Fugas - Viagens

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    Amalfi Stefano Rellandini/Reuters
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  • Limão de Sorrento na horta do Don Alfonso
    Limão de Sorrento na horta do Don Alfonso DR
  • O ambiente de uma das noites do Festavico
    O ambiente de uma das noites do Festavico DR
  • Tortellini de queijo pimenta, amêijoas e funcho, do restaurante Quattro Passi
    Tortellini de queijo pimenta, amêijoas e funcho, do restaurante Quattro Passi DR

Da península de Sorrento à costa amalfitana: uma viagem gastro(e)motiva

Por Miguel Pires

A região da Campânia, no Sul de Itália, comporta alguns dos locais mais belos do mundo. Como se não bastasse, há queijos, citrinos, enchidos, massas e restaurantes de excepção. Vamos por estradas sinuosas com paisagens de tirar o fôlego e de abrir o apetite.

Quando o avião se aproxima do aeroporto de Nápoles vêem-se manchas brancas na encosta verdejante. O Monte Vesúvio está por perto mas ainda não se vislumbra no horizonte e não consta que alguma vez tenha expelido algo assim. São pedreiras. Provavelmente donde se extraíram parte dos recursos que ajudaram (e ajudam) a construir a Campânia, a segunda maior região italiana e a de maior densidade populacional.

É o terceiro ano consecutivo que visito a região, a Sul do país, ou, mais concretamente, na “canela” de Itália. O pretexto é a participação na Festavico, um festival gastronómico de características muito especiais, que decorre nos primeiros dias de Junho, em Vico Equense. Marcam presença nesta vila da península de Sorrento, a 40 quilómetros de Nápoles, alguns dos melhores chefs de cozinha do país, bem como outros ainda em busca de reconhecimento. O festival dura quatro dias com actividades divididas por diversos locais: junto à marina, numa estância balnear e no centro da localidade.

Os chefs emergentes entram em acção logo no primeiro dia, com degustações preparadas em bancas de cozinha armadas em estabelecimentos do centro da vila. Porém, não estão apenas em restaurantes e similares. Ocupam igualmente farmácias, lojas de roupa, agências de viagens, talhos, becos e esquinas das ruas principais. O resultado é um aglomerado de milhares de pessoas que percorrem as bancas, de copo, prato e senhas pré-compradas na mão. São raros os eventos e locais do mundo que se podem gabar de uma adesão popular tão massiva. Não se trata se uma festa de cozinha popular, mas sim em torno de propostas gastronómicas assentes na tradição, é certo, mas com um toque contemporâneo, por vezes bem arrojado.

Pela Festavico passam milhares de pessoas que não perdem a oportunidade de conviver com chefs e produtores de todo o país, num registo informal. Contudo, esta é uma região de grandes iguarias e óptimos restaurantes. Os queijos provolone, fiordilatte e a verdadeira mozzarella de búfala da Campânia, o limão de Sorrento, as massas e os enchidos locais são alguns dos exemplos que podem ser adquiridos directamente num produtor ou comprados e apreciados numa mercearia local. Igualmente de grande qualidade são os peixes e legumes, de águas e terras férteis em nutrientes. Uns e outros engrandecem a mesa, quer seja num restaurante simples na cidade, numa pizzaria, em locais históricos como o Hotel Caruso ou o Il San Pietro di Positano, ou ainda nos 2 estrelas Michelin da região, La Torre de Saracino (de Gennaro Esposito, o mentor da Festavico), Don Alfonso ou Quattro Passi. E o que dizer da doçaria local, da sfogliatella e dos gelados artesanais? Bom, não percamos o rumo.

Vico Equense é um bom porto de chegada e um bom ponto de partida para explorar as costas sorrentina e amalfitana e locais famosos como Sorrento, Amalfi, Positano, Ravello ou Praiano, já para não falar das ilhas de Ischia e de Capri, das ruínas de Pompeia, Nápoles ou o Vesúvio — o magnético e extinto vulcão que não nos deixa desviar o olhar, sempre que o encaramos, mesmo a quilómetros de distância.

Numa das manhãs estava prevista uma volta de barco pelo Golfo de Nápoles. Não acreditei que partisse a horas e acabei apeado. Porém, uma viagem que se perde, é uma outra que se ganha. Stefania e Fabio (ela proprietária do Il Luogo de Aimo e Nadia; ele um dos chefs, deste mítico restaurante de Milão) preparavam-se para sair de carro numa volta de reconhecimento pela região. Bastou uma porta aberta e as palavras mágicas, “Amalfi” e “Positano” para aceitar o convite.

De Amalfi a Positano

É sabido que os italianos são notáveis na arte de seduzir. Fico di Almafi era o nome do perfume que me fez imaginar num Alfa Romeo cabriolet dos anos 1960, com o vento pela cara, a serpentear a estrada nos montes escarpados da costiera amalfitana. A fantasia abrangia o casario encavalitado nas encostas, um empregado de laço escuro e casaco branco e um negroni num hotel com uma vista deslumbrante. Ah!, e um pôr do sol a compor o ramalhete, claro. Não é comum, mas por vezes a realidade ultrapassa mesmo a ficção. De facto, o cenário idílico junto à costa, numa estrada em curva e contracurva, supera o imaginário e até quase nos abstraímos que há vários pilotos de rali nas estradas e que o descapotável afinal é apenas um pequeno utilitário.

Stefania e Fabio tinham falado em almoçarmos no restaurante do Il San Pietro di Positano (Via Laurito, 2, Positano; tel.: +39 089 812080). A ignorância de entrar a bordo sem ter a viagem preparada tem as suas vantagens e o cenário com que nos deparamos torna-se ainda mais deslumbrante de surpresa. É difícil desviar o olhar da vila medieval de Positano, que se observa ao longe, a partir do terraço. Contudo, os detalhes neste mítico hotel de luxo dos anos 1970, encravado nas rochas, disputam a nossa atenção, como é o caso das escadas com desenhos ondulados a relva, a porta de latão com um enorme golfinho (reproduzido no logótipo do hotel), os apliques manufacturados por artesãos florentinos ou a mesa verde escura vinda de Portugal, cujos cantos irregulares lembram uma das rochas do local.

O restaurante do hotel, o Zass, tem uma estrela Michelin e a cozinha do chef Alois Vanlangenaeker é clássica e refinada. Porém, tal como a decoração do espaço, um ou outro prato podia ter um toque mais actual. Ainda assim, está à altura da comenda.

Depois do almoço, ainda há tempo para apanhar o elevador e descer os 90 metros que levam até à praia, apenas acessível a partir do hotel ou de barco. Apetece ficar por ali a tarde inteira, de negroni na mão, ou esperar para sermos raptados numa daquelas lanchas de madeira de frisos cromados. Acontece que La Dolce Vita era um filme e a realidade alerta-nos para o regresso. Vico Equense fica apenas a 22km, porém, com trânsito, a bela mas sinuosa estrada pode demorar mais de uma hora a percorrer.

Por Ravello

Muda o carro e os companheiros de viagem, mas não a paisagem ou o azul do Mediterrâneo. Desta vez o destino é Ravello e a viagem faz-se pela estrada que leva (e atravessa) ao parque regional do Monti Lattari, no lado oposto à costa. A vila, cuja fundação remonta ao século IV, é famosa pela sua localização privilegiada a 350 metros de altitude e pelo cenário da costa amalfitana em volta.

Local de veraneio de personalidades como Wagner, Miró, Toscanini, Bernstein, entre outros, Ravello parece guardar, ainda hoje, o encanto de outros tempos, com as suas casas grandiosas, várias delas transformadas em hotéis. Um deles é o Hotel Caruso ( Piazza San Giovanni del Toro, 2, 84010 Ravello; tel.: 39 089 858801), que já foi Orient-Express e que hoje pertence à cadeia Belmond. Vale muito a pena a visita — para não dizer a dormida —, ficar na preguiça (cuidado, a piscina infinita é uma tentação) e dali percorrer a vila a pé. O restaurante do hotel não tem estrela Michelin, mas os pratos assinados por Mimmo di Raffaele, entre o clássico e o contemporâneo, figuram entre o que de melhor comemos a este nível na região. Com uma ou outra excepção — como é o caso das raspas de trufa na massa scialatielli com berbigão —, di Raffaele procura trabalhar com produtos locais. Exemplo disso é o “Verão no jardim”, com um tártaro de gambas em boa companhia vegetal, ou a “fantasia de anchovas”, em que o pequeno peixe azul, de personalidade forte, é cozinhado de diversas formas.

Se houver tempo não se deve perder a pequena loja de vinhos Wine&Drugs, junto à praça central. O nome é despropositado, mas nada ali parece muito normal. A começar pela quantidade de vinhos de topo de centenas de euros e pela possibilidade de os provar sem pagar — isto se Branko, um dos sócios, estiver para aí virado.

Pizza a metro

Se os dois restaurantes anteriores podem servir como uma boa desculpa para visitar alguns dos lugares mais emblemáticos da Costa de Amalfi e de Sorrento, há pelo menos outros três que valem a viagem por si só.

Junto à praia de Seiano, num antigo farol de vigia do século VIII, em Vico Equense, fica o Torre del Saracino (Via Torretta, 9, Località Marina d’Aequa, Vico Equense; tel.: +39 081 802 8555), um dos melhores restaurantes de Itália. Gennaro Esposito, o grande mentor da Festavico, é a alma deste espaço e um dos exemplos claros de como se pode ser criativo e inovador com as raízes assentes na tradição. Com técnicas clássicas ou modernas, a sua cozinha tem um estilo e a marca de um lugar. Em ambos os casos o foco é o mesmo: o produto da região, sabor e uma forte presença do mar. Prove-se a sopa de espargos com ostras e ouriços do mar, o salmonete com crosta de pão, molho pesto e pinhões ou a sopa de várias massas e marisco — uma lição de como um prato pobre, feito com sobras de massas, pode ganhar uma outra solenidade. Para finalizar, não há como fugir ao babá com creme inglês e frutos vermelhos.

Nerano,reúne algumas das melhores praias da costa amalfitana e, por isso, é local de paragem de muitos multimilionários que ali chegam nos seus iates. Alguns são clientes do Quattro Passi (Via A. Vespucci 13/N, Nerano; tel.: +39 081 80838 00), inclusive com direito a recorte de notícia de jornal na parede, junto da foto em que António Mellino, o chef proprietário da casa, posa ao lado de Vladimir Putin. Fait divers à parte, destaque-se a cozinha de Mellino, sobretudo pela forma notável com que trabalha alguns pratos clássicos actualizados, como a lasanha napolitana, o panzaroto (uma espécie de calzone com ricotta e mozzarella fumada), o linguine Nerano (prato tradicional da região com curgete) ou um simples prato de cicinelli — uma espécie de “jaquinzinhos” locais, alinhados com uns apontamentos de puré de limão confitado.

O terceiro o vértice deste triângulo duplamente estrelado é o Don Alfonso (Corso Sant’Agata, 11, Sant’Agata sui Due Golfi; tel.: +39 081 878 0026), no interior da península de Sorrento. Trata-se de uma verdadeira instituição em Itália (com ramificações ao Dubai e a Macau), sendo procurado não apenas por causa do restaurante, mas, também, pelas actividades criadas em seu torno, como sejam as aulas de cozinha, a visita à impressionante adega ou a compra de produtos emblemáticos da casa, como o limoncello, as massas ou o azeite. Menos conhecida, mas muito interessante, é a oportunidade de visitar (por marcação) a horta donde provêm muitos dos produtos da casa. Para se perceber a importância que lhe é dada, refira-se que foi vendida uma das casas de família para comprar esta propriedade que se desenvolve por patamares, junto ao mar, com uma vista incrível para a ilha de Capri. Na quinta existe uma pequena casa com cerca de 400 anos que nunca foi recuperada. É que, como nos confessa com orgulho o nosso guia, “todo o investimento é absorvido pela horta”,  que comporta vários hectares de oliveiras e limoeiros.

Mas viajar pelas costas de Amalfi e Sorrento não significa passar os dias a comer em restaurantes de topo (onde os preços médios andam entre os 100€ e os 200€ por pessoa). Existem muitos restaurantes simples e acessíveis onde se pode comer bem, sobretudo nas pequenas localidades. Entre eles estão as populares pizzarias e entre elas a Pizza a Metro da Gigino (Via Nicotera, 15, Vico Equense; tel.: +39 081 87988309), também conhecida como a Universidade da Pizza. O nome vem do formato ao comprido, uma tradição única no país, criado nos anos 1930 e que chegou aos dias de hoje com enorme sucesso, a ver pelos 1400 lugares que comporta o restaurante.

Às compras

Antes de abandonar a região é impossível não querer levar alguns produtos de excelência que aqui se produzem. Para tal, há que saber onde comprá-los, de modo a evitar as habituais armadilhas para turista. Na loja da Caseificio de Fernando de Gennaro (Via R. Bosco 956 - Loc. Seiano - Vico Equense; tel.: +39 081 8028185) vendem-se queijos produzidos artesanalmente ali, há cinco gerações. De todos destacam-se a fiordilatte (semelhante ao mozarella mas feito com leite de vaca) e o provolone del Mónaco DOP. Este último, também de leite de vaca (com 35% proveniente de raça charolesa), passa por um período de cura mínimo de seis meses, que lhe dá um sabor intenso e concentrado, além de um ligeiro pico no céu da boca. Imagine-se a potência de um provolone destes com um ano de cura, ou ainda mais, com oito anos!, como os que se encontram em estágio, às dezenas e dezenas, na cave da queijaria.

É por estes lados que Gennaro Esposito abastece o seu restaurante Torre del Saracino, tal como no La Tradizione (Via R. Bosco, 969 Vico Equense; tel.:+39 081 8029791), onde se encontra tudo o que de melhor se produz na Campânia (e não só). A loja é próxima do Hotel Moon Valey e uma vez encontrada deixe-se guiar pelos proprietários Salvatore de Gennaro e Annamaria Cuomo — com direito a experimentar a mercadoria ou mesmo uma refeição ligeira. Queijos, vinhos, enchidos, grappas, azeites, diversos tipos de pão e massas artesanais de Gragnano são algumas dos produtos que preenchem as prateleiras, na sua maioria provenientes de pequenos produtores.

É hora de deixar para trás Vico, Amalfi, Positano, Ravello e a magnética imagem do Vesúvio. No regresso ao aeroporto, o descapotável que no imaginário serpenteava as estradas da costa amalfitana transformou-se de súbito num furgão. As imagens ficam na memória e os sabores também. Contudo, o melhor mesmo é trazer alguns na mala. É que Festavico, só no próximo ano.

GUIA PRÁTICO

Como ir

Não existem voos directos para Nápoles. As melhores opções são pela TAP, via Veneza; TAP até Roma e, depois, de Alitalia para Nápoles; Ibéria, via Madrid; ou Lufthansa via Frankfurt. Uma boa opção poderá passar por apanhar um voo para Roma e depois um comboio rápido para Nápoles.

Onde dormir

Na Costa de Amalfi e de Sorrento existem vários hotéis de luxo, com vistas esplêndidas e preços em consonância (por exemplo, no Il SanPietro de Postiano um quarto varia entre 660€ e 1800€). Mesmo num hotel simples, dificilmente se consegue um quarto, nesta época, por menos de 100€. A solução é procurar acomodamento numa das localidades menos sonantes, como Vico Equense, por exemplo.

Deslocações

Uma vez chegados Nápoles é fundamental alugar um carro, num dos postos do aeroporto ou da cidade, para poder percorrer a região. Para distâncias curtas, o autocarro é uma solução, ainda que os horários não sejam muito fiáveis.

O que comprar

Queijos, massas, vinho, limoncello (licor de limão) e enchidos. O queijo mozzarella vende-se devidamente acondicionado em caixas de esferovite. Contudo, o facto de primeiro ser embalado em sacos de plástico, com soro liquido, impede o seu transporte no interior do avião, pelo que é necessário ser despachado no porão, especialmente em voos com ligações.

A Fugas viajou a convite da Festavico

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