Uma locomotiva voadora no céu azul? Do mítico Expresso do Oriente? Em Sint-Niklaas, no primeiro fim-de-semana de Setembro, tudo é possível: elevando-se sobre a Grote Markt, balões de múltiplas cores e motivos vão pintando a abóbada do mundo, enquanto no rosto das crianças se desenha uma expressão de contentamento, as mãos erguendo-se como se pudessem tocar aqueles pássaros gigantes.
Afasto-me um pouco e continuo a leitura do livro iniciado ontem, dia de mercado na cidade, O Homem que era quinta-feira, de Gilbert Keith Chesterton.
“Será mais inteligível se vos disser que gostei dele por ele ser tão gordo?
- Já sei – exclamou Bull. Foi por ele ser tão gordo e tão ágil. Precisamente como um balão. Pensamos sempre que as pessoas gordas são também pesadas, mas ele seria bem capaz de dançar mais ligeiro do que uma sílfide. Era isso que eu queria dizer. A força mediana manifesta-se como violência, a força superior manifesta-se como agilidade. É como essas velhas especulações que perguntam o que aconteceria se um elefante pudesse saltar no ar como um gafanhoto?”
Nos céus de Sint-Niklaas há elefantes e, em todo o país, não há praça com a dimensão da desta cidade flamenga (rivaliza com a Praça Vermelha, em Moscovo, e a Praça de São Pedro, no Vaticano) com pouco mais de 70 mil habitantes, a que se juntam outros cem mil quando chega o momento de viver o famoso Vredesfeesten (significa a festa da paz), o festival que celebra a libertação de Sint-Niklaas pelas tropas inglesas da ocupação alemã, a 9 de Setembro de 1944.
O balão está pronto para subir e sinto que Albert Boekholt, ao meu lado, permanece inquieto, a face até há pouco rosada vai adquirindo um tom esbranquiçado e, ao primeiro impacto, quando a chama impulsiona a elevação, este holandês convidado por um amigo belga a participar no evento agarra-se com firmeza, cravando as mãos naquela espécie de varanda sobre a praça que se vai enchendo a bom ritmo, todos os olhares fixos nas alturas, como quem espera um milagre.
- Sabes por que razão há sempre muitas batatas fritas nas paragens dos autocarros na Bélgica?
Albert Boekholt abana a cabeça, em sinal negativo, e eu conto-lhe a anedota:
- Chega um holandês e pergunta as horas ao belga que está a comer batatas fritas. Instantaneamente, o belga vira a mão para olhar o relógio no pulso e deixa cair as batatas.
Albert Boekholt ri com gosto e a minha intenção de lhe restituir alguma serenidade parece surtir efeito. Ele olha a cidade, a torre da câmara municipal ameaçando tocar os balões, cada vez em maior número no bonito céu azul. No total, serão uns oitenta mas são largados vinte de cada vez porque a praça, embora ocupe uma área superior a três hectares, não comporta espaço suficiente para uma largada em massa. As ruas de Sint-Niklaas estão agora desertas, as pessoas, semelhando-se a formigas vistas de cima, convergem todas para a praça, para assistir a um espectáculo cheio de cor que antecede outras manifestações culturais e gastronómicas nas artérias adjacentes e vedadas, não apenas neste fim-de-semana mas ao longo de todo o ano, ao trânsito — uma realidade que a transforma numa das cidades mais amigas dos peões em todo o país.
A religião e o comércio
O silêncio das alturas é quebrado pelo som mágico dos 35 carrilhões da torre da neo-gótica Stadhuis, o edifício que domina a praça e cuja construção remonta aos últimos anos do século XIX, bem mais jovem que a história da cidade, já referida em 1217, quando Gosuinus, bispo de Tournai, incitado por clérigos locais, fundou em Sint-Niklaas uma igreja dedicada a São Nicolau. Há quem defenda, em algumas teses, que não foi inocente a escolha das entidades religiosas: o santo é o protector dos comerciantes; logo, nada melhor do que atrair a classe mercantil.
Num tempo de prosperidade para a região, a cidade beneficiou de um rápido crescimento — em 1241 era já o centro administrativo da região — e do sentimento bondoso de Joanna, Condessa de Constantinopla — a despeito do nome exótico, não era mais do que a irmã do Conde de Flandres —, que ofereceu uma significativa parcela de terreno à recém-formada paróquia de Sint-Niklaas que incluía uma cláusula no mínimo bizarra: o território assim deveria permanecer, vazio, estéril de construções, da comunidade e para a comunidade, e essa obrigatoriedade explica a inusitada dimensão da Grote Markt que se mantém, bem distinta, no campo de visão, sobrevoada por um mar de balões com a sua vaga de tantos matizes e feitios: são patos, tucanos, canecas de cerveja, cangurus, uma onda crescente, tingindo os céus.
Todas as semanas, às quintas-feiras, não é a largada de balões que marca a cadência da praça mas o seu mercado de produtos frescos e outros tantos regionais, assumindo um carácter intimamente ligado à história da Grote Markt como lugar de comércio, estrategicamente colocado no eixo Antuérpia-Ghent. É necessário recuar 500 anos para traçar essa história, até ao dia em que Maximiliano de Habsburgo concedeu à cidade o direito de realizar um mercado semanal que ainda hoje continua a atrair, com os seus cheiros e vozes imperceptíveis, os cidadãos locais. O comércio do linho e de lã crescia exponencialmente, e o mesmo imperador autorizou, também em 1513, a realização de uma feira anual, em Dezembro, poucos dias antes de a cidade festejar o seu santo patrono; e, mais tarde, em 1578, uma outra ganhou corpo, ocorrendo na primeira semana de Setembro até aos primeiros anos do século XIX, altura em que foi transferida para Maio.
Albert Boekholt já tem outra cor mas o medo permanece intacto; para cá e para lá, a cidade espraia-se, árvores bordejando ruas e casas de tijolo avermelhado, o rio brilhando à luz dos raios cintilantes, o verde viçoso da natureza lançando o seu charme.
Logo atrás da Rathuis recorta-se, como um rival, a Igreja de Nossa Senhora (Onze-Lieve-Vrouwkerk), levantada na primeira metade do século XIX com as suas majestosas cúpula dourada e estátua (seis metros) de Maria. Daqui de cima vejo ainda, mesmo em frente à Stadhuis, o Parochiehuis, casa paroquial e mais tarde câmara municipal, o Cipierage, uma antiga prisão hoje convertida em biblioteca e a Landhuis, a casa onde a justiça se fazia cumprir em Sint-Niklaas, prédios históricos cujas funções originais remontam aos anos 30 do século XVII.
O nabo como símbolo
O vento moderado leva-nos, a brisa é agradável, o ar é puro. Um manto verde aos nossos pés, curiosos desenhos recortados na paisagem na cidade que presta o seu tributo a Gerardus Mercator, o conhecido matemático, geógrafo, cosmógrafo e cartógrafo flamengo que tanto se dedicou à construção de globos e de mapas e tão pouco a viajar pelo mundo que perscrutava de longe. No museu, conhecido como Museu da Cidade e da região da Waasland, percorre-se a história da cartografia até às suas origens mas também se podem admirar dois globos que pertenceram ao homem que se tornou famoso por uma projecção (designada Projecção de Mercator), em 1569, expondo um grande planisfério (com 250x128 cm), constituído por 18 folhas impressas separadamente.
- Repara como a praça está fortemente protegida por um harmonioso conjunto arquitectónico e a cidade não tem uma única muralha. Sempre foi um alvo fácil. Mas hoje celebra-se a paz, os balões celebram a paz.
Escuto as palavras de Luc Verhassel, cujo filho está envolvido na organização do Vredesfeesten, e reflicto sobre elas. Disputada em tempos de antanho por franceses, ocupada, mais recentemente, por alemães, Sint-Niklaas viveu distintos períodos ao longo da sua existência, desde incêndios que destruíram a cidade até invasões, desde fácil adaptação à era da industrialização até aos novos conceitos inspirados na Revolução Francesa.
Sob este céu banhado de balões que lhe emprestam uma grande parte da sua vivacidade, também se passeou, com os pés firmes na terra ou montado no seu cavalo, Napoleão. Corria o ano de 1803, do qual consta o registo, por ordem do imperador corso, da passagem de Sint-Niklaas a cidade. Os balões, como as bandeiras, viajam ao sabor do vento, e a bandeira de Sint-Niklaas, dividida irmãmente em listas verticais de amarelo e azul, tem sobre esta tonalidade um nabo, um vegetal que, associado a outro cavalo e a outro imperador, invoca um tempo de lendas, mais fáceis de imaginar com uma visão sonhadora desde o balão.
Uma vez, há muitos, muitos anos, Sint-Niklaas foi visitada por Carlos V e, como é normal perante tão grande acontecimento, a população acotovelava-se para ver passar o Imperador. Entre ela, estava um pequeno lavrador segurando um nabo que pretendia oferecer a tão proeminente figura. Mas os guardas, imbuídos de um rigor leonino, impediam a passagem do lavrador. O imperador, escutando um rumor no meio da multidão, tentou descobrir a causa do tumulto e, uma vez descoberta, perguntou ao camponês o que tinha nas mãos, ao que este respondeu um fruto gigante que lhe queria oferecer. Intrigado, Carlos V autorizou os guardas a deixarem aproximar-se o lavrador, que entregou nas mãos de sua majestade um nabo, recebendo em troca uma carteira bem recheada.
Ao longe, avista-se o Sinaai, não sob o sol do Médio Oriente, mas sobre os raios de um sol belga generoso. Segundo historiadores do século XIX, a toponímia deriva, de facto, do Monte Sinai, alegadamente por um cruzado ter transportado com ele uma relíquia de Santa Catarina (a quem é dedicado importante mosteiro nessas terras egípcias) de Alexandria — e Santa Catarina permanece como a padroeira de Sinaai. O balão plana tranquilamente, alguns semelham-se a nabos em posição invertida.
Um criador de cavalos, presente entre a multidão que continuava a acotovelar-se e apercebendo-se do recheio da carteira face a um simples nabo, começou a pensar quanto não receberia se oferecesse um dos seus cavalos ao imperador. E assim fez, proporcionando-lhe um dos mais bonitos. O imperador, cheio de gratidão, respondeu que aceitava desde que pudesse presentear o criador com uma das suas mais preciosas possessões. E, sem hesitar, Carlos V estendeu o nabo para as mãos do criador de cavalos que, envergonhado, o recebeu. E, desde então, o nabo passou a ser o símbolo da região do Waas, celebrando o seu terreno fértil que já valeu a Sint-Niklaas ascender, em tempos, à categoria de “Jardim da Flandres”.
A festa chega à cidade
- Esta viagem não te transporta para outras viagens?
A pergunta de Albert Boekholt quebra o encanto da lenda mas, sem o admitir, já percorri, desde que me ergui na Grote Markt e viajando na memória, os céus de Bagan cheios de balões, toda a magia dos papagaios de meninos pueris em Cabul e mesmo o azul-cobalto sobre Alter do Chão. Talvez percebendo um certo desencanto na minha expressão, algum aborrecimento, Albert Boekholt altera de forma radical o rumo da conversa:
- Sint-Niklaas não é apenas balões. A festa espera-nos.
Ele estende os olhos na direcção do horizonte, como eu, ainda e sempre à procura de imagens e memórias da cidade que uma viagem de balão, com tudo o que tem de gratificante, não apaga. Malik Ainaoui nasceu em Sint-Niklaas mas as suas origens são argelinas. “É a minha cidade, onde cresci, um lugar que me provoca recordações gratas, uma cidade hospitaleira, tranquila, por onde é fácil caminhar, onde as pessoas ainda se vão conhecendo e cumprimentando. Se me perguntares se é este o lugar mais interessante ou bonito onde estive em toda a minha vida, é claro que a resposta é não. Mas tem os seus encantos, pequenos detalhes que me fazem sentir feliz aqui”, enfatiza o jovem, enquanto Crislin Stnaley, sentada a seu lado, abana a cabeça para cima e para baixo, concordando plenamente com a teoria do namorado.
A aterragem é delicada, suave, mas outros balões esvoaçam ainda no céu, como anjos da paz que se celebra. Por trilhos plantados nas margens do rio Schelde, de bicicleta, Sint-Niklaas oferece uma perspectiva ainda mais envolta em quietude, tempos de um silêncio que até os pássaros gostam de escutar, cenários que imploram momentos de contemplação, pausadamente ao encontro de algumas das vilas e aldeias históricas ao longo do Schelde, como Doel, um lugar kafkiano onde não residem hoje mais de uma trintena de pessoas em contraste com as 1500 em 1970, quando se assistiu ao êxodo motivado pela construção de uma central nuclear próxima e, anos mais tarde, pelo alargamento do porto de Antuérpia até às proximidades de Doel.
Detenho-me, com a minha bicicleta, agora que o esplendor da natureza abre as suas portas para o mundo urbanizado, e recordo factos políticos recentes da história da cidade que já se perfila à minha frente. De todos os conselheiros municipais de Sint-Niklaas, o mais famoso foi, inegavelmente, Tom Steels, natural de Sint-Gillis-Waas, em tempos considerado um dos melhores sprinters do mundo e contando no seu currículo com nove vitórias no Tour e duas na Vuelta, além de quatro títulos de campeão nacional belga. Mas um outro ficou, por diferentes razões, ainda mais famoso nesse cargo, Wouter van Vellingen, um ruandês adoptado por uma família flamenga que se tornou no primeiro conselheiro negro da Flandres, uma ascensão que desagradou a pelo menos três casais que se recusaram a ser casados por Wouter van Velligen e, com essa atitude, invocando a cor da pele, motivaram uma acção de protesto (ou de apoio) que se estendeu para lá das fronteiras belgas.
A cidade veste-se agora de mais alegria, parece mais espontânea, mais familiar, as ruas começam a ficar impregnadas de uma multidão desejosa de festejar, sorrindo naturalmente, nesta e naquela direcção. Mulheres com véu na cabeça, mulheres sem véu, homens calvos, homens com bigode, todos se misturam, como os ingredientes na comida que vai sendo confeccionada e atrai o povo, parte de uma celebração que tem na música, neste primeiro fim-de-semana de Setembro, outras das suas fortes componentes. É o Villa Pace, popular festival de música que atrai milhares a Sint-Niklaas, com os seus nomes plenos de exotismo, como a Antwerp Gipsy-Ska Orkestra, os I Will Swear, os Idiots e os Arab Brothers Sounsystem, bandas holandesas misturando-se em cartaz com ranchos folclóricos da Bósnia-Herzegovina, os sons festivos subindo no ar como os balões na manhã gloriosa na Grote Markt.
Não há um único balão no céu de Sint-Niklaas, todos se deitaram, exaustos, como o sol, agora substituído por uma lua pálida. Mas estão quase todas as estrelas no céu por onde esvoaçaram os anjos da paz. E, na solidão do meu quarto, mergulho na leitura adiada pela viagem, sobrevoando Sint-Niklaas. “Todo o grupo olhou para o lugar onde o balão dançava por cima da Exposição, preso por uma corda, como um balão para crianças. Quase no mesmo instante, a corda partiu-se em duas rente à gaiola, e o balão, soltando-se, flutuou no ar com a liberdade de uma bola de sabão.”
Como em Sint-Niklaas, os balões festejando a liberdade e paz, para que a memória dos homens não se apague.
GUIA PRÁTICO
Como ir
O aeroporto mais próximo é Antuérpia mas o mais cómodo será viajar para Bruxelas e, desde a capital belga, de comboio até Sint Niklaas, um percurso de cerca de 50 quilómetros que se cumpre em pouco mais de uma hora (bilhete para um trajecto, 19 euros). De Lisboa, a Ryanair voa para o aeroporto de Zaventem com tarifas a rondar os 110 euros (ida e volta), quase metade do preço proporcionado pela TAP para as mesmas datas, entre 4 e 9 de Setembro.
Quando ir
O festival de Sint Niklaas ocorre sempre no primeiro fim-de-semana de Setembro mas a cidade pode ser visitada em qualquer altura do ano, de preferência entre Maio e Outubro, quando as temperaturas são mais agradáveis. Sint Niklaas tem um clima ameno e temperado (uma média anual de 10 graus) mas a pluviosidade é frequente ao longo de todo o ano, mesmo nos meses mais secos.
Onde comer
‘t Korennaer
Nieuwkerkenstraat, 4
www.korennaer.be
La Luna Rosa
Nieuwstraat, 7
Frituur Conny en Franky
Plezantstraat, 325
www.frituurconnyenfranky.com
Onde dormir
Hotel Moon Eat and Sleep
Richard van Britsomstraat, 18 B
www.moon-eat-sleep.be
89 euros
Ibis Sint Niklaas Centrum
Hemelaerstraat, 2
www.ibis.com
65 euros
Serwir Hotel
Koningin Astridlan, 57
www.serwir.be
95 euros