É José Dias Martins quem o diz a propósito da sua alfarrobeira de 600 anos de idade, uma árvore monumental, classificada como de interesse público e, portanto, protegida por lei: “Olhamos para uma coisa viva e faz-nos pensar, não é um castelo imóvel.” Mas num país de castelos e outros monumentos construídos, poucas vezes, porém, se atribui o mesmo valor aos monumentos vivos que a natureza nos legou, amiúde “impiedosamente sacrificados”, como se lia na lei de 1938, a mais antiga da Europa, que passou a oferecer protecção às árvores. Não a árvores quaisquer, às árvores monumentais, que, de acordo com a descrição do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), “apresentam um valor patrimonial elevado, tendo algumas delas ligação directa com a nossa história e cultura”.
São árvores que se distinguem de outras da sua espécie “pelo porte, desenho, idade, raridade, interesse histórico ou paisagístico”. Ou seja, por questões como altura ou perímetro do tronco ou ainda diâmetro da copa; pela idade que pode ser a de Cristo, a da fundação da nacionalidade ou dos descobrimentos, por exemplo; pelas formas excêntricas que tomaram; por serem testemunhos de lendas e mitos. Durante dois anos, viveram num vazio legal que deixou vulneráveis as 472 árvores isoladas e 82 arvoredos que estão classificados como de interesse público, mas em finais de Junho foi finalmente regulamentada a nova lei de 2012.
Nós fomos conhecer parte deste património, seguindo a informação da base de dados do ICNF e da associação Árvores de Portugal, e perceber como sobrevivem estes “gigantes” da nossa natureza. Se aprendemos com a canção que uma árvore, qualquer árvore, é um amigo, descobrimos que estas são referências para as suas comunidades, testemunhas imóveis do tempo, abrigo de aves e outros animais desde tempos imemoriais, senhoras de frondosa sombra ou altiva postura, contadoras de história e estórias, guardadoras de meninices muitas. Há quem lhes guarde um espaço muito especial nas suas memórias e há quem não as mire duas vezes — mas há quem venha de fora só para as ver, como nos contam muitos dos que convivem com elas.
Carvalho-alvarinho | Calvos, Póvoa de Lanhoso
Esperávamos um carvalho-alvarinho (Quercus robur L.) monumental, não um parque construído em seu redor, tão natural que parecera de sempre. Mas a autarquia da Póvoa de Lanhoso não fez por menos: protegeu o seu monumento natural numa redoma idílica, onde nesta tarde crianças de um ATL brincam em actividades de férias organizadas pelo Centro Ambiental (CA) da Póvoa de Lanhoso, que tem a sua sede num edifício moderno, cheio de vidro, aqui. Correm como se não houvesse amanhã sobre a erva (prado) impecavelmente aparada e não têm hesitações quanto a saltarem a pequena cerca que estabelece o perímetro de segurança do carvalho-alvarinho, que acompanha a projecção da copa e corresponde às suas raízes, cuja área não devia ser pisoteada. Afinal, trata-se de um exemplar referenciado como tendo 500 anos (o que já faz dele o mais antigo da Península Ibérica e o segundo da Europa), mas que um estudo posterior da Universidade de Coimbra datou em 700 anos. Foi há dois anos que um grupo inglês, de uma associação de apreciadores de árvores, questionou a “juventude” do carvalho; a reavaliação subsequente deu-lhes razão. “A idade não está actualizada no site do ICNF porque não demos feedback”, explica Manuela Freitas, engenheira florestal, a trabalhar no CA.
A vetustez da árvore é perceptível claramente — as dimensões não enganam (29 metros de altura para 33,90 metros de diâmetro de copa), a cavidade é imensa e os ramos desdobram-se em ramos que se desdobram em mais. Parece que o peso da idade já é grande (foi perdendo ramos devido ao peso, mas este literal) e, com as suas escoras, lembra um respeitável ancião de muletas. Contudo, este é mais um caso em que as aparências enganam: já cresce pouco, nota Manuela Freitas, mas em termos de vitalidade nenhuma outra árvore em redor o bate: é aquele onde as folhas primeiro rebentam e onde são mais verdes. Na semana anterior, caiu-lhe um cano: devido ao seu estatuto, foram feitas fotografias, enviadas à entidade competente que deu luz verde à intervenção. No entanto, além dos danos causados por temporais, poucos problemas tem. Manuela Freitas, que o conhece desde menina, quando ele estava no meio de floresta indiferenciada mas era já um marco incontornável — ponto preferido das gentes da terra para fazer churrascos e colocar baloiços improvisados, lembra —, crê na sua capacidade de resistência. “Já revestiram a cratera [interna] a cimento, já expulsaram de lá colmeias à base de fumo, já fizeram fogueiras...” Isto e muito mais aguentou o carvalho de Calvos.
Em 1997, quando foi classificado como Árvore de Interesse Público, a área em seu redor foi transformada num parque — de lazer mas com um propósito educativo e de sensibilização ambiental muito vincado. A construção do centro, em 2005, veio complementar a oferta nesta vertente (que inclui uma horta biológica e comunitária e um jardim de aromáticas), juntando-se às típicas de lazer, como um parque infantil, um bar, posto de turismo, balneários e até um circuito de manutenção. “Este não será para manter”, conta Melissa Costa, engenheira do ambiente, responsável do CA, “a ideia é que seja só lazer e focado no carvalho e no ecossistema florestal”. Pelo mesmo motivo, aliás, não se avançou com a ideia de criar uma lagoa artificial, isto apesar de até há cerca de dois anos haver quem chegasse com piscinas insufláveis e alicates para aceder aos pontos de água, prontos para passar o dia.
Alguns terão visto um ou até os dois esquilos esquivos que habitam o parque, o Tico e o Teco, utilizados para explicar às crianças a idade do carvalho, “a casa dos esquilos”. E se há muita gente na Póvoa de Lanhoso que não conhece o carvalho também há quem aproveite o período dos exames para estudar nas suas redondezas. E houve uma mulher que há uns anos se enfiou lá dentro, recusando-se a sair — só a presença do marido a fez abandonar o conforto do carvalho.
Castanheiro | Tresminas, Vila Pouca de Aguiar
Andámos atrás de um castanheiro (Castanea sativa L.) de 500 anos e 14,50 metros de diâmetro à altura do peito, o que o torna uma das árvores referenciadas mais grossas de Portugal, e acabámos por encontrá-lo mais a um poldro recém-nascido. Contudo, é toda uma pequena odisseia, a de encontrar os proprietários do terreno na aldeia de Vales. Vale-nos Laureano Borges e a mulher, Maria Adelaide Marques, que vêm a passar com a Rola (“uma burra velha”) a puxar a carroça. “Tantas vezes brinquei lá dentro do castanheiro... Agora já não tenho pernas para lá entrar.” Era no tempo em que havia muitas crianças aqui em Vales e o castanheiro, oco (“dizem que cabe uma cama”), ponto de referência de brincadeiras. “Há pouco tempo veio um grupo de miúdos ver o castanheiro”, recorda, “mas viram a Rola e saltaram para a carroça. Andei a passeá-los.” A burra divertiu-os mais do que o castanheiro — o pai de Laureano dizia que os avós já o tinham conhecido assim, de grande. “Só ele carregava um camião [de castanhas]. Hoje é o filho que dá mais.” “E vocês deviam ter entrado no terreno”, diz. “Toda a gente o faz.”
Fernanda Marques, a proprietária, há-de confirmá-lo. Aparece pouco depois e fica visivelmente feliz com o “protagonismo” do seu castanheiro. No terreno onde ele está — “é só abrir assim, vêem?” — tem a surpresa do dia, em dois andamentos. “Ah, a égua pariu!... Que engraçado, que giro! O meu neto vai gostar”; “Que susto! Pensei que paria daqui a dois meses. Se não fossem vocês só sabia à noite.”
De longe, o castanheiro é monumental pela copa alta e ampla, de perto a essa sensação soma-se a da solidez do tronco que são já dois juntos — a do tal “filho” que agora produz mais. “Este dinossauro” — é Fernando Marques, o marido, que entretanto se nos junta, que o diz — “produz na parte velha castanhas longal e no filhote côta”. Sabe bem do que fala este agricultor que durante 28 anos foi presidente da junta de Tresminas: possui vários soutos. “Fazemos plantação em todos os terrenos. Para apanhar castanhas ainda arranjamos pessoal, para lavrar é que não”, explica a mulher, Fernanda.
Neste terreno, além do castanheiro multissecular, há outros, uns mais antigos e outros “acabados” de plantar, que é como quem diz, há quatro anos (“este ano já vão dar mostra do que são”). “Nascem bravos e fazemos enxerto do que queremos” — estes novos são todos de castanha judia, “a que enche mais olho”. Contudo, foi pelo velho castanheiro que compraram o pedaço de terra. O filho, que estudou na UTAD, trazia muitos amigos para o ver, mas quando a antiga proprietária começou a levantar problemas decidiram fazer uma oferta — e agora é o nome de Fernando Baptista Marques que figura na placa de identificação que está no castanheiro juntamente com as características que o tornam especial. Fernando Marques acredita que ele terá sido plantado por romanos, que em Tresminas tiveram a maior exploração mineira a céu aberto da Península Ibérica, mesmo que estudos o contradigam. “Falei com biólogos. Do que eu ouvi, os romanos trouxeram-nos para aqui, mas os castanheiros de hoje já não seriam da época deles. Eu atiro este para os romanos: o meu avô dizia que isto demora tanto a fazer como a desfazer. Já viram a toca [cavidade] deste?”
Fernando adora castanheiros, gosta de caminhar entre eles e ainda se deslumbra quando passa pelos poucos castanheiros bravos nesta região DOP de Paradela e os vê floridos. “Ainda há pouco tempo vi um à saída de Granja e disse à minha mulher que merecia uma fotografia.” Estava com as “candeias acesas” — as flores abertas. “São autênticos monumentos, para quem gosta de árvores.” Ao seu, já veio mais gente vê-lo, camionetas, cheias, conta Fernanda. Vale a pena — afinal, castanheiros com esta idade são raros, já que a doença da tinta e o cancro do castanheiro dizimam exemplares monumentais por todo o país.
Eucalipto | Contige, Sátão
“Quem vê ao longe não diz o que é”, dissera-nos Ana Isabel Garcia, ao balcão da Padaria Rabiscos Doces. O nosso avistamento, do cimo da estrada de casario baixo, desmente-a. É verdade que há algo de cinematográfico quando nos aproximamos, como se este ganhasse uma dimensão mais medível; contudo, ao longe já assoma como uma presença imponente, para onde convergem todas as atenções. Está na desembocadura da rua, onde ela se bifurca, com uma copa tão grande que parece que a fecha. Não há qualquer placa a identificar o eucalipto (Eucalyptus globulus Labill) que aqui se ergue como uma “árvore monumental”, protegida por lei. “É o que achamos que falta”, avisara Ana Isabel, “nós aqui sabemos, mas crescemos com ele, nem nos apercebemos do que temos. Há quem não o valorize.”
O seu tronco parece que ganha vida quando estamos junto dele, uma parede rugosa, com dobras, e ramos que dele partem para compor uma cobertura frondosa, fresca. Mas é também junto do tronco, que à altura do peito tem um perímetro de 11 metros (o que o torna um dos mais grossos de Portugal), que percebemos que está maculado como se fora um placard de anúncios, no caso das festas do nosso querido Verão. É normal, diz-nos José Carlos, da vizinha Travassinho, que pára o seu Opel Astra negro modelo antigo quando nos vê em volta da árvore. “Já fizemos a experiência de abraçar a árvore”, conta, “sete homens num cordão humano, há 10 anos”. Sim, é histórica, ele sabe-o: “Mas já tivemos um carvalho monumental, aqui perto, e um empreiteiro descarregava areia do mar e secou-o”, remata.
O eucalipto de Sátão está bem vivo. “Em Dezembro, Janeiro, Fevereiro está a florir e o cheirinho... Nem preciso de aspirina para gripe.” Quem o diz é Maria de Fátima, a atender os clientes ali na vizinha Agrofertil, a dois passos da casa onde vive com o marido há 14 anos, desde que regressaram da Alemanha, voltada para o eucalipto. “Estou rodeada de eucaliptos”, brinca. Sabe, contudo, que aquele é especial, “é protegido” e até já teve “um senhor do ambiente” a pedir-lhe que avisasse as autoridades sempre que alguém lhe colocasse pregos ou agrafos. “Nunca o fiz.”
As histórias que conhece do eucalipto são quase todas ouvidas do seu marido, 57 anos, que “em pequenino” ali brincava, “metia-se dentro do tronco, num buraco”. É que, continua, “por baixo tinha o dobro da largura”, antes de ter sido feito o aterro para a estrada, que era de terra batida e agora é de alcatrão. Sabe também que o padre da freguesia sempre foi um cuidador informal do eucalipto. “Quando alguém fazia um furo para poço avisava ‘Vejam lá se não apanham nenhuma raiz do eucalipto’ e antes, quando o autocarro ali parava e as pessoas acendiam fogo sob a árvore para se aquecerem, o padre dizia para não o fazerem.”
O marido sempre se lembra do eucalipto assim, tal como hoje o vemos; Maria de Fátima crê que está mais bonito, com as pernadas secas limpas, as folhas velhas limpas. A única coisa que fazia de diferente era uma rotunda onde a árvore pudesse exibir-se como um diamante num anel. “A câmara sabe o que tem aqui”, considera, até passam rotas de caminhadas pelo eucalipto. Franceses, alemães, suíços são os que mais o visitam — palavra de Maria de Fátima.
Eucalipto | Mata Nacional de Vale de Canas, Coimbra
Quando, numa madrugada de Agosto de 2005, as chamas invadiram a cidade de Coimbra, uma das suas portas de entrada foi a Mata Nacional de Vale de Canas. O incêndio terá consumido 80% da área da mata nacional e quem viu o antes e o depois não esquece. Cacilda, funcionária do ICNF, a trabalhar aqui há quase 20 anos, continua a limpar e a cuidar de tudo, agora sozinha, e não tem dúvidas de que para ela o especial aqui são as árvores que se estão a desenvolver, as que ela plantou. De tesoura e enxada sempre à mão, confessa: “Pensei que demorasse mais. A gente plantou muito e também houve sementes que depois cresceram, que ficaram na terra.” Por isso, sabe indicar-nos o caminho para o eucalipto (Eucalyptus diversicolor F. Muell) que é a “estrela” da mata — estrela mas pouco, porque apesar dos 72 metros de altura lhe darem o estatuto de árvore mais alta de Portugal (alguns dizem mesmo da Europa) não tem qualquer sinalização e chegar até ele é uma mini-aventura —, embora o faça com alguma indiferença. Confessamos que não fora a ajuda de um passeante matinal talvez não o encontrássemos. É que da área ajardinada que nos recebe ao eucalipto há zona florestada pelo meio e as indicações que um quadro de informação nos dá não são claras.
Agradecemos, portanto, a gentileza de estranhos que nos leva até ao corte na estrada — entre o jardim e esta zona passa uma estrada — a partir do qual só temos de descer entre curvas apertadas em caminho de terra batida. Cacilda havia falado do “tanque-piscina” que será quase o X na nossa busca pelo tesouro. Está num largo em frente a ele, com uma araucária ao lado, dissera-nos. O carro fica junto de uma mesa de piquenique, a (aparentemente) única sobrevivente do incêndio: o tanque está um pouco à frente, pedra gasta e água verde escura; do outro lado uma clareira onde o X é um I gigante, tronco escamado com longas tiras a penderem, largo na base e estreitando-se à medida que a ramagem se multiplica — nunca se abre em copa, os seus ramos demasiado curtos para tal, carregados com folhagem que aqui de baixo, com o sol a bater-lhe, até parece negra.
“Infeliz ou felizmente nunca teve identificação”, diz-nos a figura primeiro imóvel, minúscula ao seu lado, contemplando o vale, mata densa e de verdes variáveis. Bruno Vilas trabalhou na limpeza da mata durante muitos anos e a sua tese de licenciatura até foi sobre o Vale de Canas mas hoje está aqui de férias. Já não vinha há uns anos, veio em modo caminhante, com um “cajado” e tudo. “Gosto da mata, da paz de espírito extraordinária.” Sobretudo num dia de semana, diz, ao fim-de-semana há muita gente do geocaching, “que pergunta pelo eucalipto mais alto”, e do BTT, “porque há muitos trilhos por aqui” — parecem-nos invisíveis, mesmo quando ele aponta um carreiro onde antes do incêndio havia um parque de merendas.
“Este eucalipto é de origem australiana”, explica, e foi plantado há cem anos, antes não existiam eucaliptos aqui. “Fizeram praticamente uma barreira”, conta, “mas a maior parte já não são dessa altura, também arderam. Estes são exemplares únicos”. Foram os eucaliptos que o rodeavam, e que começam novamente a rodeá-lo, que obrigaram este eucalipto a crescer tanto em altura, “para competir pela luz”, há-de explicar-nos Pedro Santos, da associação Árvores de Portugal. Apesar deste eucalipto e de outros que também chegam aos 70 metros (um aqui perto deixou-nos, aliás, na dúvida quanto ao maior), da floresta e do jardim (com parque infantil, centro de interpretação, parque de merendas, churrasqueira e pontos de água) no patamar superior, “aqui em Coimbra é mais conhecida a Mata do Choupal”, nota Bruno Vilas. Não demonstra importar-se com isso quando novamente põe pés à estrada e sobe o caminho de terra batida, erguendo-se lentamente sobre o mar de árvores que parecem todas ter um tamanho invulgar, como se este fosse um vale especialmente fértil. Ou encantado.
Plátano | Quinta da Fôja, Santana, Figueira da Foz
É nome de aldeia, mas também é nome de propriedade e, na verdade, antes da aldeia houve mesmo a Quinta da Foja, pertença de frades crúzios desde o reinado de D. Afonso Henriques. Quando as ordens religiosas foram extintas, a propriedade foi vendida, com excepção das zonas de floresta, que ficaram nas mãos do Estado. Mas não é a floresta que nos traz a estas paragens: o plátano (Platanus orientalis L. var. acerifolia Aiton) que buscamos está na propriedade privada. Melhor, está na parte mais privada da propriedade, num jardim delimitado pelos edifícios principais da casa.
À volta os campos estendem-se a perder de vista, sobrevoados por ocasionais flamingos e cegonhas (há um ninho num poste de electricidade mesmo à entrada da quinta). Máquinas colhem batatas, mas a maior produção aqui é de arroz — é um dos maiores produtores do Baixo Mondego e já deu emprego a grande parte da população da vizinhança. “Produzia-se tudo, até vinho”, confirma Emília Lourenço, funcionária da quinta e guia improvisada. O seu escritório está na órbita da casa principal: um portão dá acesso a este espaço, delimitado por edifícios baixos que foram dependências agrícolas, uma capela (dedicada a Nossa Senhora da Conceição com a campa do prior geral da Congregação Crúzia) e com a fachada austera, com duas torres quadradas, a tutelar tudo — no centro, um relvado imenso sem árvores.
Não é comum receber-se pedidos para visitar a árvore cuja copa ocupa todo o espaço livre no quadrado ajardinado por detrás da “casa grande”: o tronco está no centro, a partir dele desenham-se caminhos entre canteiros de hortênsias e jarros delimitados com buxo. Não é o plátano mais alto de Portugal, mas é o mais grosso e o que apresenta, provavelmente, o maior volume de copa, tornando-o no mais majestoso. Esta é a informação que a Árvores de Portugal nos compilou: a majestade está lá, com a copa a subir, carnosa e verde escuro, falta apenas alguma amplitude à nossa visão — é impossível porque há edifícios a toda a volta (ao longe, da auto-estrada, iremos ver parte da copa por detrás de telhados).
Temos sorte: parte da família, que não vive aqui a tempo inteiro, está na casa, mas noutro jardim. Muitas vezes, fazem churrascos neste jardim, à sombra do plátano, uma das pernadas a servir de suporte para um baloiço, corda a segurar uma tábua de madeira, virado para as cavalariças, outras apoiadas em escoras. Tem a companhia de magnólias (uma tombou durante um temporal) e até uma nespereira e uma laranjeira (laranjas azedas que são utilizadas para compotas) dificultando destrinçar umas copas das outras — o resultado é uma frescura impenetrável.
Pinheiro-bravo | Mata Nacional de Leiria, Talhão 273, Parcela A, Marinha Grande
Os nomes pelos quais é conhecido são por si só evocadores: pinheiro-serpente, pinheiro-rastejante. É, na verdade, um pinheiro-bravo (Pinus pinaster Aiton) que a proximidade com o litoral desenhou com formas caprichosamente rasteiras ao solo: o vento que sopra do mar ali ao lado, a salinidade do solo, condicionaram o seu crescimento, que é uma perplexidade da natureza perante a sua própria resistência e adaptabilidade. Há um, aquele que buscamos, que se destaca pela complexidade estética; mas garantimos que não é o único “rastejante” destas matas, as formas excêntricas não são incomuns nas redondezas.
A neblina que deveria ter sido só matinal afinal acompanha todo o dia no litoral centro português. Está um “dia atlântico” quando seguimos com o mar ao lado, serpenteando entre este e pinhais — não uns quaisquer, o mítico pinhal de Leiria, ou pinhal do rei (na verdade, Mata Nacional), que a tradição diz ter sido mandado plantar por D.Dinis e fornecido a matéria-prima para as caravelas portuguesas. De qualquer forma, está um dia apropriado para mitos e Fernando Pessoa, na suaMensagem, vem-nos à cabeça, quando fala do “plantador de naus a haver”, que escuta o “rumor dos pinhais”, que são como “o trigo de um império”: “É o som presente desse mar futuro,/ É a voz da terra ansiando pelo mar.”
É pela Estrada Atlântica, então, até uma placa nos desviar por um caminho de terra batida: “pinheiro bravo”, lemos num relance só a confirmar o que as coordenadas GPS nos dizem. São elas que nós levam até ao pinheiro exacto, já que não surge mais nenhuma informação e pinheiros bravos é o que mais há aqui, invadindo tudo para lá do caminho que desemboca num areal. Este pinheiro, contudo, é um prodígio de formas, como se moldado por uma criança de criatividade hiperactiva. E indecisa: numa parte vemos uma cabeça de polvo com olhos semicerrados, noutra um crocodilo de olhos arregalados; ali está um elefante bebé com a tromba enrolada e aqui, só agora reparamos, está um dragão sem rosto, só mandíbulas; os chifres de um veado destacam-se para cima, mas os olhos voltam inevitavelmente ao solo, porque noutro ângulo descortinamos o monstro do lago Ness e logo atrás uma jibóia saciada.
Sim, é impossível a nossa imaginação não soltar amarras, como quando seguimos nuvens que pintam o céu, perante esta imagem. Mas aqui não tiramos os olhos do solo, seguindo o tronco rasante, que se bifurca amiúde, desvendando arcos e curvas; as raízes são várias, misturadas, não lineares, e a ramagem, numa e noutra extremidade, é quase irrelevante. Mas ainda conseguimos imaginar um guarda-sol numa delas.
Freixo | São Salvador da Aramanha, Portagem, Marvão
Marvão mira-nos imperturbável do seu ninho de águias, porque aos seus pés nos detemos. A alameda de freixos (Fraxinus angustifolia Vahl) no lugar de São Salvador da Aramanha (Portagem) na estrada 246-1 (que liga Marvão a Castelo de Vide) é o motivo: 1,1 quilómetros com exemplares de 200 anos, altos (e altivos). “De noite parece outra coisa”, avisa Guilhermino Fernandes, “a cuidar de árvores há 30 anos”. Encontramo-lo com o colega José Campinho a cuidar dos freixos, agora sob alçada das Estradas de Portugal, empresa de que eles são funcionários. Guilhermino está pintá-los: balde de cal no chão, escova na mão, de cima-para-baixo-de-baixo-para-cima, a preencher uma lista bem larga no tronco — “Se não estiver pintado não chama tanto a atenção”. José, machado na mão, anda agora a limpar os troncos, a cortar-lhes os “raminhos” que vão nascendo e tirando-lhes força — “além de que fica mais bonito, mais certinho”.
Andam há seis ou sete dias neste trabalho. “De ano a ano fazemos este serviço, sempre no Verão”, contam. “Isto teve uma intervenção grande aqui há dois anos, mas já está a precisar de mais”, notam. José aponta para o alto de alguns freixos: “Aqueles raminhos também deviam ser cortados, mas não posso.” Ou melhor, poder até pode, mas tudo “supervisionado por técnicos”.
De vez em quando caem pernadas, mais uma vez apontam um freixo, com uma parte seca, outros, com os temporais, caem ou racham-se a meio (“não é normal, mas acontece”) e há dois anos tiveram de ser abatidos 35. Plantaram-se alguns, que se distinguem bem entre a imponência dos troncos altos, alinhados como que criando uma ilusão óptica de simetria que é, realmente, acentuada pelas listas brancas ainda frescas. Os jovens têm troncos mais finos do que os ramos mais finos destes freixos de 200 anos e estão envoltos num plástico verde que os protegem. Ainda assim, e embora tenha sido utilizado um “material próprio para manter as árvores frescas antes de começarem a pegar as raízes”, alguns “não aguentaram” e são agora espaços em branco na sucessão de troncos. Outros espaços vazios são opção: a estrada aqui é demasiado estreita para as exigências modernas — e esta via, que liga a Espanha, até tem muito trânsito, camiões incluídos. Assistimos a várias situações complicadas quando se cruzam viaturas e foi a pensar nestas ocasiões que não se substituíram algumas das árvores mortas, criando-se espaços de escapatória.
Com todas estas vicissitudes, que são ameaças à sua sobrevivência — a que chegou a somar-se a construção de um campo de golfe, entretanto abandonado (e irreconhecível), que gerou polémica pelo impacto que poderia ter nas árvores desse lado —, a alameda mantém 258 freixos. Não os contamos, confiamos em José. É um postal turístico da região e o efeito que cria talvez a torne na alameda mais fotografada de Portugal, diz quem sabe. Herança de um tempo em que “a extinta Junta Autónoma de Estradas tinha preocupações paisagísticas, traduzidas num plano de arborização das nossas principais estradas”, sublinha Pedro Santos.
Sobreiro | Montargil, Ponte de Sor
Vemo-lo como se fora um bonsai gigante: o tronco largo, os ramos a comporem um bouquet de muitas copas a juntarem-se numa só (24 metros de diâmetro). Fôramos nós gigantes e cuidaríamos dele com todo cuidado, podando aqui e ali para que mantivesse a sua forma. Como não somos gigantes, e o sobreiro (Quercus suber L.) de Montalvo (em Montargil, Ponte de Sor, a espreitar a albufeira e a escutar badalos de rebanhos ao longe) nem sequer precisa de cuidados, contemplamo-lo apenas, em quieta admiração pela sua atitude soberana perante o montado em redor. Está protegido por uma cerca de arame farpado, que evita que o gado da herdade (está em propriedade privada) onde se encontra procure a sua sombra para apascentar, desgastando assim o solo onde as suas raízes mergulham há 500 anos. Mergulham e já rasgam o solo, na verdade: da sua base, já com cavidades, saem raízes descobertas.
Não sabemos se é um dos motivos para a sua notável saúde, mas, pelo que é de conhecimento público, este sobreiro constitui uma excepção não só pela idade, como também pelo facto de nunca ter sido descortiçado. Num país que tem no sobreiro a árvore nacional, não faltam exemplares notáveis. Mesmo aqui em Montargil, por exemplo, encontra-se o sobreiro escolhido para a sequenciação do genoma desta espécie, no âmbito do projecto GenoSuber, que vai permitir descobrir indicadores que ajudem a melhorar a produção de cortiça. Esse sobreiro tem entre 120 e 150 anos e está na Herdade dos Leitões que, coincidentemente, dá título a uma das obras do engenheiro silvicultor Vieira Natividade, tido como um dos grandes especialistas do século XX em ciências florestais (nomeadamente na cultura do sobreiro), Devotion Subericale - Les Herdades de Leitões et Montalvo (1960). O sobreiro de Montalvo, contudo, do alto dos seus 500 anos, cheios de vitalidade e beleza cénica, é o exemplar que faz a capa da obra.
Oliveira | Serpa
Chegar a Serpa à procura de uma oliveira (Olea europaea L.) milenar não é tarefa fácil. Não porque estas sejam raras: o problema é precisamente esse — são várias as que se encontram na cidade. E isto sem falar nos olivais em redor, que continuam a ostentar vários exemplares seculares e milenares, apesar de uma certa razia nos últimos anos. É que se têm perdido muitos exemplares, repetem-nos junto da estátua Abade Correia da Serra, botânico e diplomata do século XVIII, fundador da Academia das Ciências de Lisboa nascido em Serpa, que tutela um pequeno jardim onde estão duas oliveiras classificadas em 2001. “De vez em quando, passam camiões TIR com as árvores”, conta Manuel Zarcos, no Café Cantinho do Jardim, “os espanhóis pagam bastante por elas”. Haveremos de voltar a ouvi-lo de José Neca, sentado num dos bancos da alameda, vista directa para as oliveiras: “Em Espanha é proibido arrancar estas oliveiras.”
Neste pequeno jardim há três oliveiras, ainda que só duas sejam classificadas, as que estão viradas para a rua, cada uma do lado do busto. A mais próxima, do seu lado direito tem uma copa viva sobre um tronco largo e aberto, com rebento — e é como se esse estivesse a abrigar o progenitor, tronco tão ondulado que é rugoso mas ao mesmo tempo suave. A do lado esquerdo tem menos copa, o tronco é menos largo mas tão aberto e “escavado” como o da primeira. A terceira oliveira, não classificada, por detrás do busto, é a que tem a forma mais excêntrica, um tronco com tendências horizontais, torcendo-se e retorcendo-se antes de se erguer, timidamente, numa copa pouco abundante.
A ironia é que estas oliveiras — como as que encontramos junto do aqueduto e da Praça 25 de Abril, igualmente milenares — também foram elas transplantadas quando se fez o jardim. “Há velhotes que sabem de onde vêm, quem as trouxe...”, diz Manuel Zarcos. José Barrocas é um deles. “A mais grossa veio de um olival à saída de Serpa, a caminho de Moura, aqui a dois quilómetros. A outra veio da herdade da Bemposta...” Não sabe em que ano: “Eu tenho 70 anos, não faço uma pequena ideia, mas lembro-me de virem [as oliveiras], de não haver.” José Neca não tem ideia da data do transplante destas oliveiras, mas das do aqueduto sim, “foi há 20 ou 30 anos, fiz fotografias” (que há-de mandar-nos). Na verdade, as oliveiras do aqueduto foram transladadas em 1978, 20 anos depois destas daqui da alameda, que foram trazidas pelo engenheiro silvicultor Pulido Garcia, também daqui de Serpa (que dá nome ao jardim público murado mesmo em frente ao jardim das oliveiras). Também a oliveira mais grossa de todas as que encontramos em Serpa, na Avenida 25 de Abril, foi transplantada e esta foi a última a ser classificada em Serpa (a sexta), em 2010, por proposta da associação Árvores de Portugal. “Estas oliveiras despertam em nós sentimentos contraditórios”, explica Pedro Santos, da associação, por email. “Sendo organismos magníficos, por norma somos contra o seu transplante, salvo nos casos em que as mesmas estivessem condenadas à destruição, devido, por exemplo, à construção de uma estrada.” A posição da associação é de defesa da manutenção destas árvores no seu habitat original, pois aí possuem mais valor, biológico e paisagístico.
Em Serpa, as novas gerações não têm ideia da idade das oliveiras com que se vão cruzando todos os dias, como pudemos comprovar. “As pessoas já não reparam. Nasceram e cresceram com isto”, justifica Manuel Zarcos, “vai dizer-lhes que uma árvore tem mil anos e vão dizer que é uma treta”. Os ingleses é que chegam a perguntar pelas árvores antigas, conta. “São árvores que viram passar os romanos.”
Alfarrobeira | Moncarapacho, Olhão
“Há ali um cruzamento onde há muitas [alfarrobeiras], quando há ventinho o cheiro é inconfundível... Agora com 600 anos, não conheço.” Na recepção do Hotel Colina Verde, em Moncarapacho (Olhão), são vários os funcionários que nos tentam ajudar, mas o desconhecimento, mesmo entre os que são da terra, fala mais alto. “As pessoas daqui não dão muita importância”, dirá José Martins Dias, o proprietário da quinta onde encontramos a alfarrobeira (Ceratonia siliqua L.) de 600 anos, a maior referenciada no nosso país — “por exemplo, há uma praia ali na Fuseta com bandeira azul e ninguém sabe”. Os primeiros que a vieram ver foram japoneses, há dez anos, recorda. De então para cá, vão aparecendo algumas pessoas, de vez em quando, e um dia veio até um grupo grande de Portimão, de uma associação relacionada com árvores. “Creio que a antiguidade, a pequenez do homem perante ela, criam uma sensação especial. O homem não está habituado a isso, somos sempre grandes. E quando olhamos para uma coisa viva faz-nos pensar, não é um castelo, imóvel.”
Não é um castelo mas parece uma catedral, este gigante benigno, que continua a dar fruto e sombra mais do que abundante: a sua copa é alta e ampla, os seus ramos vêm até cá baixo e parece mesmo que entramos num espaço fechado. Fechado mesmo é o tronco, largo e oco, onde o pai de José conseguiu uma vez enfiar 10 ou 11 jovens. “Ali dentro está muito mais fresquinho”, brinca José Dias, que já imaginou histórias em que alguém entra na árvore e ela se fecha, num abraço apaixonado. Claro que brincava ali quando era miúdo e recorda-se de pessoas que ali dormiam — agora, a alfarrobeira é o lar de um casal de ginetas, conta.
A alfarrobeira por estes dias é um gigante num pomar de laranjeiras onde se encontram ainda outras dez ou 15 alfarrobeiras “mais novinhas”. Antes havia amendoeiras, oliveiras. “Quando fiz este projecto, queriam que só tivesse laranjeiras, mais nenhuma outra espécie. Queriam que arrancasse as outras alfarrobeiras. Recusei-me. Têm mais de cem anos, há que ter respeito.” A grande, pelo menos, não exige muita manutenção (às vezes cai uma pernada, a última terá sido há cinco anos). “Tem sobrevivido por si própria. E já cá está há muito. Penso que viu os árabes.” Talvez não tenha visto os árabes mas é uma raridade biológica entre as alfarrobeiras, que poucas vezes atingem estas dimensões: o seu perímetro pelo peito, mais de 13 metros, fá-la competir com exemplares de outras espécies, como o castanheiro ou o eucalipto, no top das árvores mais grossas de Portugal. Um colosso, portanto - e belíssima.