O Douro prepara-se para o Verão. No Porto e em Vila Nova de Gaia o movimento de turistas estrangeiros é intenso, no Peso da Régua, Luzia e a família acabam de chegar. Vêm de Paredes, o Verão será passado tendo a carrinha como tecto e a venda de chapéus como modo de vida. Isso remete-os ao cais, onde esperam que os barcos atraquem com visitantes imprevidentes nos seus passeios ao Alto Douro Vinhateiro. Não lhes faltará trabalho pela quantidade de embarcações que vemos a cruzar o rio, acima e abaixo: os barcos apitam, os passageiros acenam. E é assim que, ao desembarcarmos na Régua, encontramos Luzia, banca de chapéus montada, ao lado de outras mulheres que oferecem cerejas, carnudas, vermelho intenso. Conhecem as rotinas fluviais — as horas de chegada, sobretudo. Não miram duas vezes os barcos que chegam e portanto o nosso Spirit of Chartwell passa despercebido.
Mas este é, na realidade, um barco diferente dos outros que fazem o vaivém nesta auto-estrada fluvial a que Miguel Torga chamou “poema geológico”. Deixaremos o poema para mais tarde, porque o barco é a “barcaça real”, o barco que percorreu o Tamisa com a família real britânica a bordo durante as celebrações do jubileu de diamante da rainha Isabel II e que a Douro Azul comprou. Quem viu alguma fotografia do barco nesse dia, engalanado de vermelho, dourado e flores e povoado de chapéus, dificilmente o reconhecerá “à civil”. Cor que está algures entre o creme e o amarelo a combinar com castanho, atrai mais atenção pelas linhas que o desenham: comprido e achatado, o Spirit of Chartwell tem uma aura antiga — não por acaso, várias vezes durante a nossa estadia nele ouvimos alusões a Agatha Christie (imaginemos um Expresso do Oriente aquático).
É no Cais da Ribeira, no Porto, que embarcamos para um cruzeiro de cinco noites que vai do Porto a Barca de Alva e regressa. A noite ainda não chegou, mas o cocktail de recepção já passou e há conversas amenas no lounge e bar, entre madeiras escuras e sofás, janelas a rasgarem tudo, à espera do jantar que se serve cedo. Não fossem alguns atrasos nas visitas a terra e teríamos jantado sempre às 19h — horário adequado à maioria dos turistas que enche os navios-hotel do Douro. Norte-americanos, alemães e britânicos à cabeça — mas no Spirit of Chartwell ninguém esquece a sueca de 90 anos que um dia chegou de mochila às costas. A idade não surpreende tanto, pois a faixa etária média dos passageiros andará pelos 70 anos; a energia e a boa forma física é que não são tão habituais.
Nós zarpamos num cruzeiro que é, portanto, especial. Primeiro porque somos muitos portugueses e ainda mais convidados — sem exageros, porque “muitos” e “mais” têm de ser vistos no contexto do Spirit of Chartwell: 14 camarotes duplos (como o nosso, acolhedor, revestido a madeira, duas camas, casa-de-banho) e uma suite (espreitamo-la por cortesia de Carlos e Ângela Correia, brasileiros e os únicos “não convidados” do cruzeiro: cama dupla, dourados, recanto de estar), para um máximo de 30 passageiros. Depois, porque o roteiro também é adaptado à ocasião. Tem logo à partida, e literalmente, uma diferença assinalável dos que, com a mesma duração, acontecem nos meses de Verão: sai da Ribeira do Porto e não do Peso da Régua.
O apocalipse?
É manhã cedo quando deixamos, então, o Porto para trás. Quase nos passa despercebido este soltar de amarras, mas parece que somos abençoados por sono profundo. Quem despertou fez um cruzeiro dentro do cruzeiro, o das seis pontes portuenses — menos a da Arrábida. Vamos para nascente, sabendo que não chegaremos à nascente. Seguimos contra a corrente, pois, e num instante já estamos na barragem de Crestuma-Lever — a mais próxima do Porto das cinco que o Douro português tem. Se estivéssemos num cruzeiro de oito dias, o Spirit of Chartwell pararia em Entre-os-Rios para uma visita (com almoço) ao Convento de Alpendurada. Nós continuamos subindo as águas do Douro com o sol a querer espreitar entre as nuvens e muito Douro olhos dentro, um Douro que ainda não é Património da Humanidade, mas que nos surpreende com troços belíssimos. É mais povoado e menos cénico, menos postal ilustrado e mais Portugal (rural) real.
Chegamos à barragem de Carrapatelo a falar de barragens, apropriado quando nos preparamos para subir o maior desnível do Douro (e da Europa), 35 metros. A porta, guilhotina, abre-se deixando passar o Spirit of Chartwell e dar “boleia” a um pequeno barco a motor. Fecha e nós que já estávamos no sun deck movemo-nos para a proa, seguindo o conselho da directora de hotel e guia mais do que ocasional Filipa Carrêtas: “É uma sensação quase apocalíptica. Estou sempre à espera de invasores.” Percebemos o que ela quer dizer quando nos vemos fechados em quatro paredes de betão, com o céu a parecer mais distante, num cenário que podia ter saído de um qualquer Mad Max. Contudo, não estamos num filme e o futuro imediato não é o apocalipse. Pelo contrário — devolvidos ao curso normal do Douro, começamos a entrar, de mansinho, em território património mundial.
Deixamo-nos levar entre vales que começam a desenhar-se tão consonantes que até parecem naturais e não o resultado da luta secular entre o homem e o xisto. Deslizamos pelo Douro, que apesar da sua sinuosidade, lânguida, não compete com as estradas, violentamente sinuosas, que persistem em desbravar o isolamento natural destas paragens. Se lá de cima a vertigem desce em direcção ao rio, que se agiganta à medida que nos afastamos dele, daqui de baixo cresce em direcção ao céu. Mas a vertigem é a mesma: essa tapeçaria de socalcos impossíveis, por estes dias, antes de meados de Junho, à espera do “pintor” — esse período em que as videiras habitantes dos monumentais degraus, cobertas da folhagem verde que já vemos, assistem à coloração dos bagos. O Alto Douro Vinhateiro está entre nós; nós estamos no meio dele. E assim acostamos no Peso da Régua, com o “homem da capa” a saudar-nos.
O Museu do Douro olha de cima, incontornável na cor forte e no volume do seu edifício, mas é Lamego que inaugura o programa de visitas do cruzeiro — seguir-se-ão a Quinta da Avessada (Favaios), Castelo Rodrigo e, já no regresso ao Porto, a Casa de Mateus, em Vila Real (no programa de cruzeiros de Verão de cinco dias do Spirit of Chartwell, Lamego e Casa de Mateus ficam de fora — entram Salamanca e Ciudad Rodrigo). Não é muito o tempo disponível em Lamego, o suficiente para uns optarem por conquistar a monumental (e barroca) escadaria do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, um dos ícones da cidade, outros espreitarem a Sé e o Museu de Lamego (que vale mais do que uma espreitadela — painéis de Grão-Vasco, tapeçarias flamengas quinhentistas, por exemplo). E acabarem invariavelmente numa das lojas de produtos regionais que povoam o centro histórico. Muito a contragosto de Carlos Alberto Correia, apaixonado por castelos: “Disseram que não podíamos ir ao castelo de Lamego porque é perigoso. Mas eu vi gente nas muralhas.”
Conta-nos isto à noite, já no Pinhão para onde o barco navegou enquanto parte dos passageiros visitava Lamego. Pinhão num domingo à tarde parece fechada (até lanchar pode ser missão impossível, ouvimos) e, no entanto, estamos no coração do Douro. As vinhas e o vinho são o ar que aqui se respira — e se capturou nos famosos painéis de azulejos da estação ferroviária local. Foi em 1756 que o Marquês de Pombal estabeleceu a primeira região vinícola demarcada do mundo, porém, o vinho é uma tradição milenar no vale do Douro. Na ressaca do terramoto de Lisboa, e perante a necessidade de reconstruir a capital, o marquês viu aqui uma boa fonte de rendimento — para os cofres do país e para o seu próprio bolso (possuía muitas propriedade em São João da Pesqueira). Afinal, os ingleses já estavam rendidos ao vinho mais distintivo e notável da região, um vinho fortificado obtido com a interrupção da fermentação e a adição de aguardente vínica — o vinho do Porto.
Favaios à mesa
Do centro geográfico do Douro, a cem metros de altitude, subimos até 600 metros, em passeio de meia hora entre o Pinhão e Favaios. Voltamos novamente costas ao rio e embrenhamo-nos na subida ensaiada em muitas curvas que abraçam os montes. Para lá das nuvens, raios de sol tentam abrir caminho no pouco dia que resta e lançam um pó dourado sobre os vales rasgados em degraus e cobertos de vinhas, sobre algumas oliveiras rentes à estrada. No topo dos montes, vemos aldeias e quando estamos nós no cimo vemos o terreno amansado, ondulado por vinhedos, murado por xisto.
Não chegamos a passar pelo centro de Favaios no caminho para a Quinta da Avessada. O jantar será tradicional destas paragens, de onde sai o famoso moscatel: tanto no menu como no local. Pela mesa passam alheira, moira, rojões e a sopa idêntica àquela com que D. Antónia Adelaide Ferreira, a “Ferreirinha”, alimentou os agricultores da região durante os anos negros em que o Douro foi atingido por várias pragas — feita de forma tradicional, na panela de ferro e três pernas, vale toda uma refeição; e a mesa está posta na sala de envelhecimento e provas, um armazém com cem anos onde se guardam dos moscatéis mais antigos do mundo — nos piparões, a idade é de 120 anos. Mas antes do jantar um mergulho na produção do moscatel Favaios, um vinho generoso como o Porto, com uma diferença importante: uma única casta é utilizada na sua produção, moscatel galego, ao invés do Porto, que incorpora um blend de castas. Na sala dos lagares, estes ainda cá estão, mas apenas para servir os turistas: figuras mecanizadas simulam todo o processo de fabrico do vinho e um filme passa em revista o modo de vida da região. Entretanto, temos um relance da história de Favaios e do Favaios, uma história que é de resistência — da proibição da produção do moscatel aqui, a mais de 500 metros de altitude, à criação da adega cooperativa que congrega toda a produção do Favaios e o Favaíto.
A nossa noite é dominada, então, pelo Favaios, bebida de limpidez dourada, sabor “glicerinado” de doce de mel e compotas, com alguns toques de laranja. Contudo, a navegação do dia seguinte é novamente dedicada ao vinho do Porto. Afinal, entramos numa zona mítica desta região. Em breve, na margem sul do rio surgirá a Quinta do Vesúvio, considerada o grande segredo do Douro, uma das propriedades mais lendárias da mítica “Ferreirinha”. Antes, passagem pelo Cachão da Valeira, cuja abertura, no século XVIII, permitiu a navegação para o Alto Douro, e local onde o Barão Forrester, um dos grandes impulsionadores da produção e comercialização do vinho do Porto, encontrou a morte. Ironicamente num dos 250 pontos que ele, no primeiro mapa detalhado do Douro, assinalou como perigosos. Ia acompanhado pela amiga, D. Antónia: ela sobreviveu, diz a lenda, graças à saia em balão, que lhe permitiu flutuar; ele morreu, diz também a lenda, porque não largou as moedas de ouro que levava consigo.
O rio está cada vez mais estreito e é assim que chegamos a Barca d’Alva. Pela primeira vez, aportamos na margem esquerda do Douro, o que significa, a sul. Entramos no Parque Nacional do Douro Internacional, e isto quer dizer que Espanha está aqui ao lado (fronteira delimitada pelo Douro e pelo seu afluente Águeda). Vamos ver esse encontro do alto, do miradouro Sapinha/Escalhão — a ele e a quatro grifos, na semana anterior sete foram avistados simultaneamente, a planar — através da paisagem agreste mas com uma inexplicável doçura que se exibe diante nós como uma pintura.
Para trás fica Barca d’Alva, que é mesmo alva, com os seus minimercados que são minimarchés. Ainda há vinhedos, mas à medida que subimos estes bailados geográficos exactos que cobrem os vales deixamo-los para trás. O território mais alto é de oliveiras e amendoeiras, o verde acinzentado das primeiras e o verde brilhante das segundas iluminam o ocre da terra que se agiganta (chegamos a 800 metros de altitude) até Castelo Rodrigo. O caminho da beira-rio até aí é de deslumbramento permanente — ao longe e ao perto, para cima e para baixo. São os olivais novos que alinham pontos escuros nos terraços amparados por xisto, são as oliveiras antigas que surgem dispersas, são as casas solitárias e despidas; é o mar de cumes que surge no horizonte; é o jogo de luz e sombra que perseguimos montes acima; é a fábrica de conservas de azeitona abandonada. Chega um momento em que a paisagem se torna mais plana, campos rochosos, árvores que são quase instalações, pombais, redondos, alvíssimos sob telhados vermelhos (são 35 mil na zona), e sem darmos por isso estamos a atravessar Figueira de Castelo Rodrigo.
O sabor da cereja
Daqui avista-se Castelo Rodrigo, há séculos empoleirada no horizonte inóspito. Aldeia histórica, Castelo Rodrigo viu passar pelas suas portas muitos povos até ser incorporada no reino de Portugal, o que só veio a acontecer em 1209 com o Tratado de Alcanizes. As suas pedras são disso testemunho, postas, dispostas e redispostas à medida da necessidade dos tempos — que foram sempre muito turbulentos nas zonas raianas e aqui especialmente, com Castelo Rodrigo a balançar na sua lealdade entre os dois reinos ibéricos. Tanto que viu D. João I, depois de coroado, a castigar a vila pelo seu apoio a D. Beatriz, ordenando que o seu brasão fosse colocado invertido e com a pedra picada na entrada do castelo. Tanto que séculos mais tarde, e para que não houvesse mais dúvidas, a própria população haveria de incendiar o castelo feito palácio por Cristóvão de Moura, conde de Castelo Rodrigo pela mão de Filipe I e que chegou a ser vice-rei de Portugal durante o domínio espanhol.
Durante o século XIX, Castelo Rodrigo perdeu a sua importância e viu a sua população transferir-se para o vale, para Figueira de Castelo Rodrigo, que foi elevada a sede de concelho. Com 65 habitantes, é hoje quase uma aldeia-museu, com o que tem de bom e de mau. O bom: o recinto amuralhado e o seu casario estão perfeitamente conservados, compondo um idílico refúgio pétreo; o mau: no meio dos turistas que chegam muitas vezes trazidos pelos cruzeiros durienses é difícil encontrar alguém local.
Os que encontramos já estão habituados a cruzar-se com turistas e não hesitam em mostrar-lhes algum pormenor que possa passar despercebido, como a cisterna com uma porta de arco em ferradura e outra de arco quebrado ou um símbolo judaico num portal (Castelo Rodrigo foi porto de abrigo de muitos judeus fugidos da Espanha inquisitorial). Por outro lado, a igreja matriz abre nesta segunda-feira especialmente para os visitantes e as ruínas do palácio estão à distância de um euro. Em terra de amendoeiras, provar as amêndoas doces ou picantes da casa de chá Sabores do Castelo (de um francês, André Carnet, que encontrou na aldeia da mulher, que conheceu em Paris, o refúgio ideal) é obrigatório. Porém, confessamos que o que nos sabe melhor são as cerejas que pilhamos despudoradamente da árvore ali no largo de São João, junto ao padrão da Restauração, perante as ruínas da antiga torre de menagem.
Ainda lhes sentimos o sabor quando o deck do Spirit of Chartwell nos serve de plataforma para um final de dia postos em sossego e, pela primeira vez, com a bênção de algum calor. Não dura muito o sossego e isso é inesperado. Aproxima-se o Princesa do Douro do cais de Barca de Alva: Happy, de Pharrell Williams invade o silêncio — não fora o volume da música, estaríamos muito felizes.
Os dias passam devagar a bordo do Spirit of Chartwell. Porém, quando damos por nós é feriado, o Presidente da República desmaia (sabemo-lo num dos poucos momentos em que temos wi-fi no Alto Douro) e estamos quase a ser expulsos do paraíso. O penúltimo dia leva-nos de volta à Régua. Para pernoitar e, antes, visitar a Casa de Mateus, um dos mais emblemáticos exemplos do barroco civil do país, onde chegamos passando de Cima-Corgo para Baixo-Corgo, a maior subdivisão (51%) da região demarcada do Douro.
É feriado, recordamos, e a Casa de Mateus, projecto de Nasoni concluído em 1749, monumento nacional desde 1911 e aberta ao público desde 1970, está efervescente. Apenas parte do edifício, pertencente à Fundação Casa de Mateus, está aberta ao público — a parte fechada continua a servir os proprietários, os condes de Vila Real. Os guias andam em roda-viva, falam-se várias línguas e o percurso está cheio de desvios. Ainda assim, passamos por salas que fizeram o quotidiano do solar, rodeados de peças históricas (incluindo um relicário com a assinatura de Santo Inácio de Loyola e uma primeira edição ilustrada de Os Lusíadas, edição de 1817 da responsabilidade de D. José Maria de Sousa, morgado de Mateus), e outras que agora são museu religioso — e entramos pelo salão nobre. Nos jardins, a tranquilidade, sobretudo nas traseiras, inspiração francesa a desenhar talhões com buxo. As cameleiras e os cedros impressionam, mas a maior parte dos visitantes detém-se no jardim fronteiro da casa, onde um lago, com escultura de Cutileiro, reflecte a fachada do solar.
São reflexos como os que nos acompanham pelo rio, onde vemos a água replicar “um universo virginal, como se estivesse acabado de nascer e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio […], ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá do fundo a reflectir o seu próprio assombro”. Voltamos ao tal “poema geológico” de Torga na despedida, chegada ao Porto, antes da hora prevista e com o sol, que andou esquivo durante o cruzeiro, a fazer reluzir a cascata colorida da Ribeira. Uma chegada perfeita — que poderia ser igualmente uma partida ideal.
Guia prático
Informações
Cruzeiros Spirit of Chartwell
Cinco dias – 995€ por pessoa (tudo incluído)
Oito dias – desde 2275€ por pessoa (tudo incluído)
A Fugas embarcou no Spirit of Chartwell a convite da Douro Azul