Fugas - Viagens

  • Barcelona com vista Gaudí
    Barcelona com vista Gaudí Rui Gaudêncio
  • O Arco do Triunfo
    O Arco do Triunfo Rui Gaudêncio
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  • O Hospital de Sant Pau, o maior recinto modernista do mundo
    O Hospital de Sant Pau, o maior recinto modernista do mundo Robert Ramos/Fundación Privada Hospital de Sant Pau
  • Os sinais modernistas de Barcelona são um dos seus maiores cartões de visita
    Os sinais modernistas de Barcelona são um dos seus maiores cartões de visita Adriano Miranda
  • Agora há um grandee mural-beijo para celebrar a liberdade. E destinado a muitas fotos dos turistas
    Agora há um grandee mural-beijo para celebrar a liberdade. E destinado a muitas fotos dos turistas DR
  • Por mais voltas que se dêem, as Ramblas serão sempre passagem obrigatória na cidade
    Por mais voltas que se dêem, as Ramblas serão sempre passagem obrigatória na cidade Rui Gaudêncio
  • Paseig de Gràcia
    Paseig de Gràcia Rui Gaudêncio
  • Uma das paragens obrigatórias dos turistas: o mui concorrido mercado La Boquería
    Uma das paragens obrigatórias dos turistas: o mui concorrido mercado La Boquería Rui Gaudêncio
  • O Born (à esquerda) tornouse um dos bairros da moda há poucos anos. O mercado renovado vai ser um grande centro cultural e de animação
    O Born (à esquerda) tornouse um dos bairros da moda há poucos anos. O mercado renovado vai ser um grande centro cultural e de animação Rui Gaudêncio
  • A bandeira catalã impõe-se por todo o lado
    A bandeira catalã impõe-se por todo o lado Rui Gaudêncio

Em Barcelona, a liberdade anda nas bocas do mundo

Por Andreia Marques Pereira

A 11 de Setembro de 1714, os barceloneses mostraram o seu “amor extremo pela liberdade”, escreveu Voltaire. Três séculos depois, assinala-se o tricentenário de um processo que pôs fim a grande parte da autonomia catalã. As comemorações lançam luzes sobre o passado para compreender o presente e antecipar o futuro. Voltamos a perder-nos por Barcelona, entre clássicos e boas novas pelo caminho.

Há um movimento inusitado no Passeig del Born. Da esplanada vemos uma multidão a concentrar-se, a caminhar (mais ou menos) compacta. A clareira que se abre tem um protagonista, um homem — segue-o uma câmara, apontam-se-lhe vários telemóveis. Na mesa ao lado, o burburinho de identificação e vamos acreditar na conclusão: é o modelo espanhol Andrés Velencoso, fama conquistada pelo seu namoro com Kylie Minogue. Espanhol e catalão de Tossa de Mar passaria (quase) despercebido no Born não fosse o aparato em seu redor.

De jeans, t-shirt branca e sapatilhas seria mais um que enche o bairro de Barcelona na tarde de sábado de final de Julho. As esplanadas estão cheias, há quem circule de e para a praia, há quem abra mapas. O Born tornou-se um dos bairros da moda há poucos anos, ao mesmo tempo que o Raval, e, ao contrário deste, resistiu bem ao rótulo que não só se manteve como floresceu. Bares — os cocktails por aqui abundam —, lojas alternativas e vintage, de roupa e design de jóias, pequenas galerias e grandes museus (como o Museu Picasso) margeiam-lhe as ruas, muitas pedonais, num canto de Barcelona encaixada entre o bairro Gótico, epicentro turístico, e Barceloneta, com as suas praias lotadas. O Parc da Ciutadella está ao lado e agora mais perto do que nunca do Passeig del Born, esta rambla que é o centro nervoso do bairro que ainda mantém uma certa aura medieval — a recuperação do Mercado do Born trouxe uma requalificação dos espaços em volta, com uma enorme esplanada a rodeá-lo que é o novo e mais directo caminho para o parque. E aqui é também o coração das comemorações do Tricentenário – assim mesmo, apenas “tricentenário”: do 11 de Setembro de 1714, a data que assinala “o amor extremo dos barceloneses pela liberdade”, como escreveu Voltaire. Uma liberdade que está outra vez na boca de muitos catalães que clamam por um referendo sobre a independência da região autónoma.

Num canto da Praça da Catalunha, uma banca flanqueada pelas bandeiras da Catalunha e da União Europeia chama-nos a atenção. O toldo é amarelo, as mesas estão cobertas de panos azul forte; há t-shirts penduradas, artesanato, panfletos, posters com uma urna de voto (e dois boletins de votos: ou ) e cinco pessoas lá dentro respondem à curiosidade de quem passa. Aqui, na principal encruzilhada turística de Barcelona (no subsolo, metro e comboios chegam e partem em movimento contínuo, numa das esquinas as Ramblas iniciam o seu caminho até ao mar, já aqui para cima é a passerelle do Passeig de Gracia que se estende, o bairro Gótico está a espreitar) são muitos os estrangeiros que se aproximam. E também eles são instados a assinar uma petição pela realização do referendo catalão (marcado para 9 de Novembro) que o governo espanhol recusa. A iniciativa é da Assembleia Nacional Catalã (ANC), criada oficialmente em 2012, uma organização “popular, unificada, plural e democrática que trabalha para que a Catalunha se torne um novo estado europeu”, lê-se no site oficial. “Não é um partido nem deseja tornar-se num”, continua, “é uma organização de cidadãos que participam livremente como indivíduos e votam nas eleições em diferentes partidos. O que os une é a convicção de que a Catalunha tem o direito a ter a sua voz própria no mundo. Ou seja, a tornar-se um estado democrático, como qualquer outro.” “É uma questão de democracia do Estado espanhol”, diz-nos Víctor Acedo, que nem é catalão — vem de Zamora, “mais perto de Portugal”. E Portugal é chamado à liça por uma companheira de lides, que lembra que “os catalães querem o que Portugal conseguiu em 1640”. Não é a única zona de Barcelona que tem estas bancas — estão em todos os distritos, dizem-nos, mudando regularmente de bairro.

Não se pode dizer que Barcelona fervilhe com as celebrações do Tricentenário nem com as pretensões independentistas. Já vimos, noutros momentos, centenas de bandeiras catalãs em janelas e varandas por toda a Barcelona — por estes dias, esses ímpetos parecem estar mais contidos, com uma ou outra espreitando nas fachadas do centro da cidade, e com algumas mais nos bairros mais tradicionais, como a Gracia. O Tricentenário BCN, iniciativa cidadã com apoio do governo para assinalar a data, esse, instalou-se nas ruas, em alguns locais mais ou menos icónicos da cidade, com instalações temporárias por artistas internacionais convidados a reflectirem sobre o seu significado; e foi-se processando ao longo do último ano — as celebrações começaram em 2013 — em colóquios, concertos e até um show cooking de Ferran Adrià. O encerramento será a 24 de Setembro, coincidindo com o final das Festas de la Mercè, a maior festa da cidade, mas a “Diada”, um ano depois da abertura, será um dos pontos altos — o Dia da Catalunha, assinalado desde 1980, quando foi reinstaurado do parlamento catalão, este ano é também o aniversário redondo. O Tricentenário. O 11 de Setembro catalão.

Voltamos ao Born. Voltamos muitas vezes ao Born. No Mamainé, esquina com o Passeig del Born, os cocktails sucedem-se calmamente na esplanada. Dizem que têm os melhores de Barcelona, em especial os mojitos. Gostos não se discutem — é, pelo menos, um dos mais cubanos bares da cidade e é o nome que o revela: “Mama Inés”, pelo pianista e cantor Bola de Nieve, transforma-se num redondo “Mamainé” pelo seu sotaque cubano. Alguns edifícios antes, na direcção da igreja de Santa Maria del Mar, o número 18 do passeio assinala a fronteira entre o Born pré-1714 e o Born pós-1714; alguns edifícios depois, o Mercado do Born guarda o Born pré-1714 que o Born pós-1714 enterrou. Alguns dizem que é Barcelona, e não apenas um bairro (na verdade Ribera-Born), que aqui se reencontra com a sua história. Alguns vêm aqui a síntese de uma Catalunha que continua a querer “viver livre” (viure lliure), o mote para este ano de tricentenário, herdeiro do lema dos lutadores de 1714 “viveremos livres ou morreremos” (viurem lliures o morirem).

No século XVII e início do século XVIII, o Passeig del Born não era um passeio, era uma praça. Uma espécie de plaza mayor barcelonesa, defende o historiador Albert Garcia Espuche no livro La ciudad del Born. Economía y vida cotidiana en Barcelona (Siglos XIV a XVIII). Aqui cruzava-se toda a cidade, ou não fosse este o seu centro mais activo com dinâmicas comerciais, industriais e portuárias pujantes. Até que chega a Guerra da Sucessão de Espanha. A Catalunha, depois de apoiar o rei Bourbon, herdeiro designado do monarca anterior, vê as suas liberdades e autonomias serem restringidas e toma partido do pretendente austríaco que chega a estabelecer a sua corte em Barcelona e garante o respeito pelas liberdades catalãs. Numa guerra de dimensões continentais que pôs em confronto modelos e conceitos políticos distintos, quando as grandes potências chegam a acordo a Catalunha é abandonada à sua sorte: depois de um sítio que durou um ano, a 11 de Setembro de 1714, Barcelona capitula. Fica à mercê de Filipe V, o primeiro da dinastia Bourbon em Espanha que, como bom neto do seu avô, Luís XIV, o rei-sol francês, é absolutista convicto e está determinado a não ter complacência com os catalães. É o final das Constituições e instituições catalãs, direitos seculares: a Catalunha perde autonomia económica, judicial, fiscal, monetária, aduaneira e legislativa; o catalão deixa de ser língua oficial; todas as universidades são encerradas.

E em Barcelona constrói-se a maior cidadela militar da Europa do tempo, para controlar os insurrectos catalães. Parte do bairro La Ribera é demolido — mais de mil residências, cerca de 20% de Barcelona, são arrasadas para dar lugar às instalações militares. É uma ínfima parte desse 20% da Barcelona do século XVIII que agora emerge no Mercado do Born Centro Cultural, descobertas que foram ruínas desse conjunto na altura em que o mercado estava a ser transformado em biblioteca. Já não houve biblioteca no mercado construído no século XIX depois da destruição da cidadela e que foi o mais importante da cidade até ao seu encerramento em 1977. Há um achado arqueológico, feito museu com entrada directa numa máquina do tempo: 1714 grita liberdade para 2014.

Barcelona aos pés

Há coisas que não mudam em Barcelona, está visto. E há coisas que mudam constantemente em Barcelona. Será a cidade mais cosmopolita de Espanha: é, certamente, a cidade mais visitada por turistas estrangeiros (8,4 milhões em 2012) e um paraíso para os expat do século XXI — as multinacionais que aqui têm instalações atraem um grande número de profissionais altamente qualificados de todo o mundo. São os guiris de Barcelona (e se guiri é um turista estrangeiro em Barcelona a esses juntam-se os que vivem por aqui) e há alturas em que o seu número supera o dos habitantes (1,6 milhões). Passaram mais de cem anos desde que o na altura novíssimo Parque da Cidadela recebeu a Exposição Universal de 1888. O mundo, então como agora, coube em Barcelona e entrava por porta triunfal: o Arco do Triunfo, de tijolo vermelho e decoração neo-mudéjar, construído para ser o acesso principal ao recinto. O arco continua a ser um dos locais mais icónicos da cidade, com uma longa alameda de palmeiras a conduzir os passeantes até ao parque, onde os relvados e o arvoredo proporcionam tardes de leituras, contemplação, piqueniques, de desporto, música (perroflautas em abundância) — e até visita ao Zoo e ao Parlamento da Catalunha. E voltou a assumir a função de anfitrião de todos os que buscam as rotas do Tricentenário.

Por estes dias, as bicicletas, skates, trotinetas que são o trânsito habitual da alameda pisam não só a pedra como a cidade — do início do século XVIII —, condensada num mapa gigante. É um local simbólico, perto da antiga fortaleza e a dois passos do Born Centro Cultural, e nele encontram-se as coordenadas não só da cidade do século XVIII e da sua evolução até hoje, como da do século XXI que está a recordar o passado — com informação de todas as actividades organizadas pelo Tricentenário BCN.

É quarta-feira do início de Agosto e a zona está enxameada de turistas. Mas são muitos mais os que se fixam no arco do que propriamente no mapa. Tão-pouco se parecem entender com outras propostas do Tricentenário BCN: os cubos gigantescos com fotos que fazem parte do projecto de instalações artísticas e arquitectónicas efémeras BCN RE.SET, que até 11 de Setembro propõem uma reflexão sobre “identidade, liberdade e democracia”; ou a pequena torre translúcida que, através de banda desenhada, devidamente contextualizada, descreve um dos episódios-chave do 11 de Setembro de 1714 e se insere no itinerário “La Batalla Final”, que recorda o dia através dos seus protagonistas em vários locais da cidade. Aqui no Arco do Triunfo, que corresponde ao antigo Baluarte del Portal Nou, é o sargento-maior Juan Sebastián Soro que seguimos; diante do Born Centro Cultural é Antonio de Villarroel, o comandante supremo das forças catalãs — e no Mercado de Santa Caterina, construído no local onde se ergueu um convento com o mesmo nome, tropeçamos em Pròsper van Verboom, enquanto buscávamos “as melhores pizzas de Barcelona”, segundo vários italianos aqui residentes, as da pizzaria Nap, numa noite que se haveria de revelar de tormenta estival. E foi preciso estarmos atentos ao Tricentenário BCN para percebermos que aquele grande retalho de tijoleira vermelha que forma uma pequena depressão no meio do cinzento dos passeios, ao lado da igreja de Santa Maria del Mar, não é mais um dos muitos exemplares de arte pública que povoam as ruas de Barcelona. O Fossar de les Moreres é, sim, uma homenagem aos mortos durante o cerco de Barcelona de 1714, que foram aqui enterrados, “descobertos” em 1989 e para sempre recordados a vermelho, como o sangue vertido.

As rotas de 1714

Tal como Portugal, Barcelona vive um Verão atípico, de dias nublados e não raras vezes chuvosos, com a humidade sempre alta. Não é nada que afaste os turistas das praias de Barceloneta, onde massagens, artesanato e até material de contrafacção são oferecidos tão constantemente que há quem opte por um papel à laia de cartaz: “No queremos nada”. Os barceloneses optam por praias um pouco mais afastadas, reservando a Barceloneta para piqueniques noctívagos que podem seguir ou não para os muitos bares que têm um pé na areia. Longe da areia segue a rota do Tricentenário que, contudo, se concentra na Ciutat Vella. Onde também se concentram os turistas.

Se olhamos para o programa das Rotas de 1714, percebemos que as paragens históricas dos feitos dessa época se concentram entre as Ramblas e o Parque da Cidadela, percorrendo os bairros Gótico, Ribera-Born, Santa Caterina y Sant Pere. Isto equivale a um labirinto de ruas e ruelas, num emaranhado onde é fácil perder o rumo, ou não estivéssemos na cidade medieval. É aqui que palácios severos de pedra e enormes portas de madeiras, conventos, igrejas, antigos cemitérios, restos de muralhas nos contam a história de 1714 — unidos a muitos outros que revisitam toda a história de Barcelona.

Desde os tempos romanos, na verdade. O bairro Gótico não é só um parque temático medieval; é o espaço da Barcino romana. E mesmo que não nos apercebamos ela ainda continua visível, mesclando-se com o gótico e até acompanhando adições modernistas, como na irresistível Praça Nova. Aqui, à vista da catedral vemos duas torres que fazem parte do resto da muralha romana (era a porta principal de Barcino) e estão perfeitamente encaixadas no entramado que as rodeiam — inclusive na rosada Casa do Arcediago; do outro lado da praça, o nada consensual edifício do Colégio dos Arquitectos da Catalunha, de 1962,exibe frisos de Picasso, como que desenhados a negro sobre a parede branca. E isto é o que está sempre lá — até 11 de Setembro está também a intervenção Urbanus, uma espécie de parede de madeira feita com cruzes que se repetem em forma tridimensional, que é como o fantasma prolongado do aqueduto romano que por aqui seguia e cujas ruínas estão adossadas à torre.

Seguindo as ruelas por detrás da catedral, mergulhamos em pleno no mundo medieval feito de palácios e igrejas que formam pracetas pétreas onde por momentos parecemos mesmo viajar no tempo. Isto até chegarem mais turistas e até novamente sairmos para a invasão do século XXI e os seus mil e um negócios que florescem por estas ruas. E aqui bem perto temos um lampejo da Barcelona modernista, plasmada na Via Laietana, que, no século XIX, cortou a cidade velha para ligar o emergente Eixample à beira mar. Do lado de lá da Laietana, o Born e Santa Caterina prosseguem no mesmo entramado de vielas, mas pedra gótica dá lugar a mais paredes pintadas, em ocre, azul, amarelo desbotados.

Multiculturalismo com arte

Se a Laietena divide a cidade velha do lado nascente, do lado poente é à Rambla que cabe essa tarefa, separando o bairro Gótico do Raval. Da Praça da Catalunha à estátua de Colombo, as Ramblas, como também é conhecida a avenida que é o passeio público da Barcelona do século XXI (se calhar nome mais apropriado, já que é constituída por uma sucessão ininterrupta de várias ramblas), são a espinha dorsal da Barcelona turística. É, portanto, um desafio para peões não passeantes. Quem está de férias caminha lentamente, atento a tudo: dos edifícios que a margeiam (o Teatro Liceo, o famoso Mercado da Boquería — atenção aos preços —, por exemplo) e às obras de arte que pisam (o famoso mosaico de Miró) aos vendedores que a povoam — há artesanato e recuerdos, há doçaria tradicional e waffles, há esplanadas permanentes e há carteiras falsificadas em fuga constante. Para os barceloneses, este movimento é um pau de dois bicos, mas a cidade parece mais apaziguada com o cerco turístico que dura todo o ano e que no Verão mais parece uma invasão.

Jordi Ferran, nascido num bairro do Eixample e a viver agora em Poble Nou, perto da praia, confessa que já está habituado. “É assim desde os jogos olímpicos [1992]”, diz o barcelonês de 43 anos numa sexta-feira à noite enquanto ziguezagueamos pelas Ramblas, o caminho mais curto para chegar ao estacionamento, nem por isso o mais rápido. Não se aborrece tanto com as multidões como com a uniformização de tudo — os exemplos estão por todo o lado, diz, apontando para o comércio, quase todo, seja de restauração ou de vestuário, grandes cadeias internacionais, mas onde sobrevive, por exemplo, a Casa Beethoven, madeira do chão ao tecto, instrumentos, partituras e tudo o que a torna referência para musicólogos desde 1880. “E já não aguento ver toda a gente vestida com Desigual”, desabafa. Na verdade, o que começou como uma marca alternativa nascida na cidade tornou-se num negócio global; contudo, nunca se verá tanta concentração de gente vestindo a marca, distintiva pelos seus padrões rebuscados e caldeirão de cores, como por estas ruas.

A Desigual tornou-se igual a tudo, portanto; no entanto, a criação de moda em Barcelona está de boa saúde e recomenda-se. Encontra-se em pequenas boutiques do Gótico, sobretudo do Born e do Raval e até nas ruas: nestas últimas, nos mercados de fim-de-semana, é óbvia a assinatura barcelonesa, com roupas de corte dissemelhante e cores fortes, talvez influências do modernismo; nas primeiras, o eclectismo é maior, e desde o minimalismo ao retro, passando por um certo glamour, há peças únicas para todos os gostos.

Único é também o Raval, um bairro que, graças à sua proximidade com o porto, passou de bairro industrial e de operários em que se tinha transformado no século XIX a bairro de imigrantes. Chegou a ser conhecido como o “bairro chinês” de Barcelona mas agora já não são os chineses que dominam a sua paisagem; por estes dias, a comunidade de paquistaneses e indianos é maioritária. A maior mas não a única, neste bairro que é um dos mais multiculturais de Barcelona mas nunca perdeu o seu carácter proletário mais marcado. E se as paragens históricas do Tricentenário cabem quase todas do lado direito das Ramblas — a única excepção no Raval é o antigo Hospital de Santa Creu, que recebeu os feridos do conflito e agora é Biblioteca da Catalunha – as paragens artísticas, BCN RE.SET, com prazo de validade, é certo, espalham-se muito pelo Raval.

Na verdade, no Raval cabe toda a Barcelona. Embora em onda. Junto das Ramblas, o Raval pouco se distingue do bairro Gótico, com os seus cafés, restaurantes, hotéis, lojas alternativas e até algumas de recuerdos; o Palácio Güell, uma das obras mais emblemáticas de Gaudí, também se encontra nesta zona. Aproximamo-nos na Rambla do Raval, com o famoso Gato de Botero, a escultura em bronze de um avantajado e redondo felino que é a mascote do bairro, para mergulhar mais profundamente nesse Raval de imigrantes. Nas ruas, sucedem-se locutórios, lojas de produtos electrónicos e pequenas mercearias (aliás, por toda a cidade os pequenos supermercados abertos 24 horas durante o fim-de-semana são propriedade de paquistaneses), sempre com a companhia de bares, restaurantes e crianças em brincadeiras. Esta encruzilhada é plasmada numa das instalações do BCN RE.SET com que nos deparamos inesperadamente. Na enorme esplanada de cimento que dá passagem entre o Museu de Arte Contemporânea (MACBA) e a lateral do convento gótico dels Angels (actualmente o Foment de les Arts i del Disseny), habituados que estamos às tangentes dos skateboarders que ali têm a sua pista e a sentarmo-nos nos degraus do museu vendo as manobras, não contávamos encontrar um estendal altíssimo de onde pendem t-shirts negras com rostos anónimos — passado e presente na Diversidad (Studio Odeile Dcq), de gentes que já viveram por aqui, e de tradições que ainda perduram (a roupa a secar, saindo das janelas e de pequenas varandas de ferro, é uma constante).

A boémia continua a ser um traço marcante do Raval, onde se vai ravalear, que durante anos foi associado ao lado mais obscuro de Barcelona, com prostituição e drogas. Alvo de especial atenção das autoridades, aqui foram criados o MACBA, o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, por exemplo, e, mais recentemente, a Filmoteca da Catalunha, por estes dias acompanhados por uma “biblioteca sem livros”: na praça, três estruturas em forma de grandes guarda-sóis com a particularidade de terem o “pano” feito de livros abertos dentro de plásticos. Para a autora, a arquitecta indiana Anupama Kundoo, “o conhecimento levará ao progresso e à liberdade” — Liberdade é o nome da sua instalação.

Foi tentada, a gentrificação, contudo nunca foi totalmente conseguida e é isso que empresta ao Raval a sua aura única, fervilhante, não tão “limpa” e ordenada como no Born. Neste último, conta-nos Pep Sanchez, barcelonês, havia menos habitantes, muitos já tinham saído, pelo que foi mais fácil a transformação; aqui no Raval, há sobrepopulação.

Hipsters e elBullis

Sempre caminhando não damos conta quando passamos para o bairro de Sant Antoni — só quando passamos pela Ronda homónima percebemos a transição. A rua está ocupada por estruturas pré-fabricadas que albergam os comerciantes do famoso mercado Sant Antoni enquanto este, histórico, do século XIX, está a ser recuperado. Mais um passo na revitalização deste bairro que, juntamente com o vizinho Poble Sec, já aos pés de Montjuic, embora longe das manifestações de rua do Tricentenário, se estão a tornar nos sítios da moda em Barcelona, destinos indispensáveis para os brunches de fim-de-semana que estão a entrar nos hábitos da cidade, e para os aperitivos, com o vermute a correr em força.

Já não estamos na cidade velha (embora, em Barcelona, seja quase tudo perto, ao alcance de caminhadas que nos entretêm de tal forma que não sentimos o tempo a passar e a distância a pesar) e, por enquanto pelo menos, das grandes aglomerações turísticas. Nestes bairros residenciais de classe média, aparentemente anódinos, uma série de bares e restaurantes foram os pioneiros de uma transformação em curso, que tem atraído novos negócios que convivem com os de sempre, como galerias de arte, de mobiliário de design, de roupa de autor. Sobretudo em Sant Antoni, que já era conhecido pelo mercado, o maior de Barcelona — devemos dizer mercados, porque o mercado dominical era (é, temporariamente na rua Urgell) um mundo à parte: livros, música, cromos, selos…  — e agora parece ter sido descoberto por hipsters que se deleitam nas esplanadas de pastelarias e delicatessens com os cães aos pés.

Poble Sec, atravessado pela Avenida Paralel, que liga a Praça de Espanha ao World Trade Center da cidade, no porto, agarra pelos estômagos. Foi aqui que os irmãos Adrià abriram um restaurante de tapas Tickets, um “elBulli de bairro”, cujo chef é Ferran, e foi por aqui que Albert Adrià decidiu instalar o que chamou de “alta gastronomia de bairro” em várias versões — desde a cozinha nikkei (fusão de cozinha japonesa e peruana) do Pakta à alta cozinha pura do 41º (um “miniBulli”), passando pela vermutería Bodega 1900 e à espera, agora em Setembro, da cozinha mexicana no Hoja Santa e da “cantina casual” Niño Viejo. E não estão sós, claro, nesta tomada de Poble Sec que, alta cozinha à parte, continua a oferecer muitos locais a preços “locais” – e isto significa dos mais baratos em Barcelona.

De volta à cidade velha, buscamos com ajuda do telemóvel uma das intervenções do Tricentenário que não terá vida efémera. A poucos minutos da catedral, descobrimos a minúscula e anódina Praça Isidre Nonell. Um muro é agora um mural. El mundo nace en cada beso é a contribuição do artista barcelonês Joan Fontcuberta para as comemorações e para a cidade, já que este mosaico “foto-cerâmico” é permanente. Composto por quatro mil peças, o mural tem de ser visto à distância (a esplanada do Bun Bo Viêtnam é uma boa opção) para se ter a percepção de duas bocas entreabertas, beijando-se. A obra pode considerar-se um projecto colectivo, já que as peças foram compostas por fotografias enviadas por habitantes de Barcelona sob o repto de “um momento de liberdade”. Para Barcelona, a liberdade é um beijo, está visto — e “Barcelona vai converter-se na cidade do beijo”, profetizou o presidente da câmara durante a inauguração. Não por enquanto: poucos são os que passam, menos ainda os que reparam no mural. Mas há quem tire fotografias — só não vimos nenhum beijo.

O recinto modernista da cidade modernista

O sol morde nesta tarde de início de Agosto, por isso procuramos as sombras possíveis sempre ao alcance da voz do nosso guia, Federico. Já teve mais árvores, esta avenida-pátio do antigo Hospital de la Santa Creu i Sant Pau porque o arquitecto, contra a corrente do tempo (início do século XX), fez questão de integrar a natureza no seu complexo, para que os pacientes pudessem usufruir de ar livre, para seu deleite e bem-estar.

Estamos num hospital que foi projectado como “uma cidade dentro da cidade” e concebido no mais puro modernismo catalão pelo mentor do movimento, o arquitecto Lluís Domènech i Montaner. Não tem a projecção ou popularidade de Gaudí mas é o autor da obra-prima que é o Palau de la Música Catalana. Por essa obra, Federico não tem dúvidas em considerá-lo o “grande arquitecto modernista de Barcelona” e aqui no Hospital de San Pau havemos de estar numa sala onde o seu estilo atinge o cume do Palau. Mas isso será no final, no edifício da administração que é a grande fachada do que é agora o Recinto Modernista de Sant Pau; será aí que teremos a visão do que apenas havíamos visto em fotos: a “cidade” vista do alto como uma terra de encantar, com os seus edifícios de tijolo vermelho e janelas neo-góticas ou neo-mudéjar, as suas cúpulas coloridas como bolos extravagantes, a sucessão de chaminés excêntricas, as esculturas profusas, os azulejos como tapeçarias coloridas. É o maior complexo modernista do mundo, ocupando o equivalente a nove quarteirões do Eixample (a ideia era a de que cada paciente tivesse 145 m2), onde está inserido — é Património Mundial da Humanidade desde 1997 e abriu ao público em Março deste ano.

Não é, claro, o único edifício modernista barcelonês incluído na lista da UNESCO, Gaudí, o arquitecto-mor, tem seis, Domènech i Montaner, que foi seu professor, também tem o Palau de la Música. Estamos em território arquitectónico privilegiado, já que o modernismo fez de Barcelona, particularmente do Eixample, a “extensão” da cidade da segunda metade do século XIX, a sua oficina-galeria ao ar livre, desenvolvendo um traço peculiar associado ao renascimento do catalanismo. Isto significa que as tradições e mitologias catalãs, assim como influências árabes, se intrometem numa linguagem muitas vezes simbólica, feita de curvas, tão assimétrica como podem ser as formas orgânicas e botânicas, e com cascadas de ornamentações e cores. Se o estilo não é consensual (há quem o veja como excessivo e ostensivo), é, porém, a imagem de Barcelona que conquista o mundo.

Nos meses de Verão, as filas dão voltas nos passeios em frente à Casa Battló e à Casa Milá (La Pedrera), duas das obras de Gaudí, e que distam apenas umas centenas de metros no Passeig de Gracia, o grande boulevard ao estilo parisiense é o epicentro da explosão do modernismo catalão e é o símbolo da riqueza da cidade, o combustível que alimentou os devaneios arquitectónicos ao serviço dos caprichos dos seus habitantes mais abastados. Neste canto da direita do Eixample, não há muita gente a visitar o recinto modernista; talvez não seja esse o objectivo, uma vez que a previsão são 120 mil visitantes anuais, para não perturbar o dia-a-dia do local. Porque o hospital já não funciona aqui (foi construído um novo nos terrenos traseiros), mas uma série de organizações internacionais já começaram a instalar-se nos pavilhões recuperados. O projecto original previa a construção de 48, um número que foi reduzido para 27, dos quais apenas 16 são modernistas — o dinheiro foi-se mais depressa do que a ambição. Domènech i Montaner construiu 12 deles antes de morrer.

Quando o hospital medieval de Santa Creu (no Raval) se tornou notoriamente pequeno para as necessidades da cidade, a doação do banqueiro Pau Gil ajudou a começar as obras do novo. Em 1902 arrancaram os trabalhos, numa zona do Eixample onde ainda não existia nada (fotografias dessa época mostram apenas a Sagrada Família a ser construída — ontem como hoje rodeada de andaimes, portanto) que só seriam concluídos em 1930; em 2009 abriu o novo nos terrenos que não foram utilizados no projecto original. Ao longo das quase oito décadas de funcionamento, Santa Creu i Pau (recebeu este nome como homenagem ao benemérito) sofreu muitas transformações que descaracterizaram o projecto original e os seus valores funcionais e medicinais — entramos num pavilhão-enfermaria ainda não recuperado, o São Rafael, para percebermos que o pé direito imenso que vemos e era o original esteve durante décadas dividido, para ganhar espaço; e na entrada, pelo “hall do hipostilo” (grossas colunas de tijolo vermelho e azulejos pretos e verdes como pequenas rotundas a segurar o tecto abobadado coberto de azulejos brancos), sabemos que o que era originalmente parqueamento das ambulâncias acabou a funcionar como as urgências do hospital.

Seguimos pelo túnel subterrâneo — um quilómetro deles liga todos os pavilhões — entre os fantasmas (projecções nas paredes de azulejos brancos recordam o quotidiano do hospital) para sair no sol do jardim. O pavilhão operatório é o edifício central, dos lados alinham-se, como espelhos, os restantes pavilhões, cada qual sob a tutela de santos e virgens: de um lado seriam internados os homens, do outro, as mulheres. Seriam porque a falta de dinheiro levou a uma reformulação imediata por especialidades médicas: o andar -1, ao nível dos jardins laterais, era para as consultas externas, o rés-do-chão, ao nível da avenida-pátio, para internamentos. Todos os pavilhões possuem estrutura idêntica: no Sant Rafael (de Rafael Rabell, que pagou a sua construção), vazio à espera de obras, percebemos um pouco da organização, ajudados pela foto que na parede do fundo retrata o pavilhão em 1929 — 28 camas, 14 de cada lado, radiadores ao centro, azulejos verdes, branco e rosa (no tecto presos com fita cola para não caírem); uma sala circular à frente, inundada de luz natural, que era espaço recreacional; casas de banho do outro lado, azulejos brancos e azuis, em ondas.

Uma rede marca uma divisão no recinto — do lado de lá, sobrevivem o convento de Santa Creu, agora banco de sangue, os antigos refeitórios e a farmácia, edifícios não modernistas: o tijolo continua a desenhá-los, mas as fachadas severas e monocromáticas assinalam a ruptura. Fica para o final o edifício da administração, a jóia da coroa, o que vemos da rua quase como um altar colossal na sua forma, servido por uma escadaria monumental. Maciço e leve pela quantidade de vidro que o trespassa, ornamentação exponenciada ao máximo, prenhe de simbolismo. No interior, podemos imaginar um palácio, pavimentado a mármore, rasgado por vitrais, seguro por colunas que se abrem em abóbadas múltiplas, coroado por cúpulas.

Em linha recta deste edifício principal vemos a obra “infindável” do modernismo barcelonês que é a Sagrada Família. Uma caminhada de 10 minutos leva-nos até ela e às multidões que a rodeiam e fazem fila para entrar. No Parque Güell, outro relance do maravilhoso mundo de Gaudí, novamente hordas de visitantes. Mas a Barcelona modernista não se esgota neste e noutros poucos ícones arquitectónicos — mais de cem arquitectos, muitos deles anónimos, deixaram a sua marca na cidade, que acarinha este património com a oferta de várias rotas modernistas a abranger as suas várias declinações. Mas não é preciso seguir nenhuma delas para tropeçar com exemplos modernistas na cidade, basta termos disponibilidade para olhar e descobrimos mais uma fachada que nos deslumbra. Não um monumento, um palácio ou uma igreja: edifícios residenciais e comerciais que nos surpreendem a cada passo. Não importa quantas vezes já calcorreamos essas ruas e avenidas.

GUIA PRÁTICO

Como ir

A TAP tem vários voos diários para Barcelona, com saídas de Lisboa (desde 210€) e Porto (desde 190€). A Vueling faz dois voos diários a partir de Lisboa (desde 170€) e três voos semanais para a partir do Porto (desde 140€). A Ryanair tem dois voos diários com saída do Porto (78€).

(As simulações foram feitas para os mesmos dias, 8 e 15 de Setembro)

Onde comer

Não faltam opções para comer em Barcelona, desde as simples tapas à alta cozinha, passando por todo o mundo. O ideal é manter-se afastado das artérias mais turísticas, onde os preços são inflacionados e a qualidade nem sempre a melhor. A Gracìa tem uma boa concentração de restaurantes do mundo, a Barceloneta de marisqueiras, por exemplo.

Onde dormir

Os hotéis em Barcelona não são baratos, por isso não espere encontrar muitas opções por menos de 100€ por noite (duas pessoas). As opções mais económicas são os hostels e os apartamentos. O ideal é encontrar o equilíbrio entre a localização e o preço, uma vez que, sendo Barcelona uma cidade relativamente pequena, é possível caminhar entre grande parte das atracções turísticas poupando dinheiro (e stress) com transportes. As zonas da cidade velha e do Eixample (mais próximo da Praça de Catalunha) são, portanto, neste sentido, as melhores apostas.

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