevivência do país.

Tudo começou em 1990, com dez jovens e Graeme Pulleyn, um inglês que para ali viera desenvolver um projecto de voluntariado. Não é coisa pouca a que aqui fazem, cada vez com menos meios. Teatro contemporâneo com inspiração popular. Levam-no pelo país fora e até para fora dele. Dão grande importância ao texto. Assumem-se como contadores de histórias. Não descuidam, porém, os figurinos nem os adereços. Quem lhos faz são as Capuchinhas, cooperativa de mulheres que tecem o burel e o linho e com eles executam roupas com design moderno.

Adormeço a pensar no que pode a cultura fazer por um povo no meio da serra. E desperto com vontade de continuar isso.

Salto Baião, onde fica a Fundação Eça de Queiróz, já que por lá tinha andado no Verão — até fizera "O caminho de Jacinto", que na obra A Cidade e as Serras liga a estação de caminhos-de-ferro à quinta de Tormes. Avanço para Marco de Canaveses, onde se situa a cidade romana de Tongobriga.

Um simpático guia conduz-nos pelas ruínas, debitando factos a grande velocidade. Retenho o que vou apontando no caderno: as escavações começaram em 1980 na "capela dos mouros", nome que davam à parte visível das ruínas. No final do século I ou no início do século II, emergiu como civitas. Presume-se que a estrutura castrejo-romana tenha sido criada no tempo de Augusto. A zona habitacional exumada é ainda diminuída, embora já se saiba vasta. Há vestígios de umas termas públicas, de um fórum e de outros edifícios. Consumada a queda do Império romano, no século V, Tongobriga não se esvaziou: tornou-se sede de uma das primeiras paróquias cristãs.

Surpreende-me a dimensão da área arqueológica. E algum esquecimento a que parece ter sido votada. O sítio é Monumento Nacional desde 1986. O Centro interpretativo está ainda a inventar-se.

Andamos pelo edifício. Ainda encontramos restos da exposição colectiva Tempore, misto de artes plásticas, escultura, fotografia, ilustração, na qual participou Emília Viana, a escultora com quem haveríamos de fazer o piquenique nas Portas de Montemuro, e a escultora Karin Somers, com quem vamos lanchar. Não é um momento privado, não se inquiete o leitor. Qualquer pessoa pode visitar Karin Somers e o marido, o artista plástico Mário Peixoto, em Aboadela, na parte ocidental da Serra do Marão.

Primeiro, retenho-me nos rostos humanos ou semi-humanos que saem das mãos dela, com corpo de pássaro, lagarta ou outra coisa qualquer, quase sempre de olhos fechados — a sonhar talvez, a expugnar cada ser do que ele é talvez. Depois, já noutro atelier, quando me detenho na densidade das pinturas e das gravuras dele, ele transporta-me para a Casa Amarela, na verdade branca, na antiga Rua da Cadeia, agora Dr. Miguel Pinto Martins, no centro de Amarante. Nessa cooperativa, onde vários artistas desenvolvem o seu trabalho, gosta de partilhar o que sabe.

A Casa Amarela é uma porta para o exterior — um lugar de ateliers, uma galeria, uma loja, um espaço exterior à espera de si. Amarante não é só o centro histórico, o Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso ou aqueles doces do outro mundo que sabem tão bem com vinho do Douro. Nada é só o que se acha que é. Cada regresso a Cinfães é só mais uma prova disso.

Tenho de voltar no Outono. Não para subir o Douro de barco ou andar a cavalo pelo vale do Bestança. Para apanhar o tempo.

Quatro casas na encosta da serra

Maria Dolores está inquieta. Vê-se que Maria Dolores está inquieta. Quer que tudo esteja perfeito — perfeito. A Casa do Moleiro — que não é uma casa mas um conjunto de casas, rústicas, de granito e madeira — é o projecto de uma vida desta professora de físico-química reformada.

Nasceu no seio de uma abastada família de Cinfães. Estas eram as casas dos caseiros. Quis aproveitar todas as paredes de granito. Onde acabava a pedra, há agora ampliações revestidas a madeira, sinal de respeito pela traça original. Há a Casa do Ferrador, com três quartos, a Casa da Levada, com um quarto, a Casa da Mó, também com um quarto, a Casa da Adeleira, com dois quartos. Ela conhece a história de quem aqui viveu. Pode contar-lha, se lho pedir.

Tudo começa com Blandina Doceira, que fazia doces de Teixeira, bolinhos de manteiga, rosquilhos e outras lambarices em épocas festivas, como arroz doce e aletria. Depois dela, morou aqui José Funileiro, que, claro, fazia funis em folha-de-flandres, mas também remendava panelas e canecas. Da união do funileiro com dona Alzira nasceu o Manuel Moleiro.

Manuel Moleiro percorria a terra com o seu fiel burro. Saía com o bicho carregado com as taleigas da farinha para entregar aos clientes. Voltava com o bicho carregado com as sacas de milho para moer. Casou-se com dona Laura, que ainda aqui vivia quando Maria Dolores herdou estas casas. A senhora ainda viveu uns bons anos. E uma destas casas ainda saiu das mãos de Maria Dolores, mas essa é uma história longa que terá de ficar para o pequeno-almoço.

Estamos a meia encosta da serra de Montemuro. Há vista para o vale do rio Bestança, para a albufeira do Carrapatelo, para o rio Douro. Maria Dolores quer mostrar a piscina, os jardins, o forno de lenha tradicional e "barbecue", a casinha de bonecas (com biblioteca infantil, jogos, brinquedos), a pequena sala de jogos e as casas, claro. Cada detalhe, aqui, tem o seu dedo. Ela é que fez os arranjos, os cortinados, as colchas.

Os hóspedes ficam independentes nas suas casas, a menos que estejam na casa principal, onde Maria Dolores e o marido ficam, quando aqui estão. Ela tem as dicas todas para fazer os hóspedes entrarem na vida da aldeia de Pelisqueira. Um exemplo? Todos os dias, por volta das 8h, menos ao domingo, passa o padeiro de Alhães com pão de centeio e pão de mistura; por volta das 10h, passa o de Cinfães; ao domingo, só o de Cinfães, com pão de centeio e broa de milho, mas às 12h.

 

Um palacete no bosque encantado

Sabe aquela malta que se farta da vida na cidade e resolve mudar-se para o campo? Lurdes Durão e Vicente Lucas fizeram isso.

Viviam em Lisboa, onde ele nascera e ela morava havia anos. Viraram-se para Norte, de onde ela saíra para estudar. Começaram pelo Parque Nacional Peneda-Gerês. Andaram um ano à procura do lugar ideal para recomeçar. De repente, Vicente anunciou a Lurdes que encontrara "um bosque encantado".

Eram 11 ruínas no vale do Bestança, em Cinfães. Iriam recuperá-las, desenvolver um projecto ecológico. "Olha lá, para acompanhar aquelas obras todas, precisamos de uma casa", defendeu ela. Compraram uma quinta com uma casa senhorial do século XVII. "Parece uma anedota", diz agora.

Não imaginavam o que aquilo era quando o vendedor lhes disse que para ali havia "uma coisa muito boa". Para Lurdes foi amor à primeira vista: "Entrei, fui do pátio para a varanda e já não quis ver o resto da casa. Fiquei passada!" Adorou a vista sobre o vale, verdejante, com o rio ao fundo. Só que aquilo não era uma casa, eram três casas com capela, lagar, tanque, horta, fonte, piscina.

Mudaram-se há quase quatro anos. Queriam rentabilizar este investimento e avançar para a recuperação das onze ruínas. Foram apanhados pela crise económica e financeira, que se abateu sobre o país. O projecto inicial "ficou em banho-maria". E agora é vê-los, armados em agricultores, a plantar mirtilo.

Moram na Casa Principal — que tem três quartos duplos e um twin, uma sala de estar, um bar, uma sala de refeições e várias varandas. Os clientes que gostam de maior privacidade podem optar pela Casa do Jardim, mesmo ao lado, ou a Casa da Eira, uns metros abaixo, cada qual com dois quartos, uma cozinha e uma sala de refeições

Na época alta, Vicente e Lurdes concentram todas as atenções na clientela. Na época baixa, acolhem amigos. O músico e compositor Rodrigo Leão é presença assídua. Estranhou quando lhe disseram para onde vinha, conta ela. Uma vez aqui, rendeu-se. "Ele anda sempre com um órgão no carro. Montou-o na sala.

No fim, entrega-me uma maqueta: ‘Isto é o meu próximo disco’." Era o álbum Montanha Mágica, que editou em 2011. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos quando ele lhe disse: "Esta música, Ventozela, é o teu presente de anos." Ainda se comove só de pensar nisso. Ela, "uma mulher de Arouca", nesta espécie de palacete, a inspirar um dos mais singulares artistas nacionais.

GUIA PRÁTICO

Como ir

De carro: Do Aeroporto Internacional do Porto, siga pela A4 em direcção a Vila Real/Amarante. Saia ao km 45 (Saída 14) em direcção ao Marco de Canaveses. Paga a portagem, siga indicações para Cinfães.

De comboio: A partir do Porto, apanhar linha de Caíde/Marco
de Canaveses. Sair na estação de Mosteirô, em Cinfães.

Onde comer

O Meu Gatinho. Rua Capitão Salgueiro Maia, Sequeiro Longo, Cinfães. Telefone: 255563930. Telemóvel: 914884020. www.restauranteomeugatinho.turismoruraldouro.com.pt/

Onde ficar

Casa do Moleiro. Pelisqueira, Cinfães. Telefone: +351 225 024 532. Telemóvel: +351 919 355 590. www.casadomoleiro.com

Quinta da Ventozela. Lugar do Casal, Cinfães. Telefone: (+351) 255 562 342. Telemóvel: (+351) 913 561 088. www.quintadaventozela.com

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