Fugas - Viagens

Saia de casa e leve os miúdos

Por Rita Pimenta, Vera Moutinho (fotos e vídeo), Bernardo Carvalho (ilustrações)

A natureza está por todo o lado e sempre pronta a espantar-nos. Um convite para passar o Dia Mundial da Criança lá fora.

Temos muita sorte por viver em Portugal, com um clima muito bom que nos permite estar “lá fora” na maior parte do ano. Há uma grande diversidade de habitats no território nacional de que nem sequer nos damos conta. E até nos quintais e jardins, no meio da cidade, existe sempre algo natural para ver. Só é preciso estar atento e aprender a desfrutar.

Certezas de duas biólogas, Maria Dias e Inês Rosário, que criaram “um guia para descobrir a natureza”, escrito para as crianças e para os outros. Chama-se Lá Fora, foi ilustrado por Bernardo Carvalho, editado pelo Planeta Tangerina e levou, no dia 11 de Maio, 150 pessoas a conhecer o Centro Interpretativo da Lagoa Pequena, em Sesimbra.

Um lançamento ao ar livre, seguido de um passeio orientado por um mapa e algumas pistas, pôs várias famílias à descoberta de caminhos e espécies no extremo oriental da Lagoa de Albufeira.

“Não precisamos de viajar muito. Em Portugal, conseguimos ver muitas espécies de animais, de plantas e muita diversidade de habitats. E, às vezes, mesmo ao pé de nós, no meio das localidades. Só que nem sempre estamos atentos”, diz à Fugas Inês Rosário, doutorada em Ecologia, antes do passeio.

Já no livro, as autoras alertavam para a riqueza natural do país: “Apesar de pequeno, Portugal tem paisagens e habitats muito variados; está na rota de muitas aves migratórias; tem espécies de animais e plantas únicas no mundo e centenas de quilómetros de costa virada para o oceano (se fores ao mapa, verás que tal não acontece em muitos países). Tudo motivos que só podem fazer crescer o nosso entusiasmo.”

Com muito entusiasmo fala Maria Dias, que se doutorou com um estudo sobre as aves limícolas do estuário do Tejo e sempre teve o sonho de fazer um guia para descobrir a natureza. Por isso desafiou o Planeta Tangerina para a edição desta obra. “É comum em praticamente todas as crianças um fascínio enorme pela natureza e pelos bichos em particular. E esse fascínio não se esgota na parte apenas contemplativa, no observar por observar”, diz à Fugas, antes da apresentação do livro aos convidados, que iam chegando e se instalando no chão, à sombra.

“As crianças têm uma curiosidade enorme em saber os vários porquês da natureza: porque é que aquele bicho voa?, porque é que está aqui esta planta? O livro foi muito pensado na lógica de conseguir consolidar esse interesse pela natureza. Para que o mantenham ao longo da vida e se venham a tornar adultos com esse prazer de contemplar e aprender.” Mas também, prossegue, levar os miúdos a “interessar-se ainda mais pela ciência e pelas ciências naturais, sobretudo, através da observação”.

A melhor forma que encontraram foi a de dar “dicas de actividades que se possam fazer lá fora” e ao mesmo tempo “fornecer informação científica e responder a muitas das curiosidades”. Sempre com o natural espírito infantil de descoberta. Como o de João e de Pedro, ambos com sete anos e cujas vozes se escutaram durante todo o passeio. Diálogo logo à partida: “Tem cuidado que essa planta faz uma cócega. Ficas com ela para sempre.” “Como é que sabes?” “Uma vez mexi e fiquei três dias com uma cócega.” “É comichão, não é cócega.” E seguiram os dois divertidos, a olhar para todo o lado, a mexer em quase tudo e sempre a tagarelar.

Maria Dias explica a escolha deste cenário para a apresentação do livro: “É um sítio natural muito bonito, é de acesso fácil, está relativamente perto de Lisboa e de outras cidades, e também em termos de percurso é muito acessível porque é uma zona sempre a direito, e tem infra-estruturas que apoiam o passeio que achamos interessantes. É fácil de visitar com crianças ou com pessoas com fraca mobilidade.”

Seguir pistas

Como “atracções” naturais, a bióloga descreve: “É uma zona que está incluída no espaço húmido da Lagoa de Albufeira, que é constituído pela Lagoa Grande, Lagoa Pequena e a zona da Lagoa da Estacada. É muito importante para aves migradoras, aves invernantes que vêm aqui porque têm abrigo e alimento.”

Sendo as aves um grupo conspícuo, são fáceis de ver e, “de uma maneira geral, as pessoas acham-nas bonitas”. Por isso mesmo, havia fila para trepar ao sítio mais alto do observatório das garças, um dos pontos do percurso. O mesmo no observatório do caimão, outra paragem obrigatória.

“Uma raposa, um lobo, são difíceis de ver. Nós sabemos que eles existem, deixam pistas. Isso é uma coisa que nós salientamos no livro. Às vezes, não conseguimos ver os animais e temos de ir à procura das pistas que eles deixam, para saber que eles estão lá. Isso também pode ser uma maneira engraçada de os miúdos perceberem a natureza.”

O capítulo Segue Esta Pista! – Os Vestígios Deixados pelos Animais ajuda nessa pesquisa. E, no mapa de observação que vamos seguindo na Lagoa Pequena, a dada altura pode ler-se a pergunta, que muito divertiu todas as crianças: “Há cocós no chão?” Seguem-se outras questões, relacionadas: “De que animal serão?”, “e o que terá ele comido?”.

Desafiar os miúdos

“Não é como no Jardim Zoológico, que têm os animais em exposição. Aqui, na natureza, temos de nos esforçar um bocadinho mais para os ver”, diz Maria Dias. Mesmo em relação às aves nem sempre é fácil. “De início, as pessoas não conseguem reconhecer as espécies. Reconhecem uma gaivota, um pombo, um pardal, mas quando começam a esforçar-se, a olhar para um guia, a prestar mais atenção, vão ver que existem centenas de espécies e isso pode ser muito estimulante. É um desafio. É isso que se pretende, desafiar.”

E o percurso continha vários desafios: “Encontra a cavalinha escondida na sombra. Fica a saber que esta planta é boa para cicatrizar feridas (mas não a apanhes, pois estamos numa zona protegida). Pista: a cavalinha parece um ramo de pinheiro” ou “usa o teu nariz e descobre a hortelã”. E lá vão os miúdos de nariz empinado em direcção às plantas.

Mas o desafio maior parecia mesmo ser o de conseguir manter as crianças em silêncio, tal a excitação feliz com as descobertas e com a companhia dos amigos. A animação levou uma menina a pôr um pé em falso, cair na água e, valente, levantar-se logo a seguir. Não se magoou nem se mostrou perturbada. Não fossem os calções brancos se terem tornado castanhos e quase ninguém saberia que houvera um mergulho...

Desenhar a paisagem

A única desilusão da tarde foi mesmo a de a lontra não se deixar ver, mas a “tristeza” durou pouco. Adiante, que ainda há muito para ver e desfrutar antes de se regressar a casa.

Pelo caminho, os visitantes encontraram Bernardo Carvalho, o ilustrador de Lá Fora, a desenhar no meio da paisagem. “Aprendi imenso, estou superbatido em montes de assuntos novos. Adorei fazer o capítulo das nuvens. Acho que foi o de que gostei mais. Também gostei do do mar, talvez por conhecer um bocadinho melhor e estar mais entrosado com as coisas de que se falam”, tinha dito à Fugas imediatamente antes do passeio.

Também explicou a escolha dos dois registos do livro, o científico e o contemplativo: “O registo mais científico teve de ser feito a partir de imagens e eu queria que as coisas ficassem realmente com uma boa leitura. Fiz tudo com uma caneta muito simples e depois pintei essas imagens no computador.”

Mas toda a equipa sentiu que era preciso acrescentar um outro registo: “Achávamos importante que houvesse um estilo mais contemplativo. Apesar de ser escrito e contado de uma maneira engraçada, não deixa de ser um livro bastante científico. Era importante que houvesse a noção de que também se pode estar cá fora sem estar a ver quantas patas é que tem a centopeia, basta olhar para a centopeia para ver se é gira ou feia”, conclui, divertido.

Também recordou o processo de escolher a capa do livro. Não foi à primeira? “Não. Nem pensar. Houve três ou quatro capas antes desta. Bastante mais confusas. Acabámos por escolher a mais clean de todas, a mais limpinha. Foi um bocado difícil. Como o livro lá dentro era cor de laranja e azul, pensámos: ‘Estamos a dar alta importância ao cor de laranja sempre.’ Mas acabou por ficar porque gostámos desta. Vamos a votos no Planeta [Tangerina].”

Livro sem idade

Para uma editora habituada a fazer livros ilustrados com poucas páginas, esta “foi uma experiência completamente nova”, diz Isabel Minhós Martins. “Era importante definir se queríamos ter um livro muito exaustivo, pondo alguns temas de parte, ou se mais completo e abrangente e menos aprofundado e menos técnico. E foi essa a opção. Que abrangesse tudo ou quase tudo”, explica a editora do Planeta Tangerina.

Depois de definida a estrutura, havia que pensar a abordagem que fizesse mais sentido: “A nossa ideia foi partir de quais as perguntas que as crianças fariam muito espontaneamente acerca das árvores, das flores ou das aves. Qual é a ave que voa mais alto?, porque é que o céu é azul ou porque é que as nuvens não caem? Ou como é que as rochas se formaram?”

Outra preocupação: “Que o livro partisse daquela natureza mais próxima. Não só da que encontramos nos parques naturais ou nas zonas onde a natureza ainda está selvagem, mas também da que se encontra nas cidades. Até entre as pedras da calçada nascem ervas. Falar disso. Ou da natureza que existe nos quintais ou nos jardins.”

Também não queriam fazer um livro muito infantil: “É um bocadinho um livro sem idade. Se calhar os miúdos a partir dos sete/oito anos já o conseguem ler de forma autónoma, mas também é um livro para os pais. É essa a nossa postura, tentamos fazer livros para toda a família. Os pais podem ler umas partes, os filhos, outras.”

Para a bióloga Maria Dias, um dos objectivos deste guia é “mostrar que o mundo é bonito e que pode dar muito prazer estar mais em comunhão com o mundo e com a natureza”. A conversa é interrompida por Gabriel, de três anos: “Mãe, olha aqui uma cereja grande.” Não era uma espécie da lagoa, mas parecia saborosa.

O sol já desceu e os visitantes vão regressando à casa de partida. Voltam a distribuir-se pelo chão, coberto agora com uma sombra maior. Falam do que viram, reconfortam-se com o lanche que os esperava, pedem autógrafos às autoras e ao ilustrador. E por bastante tempo ainda se deixam ficar. Lá fora.

O que Lá Fora tem dentro

É importante saber isto

Logo nas primeiras páginas, o pequeno leitor recebe alguns conselhos, que aqui resumimos. O primeiro: “Nas saídas de campo, deves sempre ir acompanhado por um adulto. Nunca saias sozinho. Para além de ser mais seguro, se tiveres companhia podes sempre tirar dúvidas (ou ensinar o que já sabes).”

Outras indicações: aproveitar os dias de bom tempo, apesar de ser “bom andar à chuva ou sentir o vento”; levar um agasalho e uma lanterna, se o passeio for nocturno, “para ver estrelas ou anfíbios ou para ouvir as corujas a cantar”; tomar atenção aos caminhos, “é muito fácil perderes-te porque não tens pontos de referência à tua volta”; não se aventurar demasiado perto da água, “se fores descobrir o que há perto do mar, de um lago ou de um rio”.

E ainda: não mexer em ninhos ou tocas; não deixar lixo no chão nem nas ribeiras ou nos rios; não arrancar plantas (“só por arrancar…”); evitar levantar pedras, “pode haver animais que as usem como esconderijo” e tentar ser silencioso, para poder observar os animais sem os assustar.

O que se deve levar

Para que o passeio corra bem e todos se sintam confortáveis, sem frio, calor ou fome, há uma lista básica de material: chapéu e protector solar; galochas ou sapatos de sola de borracha, “se fores para zonas com água (como as poças de maré)”; binóculos, “para veres aves e outros animais”; uma bússola ou um GPS; farnel e um cantil ou garrafa de água; um agasalho, “mesmo quando parece suave, um vento de fim da tarde pode tornar-se desagradável”; um caderno e um lápis, para anotar as descobertas, e um guia com informações que possam ajudar a reconhecer as espécies do local, as constelações, os tipos de rocha e tudo o mais que a natureza tem para nos mostrar.

Advertências feitas e mochila arrumada, podemos partir.

Se a família resolver sair dos espaços urbanos, pode procurar em Lá Fora vários tipos de paisagem a explorar.

Vamos ao campo

Florestas: “As mais comuns são os pinhais, mas existem também muitos eucaliptais e montados (florestas de sobreiros ou azinheiras).” Estes são os de maior biodiversidade e podem encontrar-se sobretudo no Sul do país e no interior norte. Nos arquipélagos da Madeira e dos Açores, temos “uma floresta única que alberga algumas espécies que não existem em nenhum outro lado do mundo”, a Floresta Laurissilva.

Bosques: “Os mais famosos são os bosques mediterrânicos, que podes encontrar, por exemplo, na serra da Arrábida, com os seus carvalhos, carrascos, zambujeiros e pinheiros-mansos.” Na serra do Gerês, há bosques muito bem preservados de bétulas e vidoeiros.

Matagais: “Zonas onde outrora existiram bosques, mas que arderam ou foram cortados (para fazer agricultura, por exemplo).” Há por todo o país e são o habitat do lince-ibérico, já quase extinto. Mais fácil será encontrar coelhos a correr pelos matagais.

Montanhas: as “mais conhecidas são as da serra da Estrela e do Gerês, que não se destacam por ser muito altas, mas por albergarem muitas espécies de fauna e de flora”. Um dos seus habitantes mais famosos é o lobo, “com sorte poderás ouvir um”. Na Madeira, não se pode perder uma visita ao Pico do Areeiro, ao Pico Ruivo e “a todo o maciço interior da ilha”. Nos Açores, há que ir até à montanha do Pico, “a mais alta do país”. Nas ilhas do Pico, Terceira e Flores, pode-se encontrar a tal floresta única, a Laurissilva. Na ilha de São Miguel, é possível avistar “uma das espécies de aves mais raras da nossa fauna – o priolo”, que se passeia pela serra da Tronqueira.

Escarpas: são habitats fundamentais para muitas espécies e localizam-se junto aos grandes rios. São eles o Tejo, o Douro e o Guadiana. “É nas zonas mais interiores do país, onde fazem fronteira com Espanha, onde são particularmente bonitos.” Aqui se avistam com facilidade abutres, grifos e outras aves de rapina. “Os veados também são comuns por estas paragens, sobretudo no Tejo internacional.”

Vamos à praia

Praias: não é só no Verão que as praias ali estão para nós. E para muitos outros “bichos”. Por serem o ponto de encontro entre a terra e o mar, aí se juntam as espécies que existem em cada um. Daí serem “tão ricas em fauna”. Nas praias de rocha, há estrelas-do-mar, mexilhões, ouriços ou caranguejos. Nas de areia, amêijoas, “que vivem enterradas na zona da rebentação”, ou pilritos, “que andam a fugir às ondas para comer as amêijoas…” Mas, “com umas barbatanas e uns óculos de mergulho, podemos descobrir todo o mundo subaquático”.

Ilhas: “Por estarem rodeadas de mar, muitos dos animais que lá vivem não conseguem sair e evoluem de forma isolada, dando origem novas espécies. São as espécies endémicas, “que não existem em mais lado nenhum”. Isto tanto acontece na Madeira e nos Açores, como na Berlenga, mais próxima do continente. “Em todas elas existem importantes colónias de aves marinhas.” Para ver baleias e cachalotes, as ilhas dos Açores são “um dos melhores lugares do mundo”.

Rios, estuários e lagoas: são zonas húmidas que estão entre os locais onde se podem ver mais espécies de animais e plantas. Destaque para os estuários dos rios Tejo, Sado, Mondego e Guadiana e as rias de Aveiro e de Faro (ria Formosa). “As aves são o que se vê em maior abundância (podem ser mesmo muitos milhares), mas os anfíbios também se destacam.” Também as lagoas costeiras são bons locais de visita, casos da de Albufeira e Santo André, mas também a Albufeira de Alqueva (artificial).

Campos agrícolas e pastagens: mesmo os locais cultivados por nós, os humanos, atraem muitos animais. Como apreciam alimentos como cereais, legumes ou frutas, “elegem estes locais para se alimentar ou fazer os seus ninhos (como a águia-caçadeira, que gosta de esconder os ovos no meio das searas alentejanas)”.

Ainda aí está?

 

GUIA PRÁTICO

Como ir

Lagoa Pequena
www.cm-sesimbra.pt/lagoapequena
lagoapequena.sesimbra.pt
Inscrições e informações: tel.: 93 998 22 92: email: info.lagoapequena@cm-sesimbra.pt

 

De Lisboa: 34 min, 31km
Atravessar a Ponte de 25 de Abril, via A2; sair em direcção a Sesimbra; atravessar Fernão Ferro via EN378 até encontrar a rotunda no Marco do Grilo; virar em direcção a Alfarim/ Meco via EN 377; depois de passar a segunda linha de água, virar por caminho de terra batida até encontrar o portão principal do Centro.

De Setúbal: 42 min, 31km
Sair pela EN10; passar junto à  Vila Nogueira de Azeitão seguindo na EN10, continuar até à Quinta do Conde; na rotunda virar à esquerda para a Av. Principal da Quinta do Conde; virar à esquerda na EN206 em direcção à rotunda no Marco do Grilo; na rotunda virar em direcção a Alfarim/ Meco via EN 377; depois de passar a segunda linha de água, virar por caminho de terra batida até encontrar o portão principal do Centro.

--%>