Fugas - Viagens

  • Adriano Miranda
  • Declarada Reserva Natural e Património da Humanidade pela UNESCO desde Janeiro de 1986, Sian Ka’an espraia-se ao longo de 528.147 hectares na Península de Iucatão
    Declarada Reserva Natural e Património da Humanidade pela UNESCO desde Janeiro de 1986, Sian Ka’an espraia-se ao longo de 528.147 hectares na Península de Iucatão Ireneu Teixeira
  • Declarada Reserva Natural e Património da Humanidade pela UNESCO desde Janeiro de 1986, Sian Ka’an espraia-se ao longo de 528.147 hectares na Península de Iucatão
    Declarada Reserva Natural e Património da Humanidade pela UNESCO desde Janeiro de 1986, Sian Ka’an espraia-se ao longo de 528.147 hectares na Península de Iucatão Ireneu Teixeira
  • A zona arqueológica de Tulum é uma das mais procuradas para encontrar os vestígios da civilização maia
    A zona arqueológica de Tulum é uma das mais procuradas para encontrar os vestígios da civilização maia Ireneu Teixeira

O lugar onde nasce o céu

Por Ireneu Teixeira

O tesouro mais bem guardado do México caribenho fica a dois passos da buliçosa Riviera Maia, no estado de Quintana Roo. Um paraíso singular que reúne argumentos para rivalizar com as aclamadas Chichén Itzá, Tulum ou Cobá. Aqui, impera a lei da natureza, pese as pressões da indústria hoteleira para desvirtuar esta dádiva celestial listada, pela UNESCO, como reserva da biosfera e património da Humanidade.

O manto negro abriu-se com estrondo, cobrindo de água a terra. Afiançam-me ser prática costumeira por estas latitudes tropicais. Temerário, preparei-me para um dilúvio matinal que, entretanto, se diluíra em passe mágico, facilitando-me o assalto ao castelo. À entrada, duas guardiãs de carapaça enrugada e escamada, camuflada por dezenas de minúsculos painéis solares. Imóveis e de semblante cenhoso, as lustrosas iguanas franquearam-me a passagem de acesso à combinação demandada: cultura, história e praia cartão-postal. Acabara de conquistar Tulum perante a despreocupação de um vasto exército de répteis que se espraiam por todos os poros. O promontório onde os maias instalaram o castelo — a única zona arqueológica (conhecida) na beira do mar — serve de farol a uma paleta de cores que variam do azul chumbo ao verde coralino.

São oito da manhã. O contraste das construções em pedra com o mar das Caraíbas leva-me a recuar à época dourada da região, iniciada em 1200 e interrompida com a chegada de nuestros hermanos, em 1550. Instintivamente, calcorreio a antiga Zamá, “amanhecer” em maia, cujos habitantes eram peritos em toponímia e, também, em arquitectura. Algumas das construções, agora em ruínas, foram inclinadas com o propósito de suster melhor a investida dos furacões, visitantes tão assíduos quanto indesejados nestas paragens. Outra das criações engenhosas dos indígenas prendia-se com a proliferação de colunas, que, afinal, serviriam, apenas, para amparar o ego e estatuto do proprietário.

Abraçado por um verde florestal e um azul-prateado intensos, sinto a cabeça a pipocar perante tão inclemente canícula. Aos primeiros indícios de movimentação humana, esgueiro-me pela escada de madeira em caracol e desaguo num manto farinhento que aqui se chama areia. Mergulho no caldo translúcido enquanto perscruto o agito no alto do promontório. Avisto as fendas das construções de onde se erguiam tochas de aviso às canoas ao largo (os maias não tinham barcos), orientando o caminho por entre a segunda maior barreira de coral do mundo que atapeta o mar florescente. A paz de espírito enfraquece à medida que os raios solares penetram pelas janelas dos vetustos edifícios, anunciando a hora crítica, a de ser cozido em água a ferver pela acção do astro-rei. A chusma que se acotovela no miradouro faz-me sentir a mais num paraíso que usurpei por breves minutos. Arribo a escadaria com parcimónia, em contramão com o tráfico humano, até dar de caras com um sorriso a rivalizar com a alta estatura. Engelhada pelo fogo tropical, uma das mãos ostenta um panfleto entretanto carcomido pela humidade. Lê-se em parangonas: Sian Ka’an – Perla del Caribe.

Como? Pergunto-me, após, mecanicamente, ter aceitado o papel ferrugento. O nome exótico suscitou-me interesse. Estava de passagem na região, sem eira nem beira certa, ao sabor de um vento que começou a soprar forte, encrespando as ondas e, com ele, devolvendo as pessoas ao areal, que nem iguanas estendidas ao sol.

- Sian Ka’an!

De feição marcadamente indígena, entre duas longas tranças soltas a partir da nuca — Jorge Machado Castro provinha de Chiapas e tinha estudos superiores — prontificou-se a desvendar o que, para mim, era um lugar oculto.

- Não é longe daqui, mas precisa de alugar um carro, ou de uma excursão, até Cesiak – Centro Ecológico de Sian Ka’an, e lá tratamos de tudo. É a maravilha das maravilhas da natureza do nosso estado [Quintana Roo].

Desconfiei. Os promotores tendem a hiperbolizar o produto, mas a possibilidade de me escapulir ao turismo de massas e atracar o corpo e a mente num lugar encantado e, sobretudo, remoto eram premissas tentadoras.

O agito da noite foi bom conselheiro. Não fossem os altos decibéis projectados das cercanias a conspurcar a minha zona de conforto, e o Hotelito, cujo diminutivo se aplica como um molde, reuniria epítetos vários para redundar no Éden de Tulum.

Cobá depois de Zamá

Guindei o corpo dos lençóis com ganas de participar numa aula mesclada de História e Educação Física. A curta e prazenteira viagem de meia hora de autocarro até Cobá faz-se na companhia de um manto verde, espesso, profundo, ocultando uma miríade de maravilhas da natureza e algumas obras humanas. Tal como em Tulum, a férrea vontade levou-me a chegar ainda a bruma não se levantara da copa das frondosas árvores da selva tropical. Emanada pelos insectos, uma orquestra de sons enxameia os carreiros de terra mal batida. Distingo uivos por entre a sinfonia, ao longe, confirmando a presença de macacos na área. Tento passar incólume mas as paragens para observar aves são uma constante. A lugubridade do espaço confere-lhe uma aura mística, intimidando o visitante solitário. Os braços do sol não logram trespassar a frondosa vegetação, criando-se uma atmosfera ideal para nova temporada da série Lost. Por fim, diante dos meus olhos, Nohoch Mul, a pirâmide que perfura o céu azul matinal, no alto dos seus 42 metros, qual farol de pedra cinzento incrustado no vasto mar de tons selvagens. Cobá foi edificada antes de Tulum ou Chichén Itzá e, segundo os arqueólogos, hospedou mais de 40 mil maias, valendo-lhe o estatuto de uma das maiores cidades do Período Clássico Maia. Sinto-me na guatemalteca Tikal, intrigante até para os estudiosos, por distar mais de 600 quilómetros. Uma aliança matrimonial ou comercial entre ambas as cidades pode explicar as inegáveis parecenças.

De Cobá sabe-se pouco e muito há por escavar. Delicio-me com a amostra, apesar de a ascensão ao topo da pirâmide me avivar quão intrincado é atingir o clímax, ou, neste caso, o topo desta maravilha arquitectónica maia. A inclinação acentuada intimida os vertiginosos. Extenuante, a subida é compensada com a visão dos deuses. Daqui percebe-se por que Cobá significa “água agitada pelo vento” ao vislumbrar pequenos pontos azuis líquidos por entre a ditadura do verde. Um deles é o Gran Cenote de águas cristalinas, outra das razões para o homem se vergar, respeitar e preservar, a obra da mãe natureza — visitei-o no regresso. São perceptíveis algumas das veredas de pedra caliça, os chamados caminhos brancos (sacbés), uma teia de redes comerciais que ligavam o mar das Caraíbas e as cidades estabelecidas terra adentro, com todos os caminhos a reunirem-se em Cobá.

Avisto um ponto negro, veloz como uma seta. Um lustroso puma de olhos em fogo segue, sôfrego, na peugada de um desventurado tapir. Fico em êxtase mas depois de esfregar os olhos só me resta atentar num grupo de excursionistas que se abeira do lugar, de sombrinhas coloridas nas mãos. O calor provoca-me alucinações e a desidratação fere o discernimento. Lembro-me do Jorge, o homem tatuado que me remete aos seus antepassados. Fixo o olhar para lá da vegetação mas não distingo Sian Ka’an. Retiro o papel amachucado do bolso lateral dos calções empoeirados. Releio o contacto, o endereço e todas as coordenadas. “Sian Ka’an, o lugar onde nasce o céu”. Persuadido, desci a íngreme e precária escadaria com o auxílio de uma bendita corda, colocada para os menos destemidos, como eu.

Resisti ao convite de uma legião de “bicitaxistas”, uma espécie de triciclo de tracção humana para transportar os mais comodistas, numa passeata pelos arrabaldes, e voltei à base depois de percorrer o templo das igrejas, onde sobressai nova imponente pirâmide, esta de escalada interdita, e pelo campo do jogo da bola, um dos ex-líbris da região.

Aula de ecologia

A luz amarelada alvitra nova aurora. Ao som embirrento do despertador segue-se um segundo aviso sonoro: é uma sms do Jorge. “Señor, pasamos allí a las siete en punto. Hasta ahora”. Em menos de nada já estou postado na rua de terra corada, calcinada pelo sol, em frente à hospedagem de cariz familiar, aguardando pelo transporte que me levará ao paraíso que me aprisionaram no subconsciente. Escuto o ronco de um motor rouco, dirijo o olhar para a curva à esquerda de onde surge um histórico Willy, ainda que numa versão modernizada. Mas, para mim, está de bom tamanho. Ao volante, o sorridente Miguel, de bigode à Errol Flynn e óculos escuros — Jorge aguardava-me em Cesiak, a uma curta mas demorada distância, porém, tremendamente prazenteira. Até as crateras lunares da estrada conferem emoção ao percurso, remetendo-nos para um mundo longínquo, inacessível às tecnologias humanas. Os cerca de 15 quilómetros percorrem-se entre o mar esmeralda, à esquerda, e o verde da floresta tropical, à direita. Tudo o resto é um manto de pó branco.

Agradecido à brisa fresca que sopra do mar à distância de um esticar de braço, estou aprumado para as actividades educacionais contratadas, leia-se de calção de banho, t-shirt — o melhor protector solar nestas latitudes —, boné com pala, óculos de sol e máquina fotográfica. Miguel será, afinal, o meu companheiro de aventura, porque Jorge teve de deslocar-se à civilização, ou seja, a Playa del Carmen, a mais de 75kms de estrada, para tratar de assuntos relacionados com a actividade do Centro. Miguel pergunta-me se um jovem casal britânico pode juntar-se a nós. Os londrinos Sally e Gareth surgem, tímidos, da cabana onde pernoitaram. O chamado tour canal é o pontapé de saída para as visitas. Situado entre duas águas, a do mar das Caraíbas e a da lagoa Campechen, o Centro Ecológico de Cesiak tem uma localização abençoada. O percurso começa por lancha, através de canais naturais formados por muitos anos de fluxo contínuo de água fresca. Miguel é um autêntico biólogo encartado, falando longamente sobre tudo o que vê e mexe. Informa, num inglês perfeito, que os motores das embarcações são ecológicos evitando, desse modo, qualquer dano ao ecossistema. Guia especializado há cerca de uma década, Miguel dá outra dimensão a uma beleza natural de tirar o fôlego por entre manguezais onde sobressai o vermelho, preto, cinza e branco, que abrigam espécies naturais únicas. Ao contrário da maioria dos mangues, estes são de água translúcida, igualmente repletos de vida entre as suas raízes e troncos de plantas epífitas, como musgo, líquenes, samambaias ou orquídeas.

A lancha atraca num cais tosco e improvisado junto à lagoa de água doce Chunyaxche (ou Ceibas, a árvore sagrada maia) para prosseguirmos o passeio, agora a pé e descalços sobre brasas. Exige-se um parêntesis imediato: municiem-se de chinelos se não querem cozinhar os pés para não se sentirem, como eu, a caminhar sobre a superfície solar. No percurso de cerca de dois quilómetros pela savana tropical, a maior parte inundada, absorvemos novos ensinamentos, agora sobre os mamíferos difíceis de avistar de dia. Bebemos os conhecimentos mas limitamo-nos a contemplar algumas espécies de aves e peixes de cores indescritíveis até nos depararmos com um encontro inesperado mas muito desejado. No outro lado do canal, protegido pelos mangues, um jovem crocodilo mexicano (crocodilus morelleti) — o crocodilo americano (acutus crocodilus) é a outra espécie que habita o lugar — repousa sobre as águas frescas e de uma transparência tal que permite ver a parte submersa do réptil que aguarda pela passagem das presas. O trilho termina num vetusto controlo maia de paredes caídas de nome Xlapak, remetendo-nos para o intenso comércio entre os maias e os povos da América Central.

O regresso ao Centro Ecológico faz-se por via marítima e com recurso a uma tecnologia natural: enfiados em coletes salva-vidas — também são disponibilizadas bóias —, a correnteza do canal transporta-nos, a um ritmo relaxante, pelos canais de água fresca em direcção ao mar aberto. Ainda assim, resiste no subconsciente geral a preocupação de um encontro com os crocodilos, pese, nesse capítulo, os registos serem imaculados.

Banhos e poemas

É tempo de repor energias. A desidratação enxuga-nos o corpo, tornando urgente a reposição dos líquidos perdidos. Peixe, salada regada com molho de semente de abóbora e sumo de frutas tropicais é o menu do dia degustado num balcão de vistas panorâmicas, da praia caribeña e da lagoa de água doce — duas cores distintas que juntas saciam os sentidos. Não se vislumbra vivalma neste mundo de ténue demanda, impedido de receber mais do que dezena e meia de barcos por dia — e eu só avistara o nosso! Não fossem os meus companheiros de viagem e sentir-me-ia assaltado por uma solidão grandiosa, de uma nobreza ímpar — tingida, com frequência, por um lilás clarinho. Uma cor que se mantém delicada e transparente nos céus da Riviera Maia, mesmo em dias de vento acentuado, como aquele que abraçara a região. Miguel acumula o naturalismo com a sensibilidade poética e histórica. Em voz baixa, lê-nos um poema dedicado à natureza escrito no século XV, pelo célebre filósofo-guerreiro-arquitecto-poeta Netzahualcóyotl. “Canto de Primavera/…resuena el canto/ los cascabeles se hacen oír/ a ellos responden/ nuestras sonajas floridas./ Derrama flores, alegra el canto./ Sobre las flores canta/el hermoso faisán,/ su canto despliega/ en el interior de las aguas./ A él responden/ variados pájaros rojos,/ el hermoso pájaro rojo/bellamente canta…”

Miguel tem sido um cruzado valente na luta pela proteção da fauna e flora de Sian Ka’an, fazendo do conhecimento a sua arma mais eficaz. A viagem prossegue para Sul, pela acidentada estrada 109, rumo a Boca Paila, que se alcança após passarmos por uma espécie de Arco do Triunfo, onde as águas da lagoa e do mar se casam de forma natural. Neste belo lugar, atravessado por uma ponte de madeira, deve observar-se, e pode fotografar-se, uma grande variedade de aves marinhas — albatrozes, pelicanos… —, sendo um local de nidificação por excelência. O veículo todo-o-terreno prossegue, aos solavancos, até ao fim da estrada desta imensa língua de terra, rodeada de mar por ambos os lados. E esse fim de mundo dá pelo nome de Punta Allen, um povoado piscatório disposto em quadrícula, à beira-praia instalado. Uma espécie de estação de serviço alimentar dos viajantes, antes de partirem à descoberta das maravilhas subaquáticas.

Em frente, baloiçando nas águas cálidas, uma lancha pachorrenta leva-nos até à lagoa Negra por uma estrada líquida repleta de mangues. No caminho, algumas paragens para observar os divertidos golfinhos e as tímidas tartarugas, que só vêm à tona para respirar, regressando de imediato às profundezas do oceano. Animais livres no ambiente natural, o mesmo não sucedendo nos célebres parques da Riviera Maia. Um dos pontos altos — mais um — é o mergulho ou o snorkeling — minha opção —, ficando a boiar nas águas cristalinas, apreciando, sem dificuldade, a fauna e flora endémica. A visibilidade neste mar apenas não atinge níveis de excelência em épocas de furacões — no nosso Verão —, tornando as águas revoltas e baças. E como não era o caso, foi possível observar, com extrema nitidez, cardumes de peixes coloridos, elegantes tartarugas, raias, barracudas ou inúmeras anémonas ou estrelas-do-mar. O dia estava destinado a banhos. Depois do snorkeling nas águas turquesa, chegou a vez de nadar nos lagos calcários, aqui chamados de blanquizales. O remate final foi dado numa mesa de plástico repleta de iguarias mexicanas, em Punta Allen, 50 quilómetros dentro da reserva, e, praticamente no seu ponto mais a sul — onde reside e resiste, em ruínas, um farol, datado de 1905, e que já conheceu outro esplendor.

Uma noite com aluxes

De regresso a Cesiak, o dia curva-se para o seu ocaso, pintando o horizonte com cores ardentes. O vento empurra as pás dos moinhos que geram energia eólica, juntamente com alguns painéis solares, no despretensioso complexo, permitindo algumas horas de luz artificial num mundo natural, onde até a água é reciclada.

Miguel não ia pernoitar no local, mas, e antes de partir, juntou-se a mim no terraço com vista para as estrelas, que pintalgavam de luz o céu negro. A sua voz mal se escutava naquele turbilhão de sons expelidos pela floresta.

- Tengo que decirte algo. Si quieres salir de aquí a la noche, usted debe tener cuidado a los Aluxes.

- Aluxes? Retorqui de imediato, ansioso pelo desenvolvimento da história, apesar de não estar interessado em incursões nocturnas e solitárias.

Miguel prossegue, num tom misterioso, aludindo a lendas e tradições dos seus antepassados maias, assegurando-lhes total veracidade.

Aluxes, ou aluxo’ob, na língua maia, explicou-me, “são uma espécie de duendes ou espíritos, homens em miniatura envergando vestes tradicionais, que vagueiam apenas pela Península de Iucatão e Guatemala”. “Os aluxes são invisíveis mas podem assumir forma física com o propósito de se comunicarem com os humanos, e apenas presentes em lugares naturais, como Sian’Kan.”- “Interessante”, pensei. Continuou. “Muitos agricultores maias constroem, na propriedade, uma espécie de altar conhecido como kahtal alux, ou a casa de alux, para que, durante sete anos, o duende possa ajudar a crescer o milho, convocar os deuses da chuva e proteger os campos da noite, afastando os animais e assustando os ladrões. Findo esse período, o fazendeiro tranca o alux dentro de casa. Se tal não se verificar, o pequeno alux torna-se agressivo com as pessoas.”

Deito-me a pensar nas pequenas criaturas quando reparo na festa que os mosquitos fizeram nas minhas pernas. Ou… terão sido os aluxes?

Amanhece o dia, resplandecente. Poucos nomes são tão bonitos quanto o desta reserva. É a esta hora que se percebe o significado de Sian’Kan: a altura em que nasce o céu.

GUIA PRÁTICO

Quando ir

A época alta na Riviera Maia vai de meados de Dezembro até à Primavera, enquanto a das chuvas e furacões daí até Setembro. Seja como for, não conte com frio neste clima tropical, onde a temperatura média é de 27 graus durante o dia e raramente chove muitos dias seguidos. Viajar em Agosto tem o inconveniente acrescido de ser mais caro, devido a uma maior procura turística na Europa por este destino. Já no Natal e Fim de ano os preços tendem a… quintuplicar.

Como ir

Os denominados pacotes tudo-incluído (voo, transfer, hotel e refeições) são a opção mais económica, desde que não tencione partir à descoberta de outras regiões ou estados mexicanos. Negociar com a agência de viagens o adiamento do regresso por uma ou duas semanas não é fácil, mas vale a pena tentar, por forma a aproveitar as maravilhas da região. Por outro lado, se pretender viajar de forma independente, terá de fazer, inevitavelmente, uma ou duas (a via menos onerosa) escalas antes de aterrar em Cancún. Dali pode apanhar um autocarro até Tulum e esperar que o vão buscar; ou, então, alugar um carro (os preços são acessíveis e as estradas aceitáveis) e deslocar-se directamente até Cesiak.

Onde ficar

Banhada pelas águas do Mar das Caraíbas, a Riviera Maia dista 90 quilómetros de Cancún, possuindo uma costa de 120 quilómetros, compreendida entre Puerto Morelos e Punta Allen. Mesmo sem registar números claustrofóbicos, a costa está infestada de unidades hoteleiras de todos os tamanhos e para todos os gostos e carteiras. Pernoitar em Sian Ka’an é de todo aconselhável, pela localização e, sobretudo, pelo contacto com a natureza. Em Cesiak pode optar pela casa “redonda” com três quartos ou pelo camping, que possui bungalows espartanos mas muito agradáveis e com uma localização excepcional. Aconselha-se a reservar com a devida antecedência.

O que comer

A combinação de várias influências redundou num cozinhado de condimentados gostos indígenas, europeus e americanos. O ingrediente mais utilizado é o milho, seguindo-se o chili, o tomate e o abacate. Entre os pratos típicos mexicanos, destacam-se as enchiladas, tacos e tortilhas. Mas como estamos à beira de um mar de águas cálidas, a cozinha é assente em peixe fresco e marisco. Os frutos do mar ainda são preparados com ingredientes e técnicas maias, conferindo-lhes um sabor ímpar. Os chefs de cozinha locais têm reinventado os pratos, adicionando-lhes novas iguarias, como a chaya, uma planta local, chili habanero, que é pequeno, alaranjado e muito picante, e o chili xcatic, também chamado de guero ou de água. A cebola roxa marinada em sumo de laranja azeda e pasta de achiote dão um toque gourmet às iguarias. Embora os resorts tenham restaurantes que servem as especialidades mexicanas, a melhor opção é sair e degustar a cozinha regional. Se gosta de frutos do mar, não hesite em pedir um ceviche de garoupa, vieiras ou polvo, complementado com molho de salsa xnipec, à base de tomates, pimentas habanero, coentros, cebola roxa, sumo de laranja azedo e sal. Atenção: é muito picante.

Outra iguaria local é o peixe tikinxic originário da ilha Mujeres. Marinado em molho de pasta de urucum (fruto de sementes avermelhadas), tomate, cebola, alho e laranja, é enterrado num buraco feito na areia e coberto com uma folha de bananeira. Esta divindade dos deuses maias é acompanhada de tortilhas e um vinho rosé ou um semi-seco. Para a sobremesa, delicie-se com um mamão doce, ciricote ou um delicioso chocolate maia quente ou frio. Nota: não é costume as gorjetas estarem incluídas nas contas dos bares e restaurantes. Deve calcular 10 a 15% sobre o total da factura.

Conselhos úteis

Os cidadãos portugueses necessitam de ter o passaporte em dia (validade mínima de seis meses) para entrar no México. A moeda local é o peso mexicano (1€=17,7 pesos) e a corrente eléctrica é de 100 volts, sendo por isso necessário um transformador. Outro bem indispensável é o repelente de insectos — tente perceber qual o mais eficaz, porque há mosquitos altamente insistentes. Se viajar integrado num pacote turístico, tenha em conta que a grande maioria dos resorts cobrampreços exorbitantes pelas excursões aos sítios obrigatórios, como as pirâmides maias, cenotes, ecoparques, ou a… Sian Ka’an. Em alternativa, pode visitar os mesmos locais repartindo o aluguer de um táxi com mais gente e contratando um guia no local. Alugar um carro é também uma opção cómoda e, se tiver os pesos contados, utilize a rede de autocarros ou os “colectivos”, velozes carrinhas que vão praticamente a todo o lado, e um dos principais meios de transporte dos mexicanos.

Como medida de precaução, beba sempre água engarrafada e seja prudente com a exposição ao sol, use sempre o protector, de preferência ecológico. Um aviso importante: a reserva não é de fácil acesso a mulheres grávidas ou pessoas com problemas lombares, uma vez que o caminho é bastante esburacado.

O que é a Community Tours?

A Community Tours Sian Ka’an é uma cooperativa formada por 25 profissionais, incluindo guias, barqueiros, vendedores, coordenadores de venda e operações, que opera e comercializa passeios ecológicos na Reserva da Biosfera de Sian Ka’an. A cooperativa trabalha em parceria com a ONG Amigos de Sian Ka’an, que capta recursos para preservação e conservação da reserva. Além do meio ambiente, a Community Tours atenta também na capacitação dos profissionais, que receberam treinos específicos em História, Geografia, Arqueologia, primeiros socorros, interpretação da paisagem e idioma (alguns maias não falavam espanhol, outros aprenderam inglês). As aulas são financiadas por organizações não-governamentais internacionais e permitem que jovens maias tenham emprego, além de poderem partilhar a sua cultura com turistas do todo o mundo.

Outra acção fundamental para o bom desempenho da cooperativa foi a elaboração do planeamento estratégico, que propiciou óptimos resultados para a Community Tours, a partir da operação do turismo sustentável. A formatação de passeios com alto valor agregado, que proporcionam experiências únicas na reserva, também foi decisiva para o sucesso da Community Tours. A cooperativa desenvolveu produtos que unem cultura, natureza, actividade desportiva, envolvimento com a comunidade, náutica e pesca. Os pacotes incluem passeios de barco pela lagoa, descida de bóia no rio, caiaque, passeio de barco ao pôr do sol, com queijo e vinho, caminhada na reserva para observar fauna, flora e ruínas maias. Consciente da importância da preservação ambiental, a cooperativa decidiu destinar 10% do total das receitas obtidas com a venda dos passeios para a conservação de Sian Ka’an.

Informações

Declarada Reserva Natural e Património da Humanidade pela UNESCO desde Janeiro de 1986, Sian Ka’an espraia-se ao longo de 528.147 hectares na Península de Iucatão, sendo que apenas 1% está em mãos privadas. Nesta extensa área apenas vivem cerca de duas mil pessoas por entre 23 sítios arqueológicos (conhecidos), incluindo as ruínas de Chenchomac, Chunyaxché y El Plantal, onde se encontraram múmias, cerâmicas e materiais que datam de mais de 2300 anos. A Biosfera de Sian Ka’an alberga 859 espécies de plantas e 326 espécies de animais, sendo o segundo lugar mais importante para a reprodução de espécies de aves em perigo de extinção: a cegonha americana, a cegonha branca, algumas espécies de garça, o falcão peregrino, águia-pesqueira, águia branca e é o estabelecimento principal da garça albina. Das 326 espécies podemos encontrar 96 espécies de mamíferos tais como: 39 espécies de morcegos, duas de golfinhos, quatro de baleias, seis de tartarugas e ainda peixe-boi, puma, ocelote, onça, macacos aranha e o maior número de crocodilos no México.

Dos mais de 60 mil visitantes/ano, cerca de 70% são espanhóis. Os portugueses só ainda a conhecem pelo nome.

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