Fugas - Viagens

Birmânia, para quem ainda sonha com o paraíso

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

Após mais de meio século de ditadura, um dos países mais fechados do mundo começa a abrir as suas portas aos turistas, revelando belezas ocultas e inimagináveis, bem como o sorriso eterno de um povo perseverante. Ngapali Beach, com as suas palmeiras bordejando areias brancas e águas cristalinas, é o protótipo da beleza natural, um território ainda pouco explorado, um segredo que não devia ser revelado.

- E quando eles começavam a tirar a roupa, deitando-se sobre a areia em biquíni, eu e os meus amigos, tolhidos de medo, desatávamos a fugir.

As palmeiras erguem-se sobre a areia fina e limpa, o céu veste-se de um azul radioso e as águas cristalinas assemelham-se ao remanso de um lago. O ar da manhã é puro, não corre uma única brisa, o silêncio invade a atmosfera e meia dúzia de barcos empresta tonalidades coloridas ao mar. Uma jovem, de costas bem direitas, pedala elegantemente na sua bicicleta, mulheres de sorrisos eternos carregam cestos de fruta que tentam vender aos poucos turistas àquela hora espojados na praia que se estende para um lado e para o outro.

Min Ye Tun tinha nessa altura, quando começaram a chegar os primeiros viandantes, apenas sete anos e não deixa de se rir quando evoca esses tempos feitos de ingenuidade e de uma doce inocência.

- Éramos crianças e a educação que recebíamos dos nossos pais não contemplava qualquer contacto com os estrangeiros, com quem, mesmo que quiséssemos, não podíamos comunicar, porque ninguém sabia falar inglês.

Mais de vinte anos se passaram e Min Ye Tun, um verdadeiro autodidata, bem cedo interiorizou a importância de aprender línguas para garantir um futuro melhor. Mas não diz, talvez por desconhecimento ou por nunca ter vivido a experiência, que falar com um estrangeiro implicava, nessa mesma noite, uma visita a uma esquadra da polícia para um interrogatório.

- O país permanecia fechado, os turistas eram raros, o Ngapali Beach Hotel, gerido pelo governo, monopolizava o pouco negócio relacionado com o turismo. Em 1996, aceitaram-me como empregado e foi a partir daí, conversando com alguns ingleses, que aprendi as primeiras palavras, escrevendo-as, cheias de erros, num pequeno caderno que passava o tempo a consultar.

Um brilho fulgura no olhar de Min Ye Tun, as palavras desenham-se-lhe nos lábios de forma pausada, num tom sereno, como quem deseja manter o silêncio que nos abraça no cenário idílico que se planta à nossa frente ou apenas pelo receio de um tempo de muita repressão e nenhuma liberdade.

- Ter aprendido inglês foi, como hoje percebo, muito importante para mim. Mas, ao mesmo tempo, sinto que contribui para melhorar as condições de vida dos meus pais e dos meus três irmãos.

E tudo o que Min Ye Tun ganhava era muito pouco segundo os padrões europeus mas o suficiente para se mostrar grato, seguindo o exemplo de um povo feliz na simplicidade das pequenas coisas — é bom não esquecer que mais de metade de uma população de 55 milhões de habitantes vive com menos de um dólar por dia (aproximadamente 75 cêntimos de um euro).

- Trabalhava oito horas por dia, às vezes mais, sete dias por semana, e recebia diariamente 600 kyats (menos de 50 cêntimos ao câmbio actual). Para ter uma ideia, um chefe ganhava apenas mais 300 do que eu e, nessa altura, um cigarro, por exemplo, custava um kyat. Durante seis anos, aprendi a dar mais valor à vida e, em 2001, quando deixei o emprego no hotel, sentia-me bem mais preparado para a enfrentar.

Min Ye Tun lança o olhar na direcção do horizonte daquele mar de uma imponderável luminosidade e, de seguida, olha-me nos olhos na tentativa de perscrutar se a sua conversa me está a aborrecer.

- Recordo-me bem da minha felicidade, no final de cada mês, caminhando para casa com alguns dos bens alimentares que o hotel fornecia a cada um dos empregados, como estava definido: óleo de amendoim, cinco quilos de açúcar e 20 quilos de arroz.

Os erros dos vizinhos

Após mais de meio século de ditadura, a Birmânia — Myanmar desde 1989 —, um dos países mais fechados do mundo, começa a sentir o gosto da liberdade. Lentamente e desde 2011, aquela que era conhecida como uma das maiores prisões a céu aberto vê a obscuridade dar lugar a um raio de luz, cimentado na libertação de presos políticos, na legalização de partidos, na criação de sindicatos, na facilidade de acesso à Internet e na liberdade de imprensa. Com a renúncia ao poder absoluto por parte do general Than Shwe — a despeito da sua vitória (considerada uma fraude pela oposição e pela comunidade internacional) nas eleições presidenciais de 2010 — e a libertação de Aung San Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz em 1991, as sanções internacionais foram suspensas pela União Europeia e aliviadas pelos Estados Unidos — que nomearam um embaixador ao fim de 22 anos sem qualquer representação no país, seguindo-se uma visita entusiasticamente aplaudida de Barack Obama em Novembro de 2012.

Como consequência da nova política, o país abre as suas portas ao investimento estrangeiro e o número de turistas segue batendo todos os recordes — dois milhões em 2013 e uma previsão de cinco milhões em 2015, ano de eleições.

Ngapali, sendo considerada a praia mais bonita da Birmânia, também beneficia deste incremento turístico, talvez até mais por não ser, ao contrário de outros destinos, um lugar barato — são poucos os jovens de mochila às costas e em bom número casais da meia-idade ou idosos que, em grande parte, limitam a sua existência ao luxo de um hotel na praia a preços astronómicos. Obras de melhoramento das estradas — com uma largura talvez exagerada face ao tráfego para um orçamento de meio milhão de dólares, possibilitando emprego a algumas centenas de locais que recebem o dobro do que aufeririam no sector privado —, novos restaurantes, cada vez mais espaços comerciais e mais hotéis constituem forte ameaça à tranquilidade de Ngapali, até agora um segredo ainda bem guardado em frente da Baía de Bengala.

- Os desportos náuticos não são autorizados e, se é verdade que estão previstas algumas construções, incluindo centros comerciais e até mesmo discotecas, o que se compreende tendo em vista atrair um maior número de turistas, nada será erguido junto à praia, pelo que a panorâmica que se tem desde o mar permanecerá inalterável. Tenho alguns contactos privilegiados com entidades governamentais e parece-me que a Birmânia e, no caso concreto de Ngapali, aprendeu com os erros que se cometeram em países como a Tailândia ou o Vietname. Os políticos mostram-se sensíveis e dispostos a levar para a frente alguns projectos, como a construção de uma nova estrada, através das montanhas, desviando dessa forma o tráfico pesado, bem como, em Ngapali, de um trilho exclusivo para bicicletas, algo de inédito em todo o país e julgo mesmo que até na Ásia.

Oliver Thet, chefe de restaurante que gere também, na companhia de um sócio austríaco, um pequeno hotel ecológico em Ngapali, vive há 18 anos na aldeia — é um dos grandes impulsionadores de projectos gratuitos ligados à saúde (implantes dentários, cirurgias plásticas e ortopedia, entre outros) e de eventos para promover a imagem deste paraíso ainda arredado dos grandes circuitos turísticos —, e não está certo do impacto que futuros investimentos possam ter no modo de vida da população local.

- Terá de se tentar um equilíbrio. Mais dinheiro poderá melhorar as condições dos habitantes mas também é importante preservar as suas tradições e a sua cultura. Ngapali tem uma forte vocação turística mas não devemos esquecer que é, mais do que tudo, uma aldeia de pescadores.

Min Ye Tun, atirando os olhos para as pequenas embarcações sobre as águas calmas, parece mais seguro das suas convicções.

- Muitos dos pescadores já abandonaram a actividade porque olham o turismo como principal fonte de receitas. É sempre mais fácil e mais lucrativo passear turistas de barco pelas praias do que enfrentar os perigos do mar.

Gerente de um pequeno restaurante, mesmo sobre a praia, Min Ye Tun sabe que de há um ano a esta parte vive, tal como mais duas ou três dezenas de proprietários, na ilegalidade, uma vez que já foi notificado para se mudar para o sopé de uma colina onde em tempos funcionou o mercado local.

- No próximo ano haverá eleições e ninguém, entre os políticos, agora que se vive em democracia, pretende dar uma imagem de arrogância. O governo quer atrair votos e, para tal, sente que tem de se manter popular. Por isso, as entidades procuram ser tolerantes e vão protelando a decisão, fomentando, desta forma, a corrupção, porque a verdade é que os proprietários dos restaurantes — além de promoverem uma concorrência desleal para com os restaurantes dos hotéis onde os turistas estão alojados — corrompem a polícia para poderem continuar a fazer o seu negócio.

Min Ye Tun discorda claramente da tese do alemão e refuta a ideia de corrupção, ainda que confirme essa realidade até há um ano.

- Até 2012, a polícia visitava todos os restaurantes uma vez por mês e extorquia a cada um dos donos vinte dólares. Se não o fizéssemos, não nos restava outra alternativa: fechar as portas. Agora, desde as mudanças políticas no país, já não nos procura, nem mesmo depois da decisão das entidades locais de nos mudarmos para outro espaço. Alguns dos restaurantes estão aqui há mais de dez anos e são uma importante fonte de receita para muitas famílias. Se sairmos da praia, será a ruína para elas. Os turistas gostam de se sentar a ver o pôr do sol ou à noite, a jantar à luz da vela. Quem vai procurar um restaurante na área para onde nos querem transferir? Percorra a estrada na parte de trás da praia e repare como a maior parte dos restaurantes está vazia. É normal. Os políticos afirmam que querem transformar a praia num espaço público mas, perante esta extensão [olha para cá e para lá, num total de três quilómetros], será que não podemos ter direito a meia dúzia de metros? E, ao contrário do que alegam os proprietários, não estamos à frente dos hotéis, temos o nosso espaço nos dois extremos da praia.

Naturalmente, é enorme a pressão das grandes cadeias de hotéis, cujos restaurantes, como pude comprovar, se encontram às moscas. E, confortavelmente sentado, delicio-me com a comida preparada pelo irmão de Min Ye Tun e decorada com requinte pela mãe, enquanto pouso olhares na delicadeza dos gestos do gerente para com os clientes e no disco laranja que se prepara para mergulhar nas águas dóceis do mar, cujo marulho continuo a escutar, pela noite dentro, no interior do meu quarto com uma frondosa varanda sem janelas.

E chegamos ao paraíso

O chilreio dos pássaros é o primeiro sinal da manhã que rompe bonita, de um céu teimosamente azul. Caminho para o extremo oposto aos restaurantes e deixo-me embalar pela indolência dos pescadores reparando as suas redes, pela beleza das imagens de um cenário magnificente, o fumo insinuando-se por entre as palmeiras, os meninos brincando junto às suas cabanas, um mundo tão distinto do mundo que se esconde para lás das portas dos grandes hotéis. São barbearias de um tempo que não é deste tempo, pequeno comércio de um tempo distante, sorrisos de um tempo ainda mais longínquo. E, já com o sol subindo no céu recortado por palmeiras de um verde intenso, sigo o rasto provocado pelo barco que sulca as águas a caminho da Paradise Beach, a menos de uma hora de Ngapali.

Uma mulher que não se cansa de sorrir coloca um chá à minha frente, o filho brinca com um carrinho de plástico, as galinhas andam por ali, à volta da única casa que se avista, o marido trabalha nas plantações e a outra filha, de seis anos, está na escola e vive permanentemente com uma tia na aldeia, visitando os pais e o irmão apenas nas férias. A casa não lhes pertence mas o proprietário concedeu-lhes o direito de explorar a terra, sem nada exigir em troca. As ondas beijam suavemente as areias, respira-se o silêncio e o ar puro. No cimo de uma montanha, um buda resplandece ao sol. Não há um único turista por perto.

- Há dias em que não aparece ninguém. Às vezes, um ou dois barcos por dia. Vivemos muito felizes aqui, não sentimos falta de nada. Quando precisamos de peixe ou de alguma outra coisa, vamos à aldeia. Mas é muito raro.

Su Cha admite que, no início, o filho tinha medo dos turistas quando se acercavam da praia. Mas já se habituou à sua presença. Pergunto quanto devo pelo chá. Não tenho nada a pagar. O chá faz parte da hospitalidade birmanesa. O filho, Zua Man, segreda qualquer coisa à mãe. Ela sorri. “Ele diz que gosta de nadar e da praia. Mas não gosta de biquínis.” Ambos, sorridentes, me acenam à despedida e, ao fim de uma hora, avisto Ngapali com as suas palmeiras, o seu céu sempre azul, as suas águas límpidas, as suas areias brancas. Na água, uma monja brinca com um grupo de crianças felizes. Todos estão vestidos.

GUIA PRÁTICO

Como ir

São múltiplas as opções para chegar a Rangum, cidade que não tem ligações aéreas directas com Portugal. Com um pouco de paciência — e grande antecedência — pode encontrar voos entre a capital portuguesa e Kuala Lumpur (Malásia) ou Banguecoque (Tailândia) por cerca de 700 euros, devendo fazer uma pesquisa demorada nos sites das companhias Air France, KLM, Lufthansa, Qatar Airways ou Emirates, sendo que esta última, com uma única escala, no Dubai (a Lufthansa, a KLM e a Air France efectuam também apenas uma paragem), oferece quase sempre as melhores condições. A Qatar Airways é uma alternativa a ter em conta mas obriga o viajante a passar por Madrid ou Barcelona antes de viajar para Doha e, desde a capital qatari, para Kuala Lumpur ou Banguecoque. Uma vez numa destas cidades (Singapura é igualmente uma hipótese a considerar mas por norma mais cara), a companhia low-cost Air Asia ou mesmo a Malaysia Airways voam para Rangum por cerca de 100 euros (ida e volta), mais ou menos o mesmo valor que terá de pagar para um voo (por percurso) entre a antiga capital birmanesa e Thandwe, a escassos quilómetros de Ngapali Beach.

Quando ir

A melhor altura para visitar a Birmânia e, no caso particular, Ngapali Beach é entre Novembro e Março mas, ainda que muitos dos hotéis e restaurantes fechem as suas portas — há também menos ligações aéreas a partir de Rangum —, o período das monções (entre meados de Maio e de Setembro) ou de calor intenso podem constituir alternativa e a preços mais económicos.

Onde comer

Se alguns dos restaurantes instalados sobre as areias da praia que se estende ao longo de mais de três quilómetros não encerrarem, como está previsto, motivando a sua deslocação para o sopé de uma pequena colina onde em tempos recentes funcionava o mercado local, o visitante — pelo menos aquele que não limita a sua estadia a resorts — não encontrará melhor alternativa, tanto pela qualidade da comida (especialmente peixe e marisco, sempre frescos), como pelos preços em conta. De entre os que experimentei, o Mr. Ko Ye figura como o meu favorito. Para comida ainda mais caseira e num ambiente tipicamente birmanês, terá de se deslocar a Ngapali Junction, não muito longe do aeroporto, para se deliciar com a extraordinária gastronomia do Mon Ma-Lay 3. Entre os hotéis, não deixe de experimentar o Lilli’s Bar.

Onde dormir

Se o ideal de viagens contempla o luxo, o Amata Resort & Spa (www.amataresortnspa.com/), sobre a praia, é talvez a melhor opção. Os preços dependem da localização, se têm ou não vista para o mar, e vão desde os 220 aos 460 dólares, contemplando ainda outros intermédios, entre os 260 e os 320. Ngapali Beach não é propriamente um lugar barato em termos de alojamento mas há algumas alternativas em conta, como o Laguna Lodge (cerca de 60 euros por noite), com quartos rústicos e elegantes (www.lagunalodge-myanmar.com) ou, ainda mais acessível mas sem panorâmica sobre a Baía de Bengala, o Mememto Resort (ngapalimementoresort@gmail.com), com facilidades básicas e uma tarifa entre os 25 e os 40 euros).

Informações úteis

Os cidadãos portugueses necessitam de visto para entrar na Birmânia. Em Portugal, não há qualquer representação diplomática mas pode tentar obter autorização para entrar no país através de alguns sites (visto à chegada) ou, ainda mais barato e eficiente, enviando passaporte, duas fotografias, formulário devidamente preenchido, 25 euros num envelope (contendo um outro com a sua morada e dinheiro suficiente para um selo de retorno) para a embaixada em Paris (60, Rue de Courcelles 75008-Paris), que se encarregará de lhe fazer chegar, em duas ou três semanas, o visto — também pode ser obtido nas embaixadas da Birmânia em Kuala Lumpur ou em Banguecoque, um processo rápido e pouco dispendioso.

Um euro equivale a pouco mais de 1300 kyats, a moeda local. Depois de um período de total isolamento, desencorajando os turistas a visitar o país, a Birmânia abre as suas portas e nas grandes cidades já há, desde 2012, caixas multibanco, ao contrário do que acontece em Ngapali Beach. De qualquer forma, um pouco por todo o lado, seja em hotéis ou em pequenas lojas de comércio, é fácil cambiar euros ou dólares americanos (estes últimos gozam de maior aceitação e não raras vezes é possível efectuar pagamentos nesta divisa). Para quem, estando instalado em Ngapali Beach, se vê obrigado a recorrer a um banco ou a uma caixa multibanco, a solução passa por uma curta viagem a Thandwe, cidade mais próxima, podendo utilizar táxi ou os rudimentares (mas baratos) transportes públicos, numa viagem que demora pouco mais de trinta minutos.

Em Ngapali não há muito para fazer (nem é necessário) mas mergulho, pesca e golfe são algumas das alternativas ao dolce far niente — há quem garanta que a toponímia é da responsabilidade de um aventureiro italiano, recordando os seus tempos em Nápoles.

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