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Do tempo da cidade mais aborrecida não resta mais do que uma memória

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

Bratislava, a cidade que floresceu no século XVIII e apenas se tornou independente em 1993, abandonou o cinzentismo dos tempos do domínio comunista para se tornar uma urbe cheia de vida e cor, com jovens de espírito empreendedor sempre e cada vez mais apostados em novos ventos de mudança.

- Not at all!

As palavras parecem exprimir uma certa irritabilidade mas é apenas aparente, nada mais do que uma reacção aos comentários depreciativos que ainda há bem pouco tempo eram imagem de marca de Bratislava. “Uma das capitais mais aborrecidas da Europa” e “A cidade de 400 mil habitantes e apenas 40 hotéis”, epítetos que Lucia Durackova declina alimentar com a mesma firmeza com que eu, acabado de chegar de Praga, me recuso a fazer um juízo de valor por me parecer de todo injusto — se bem que, ao primeiro impacto, são quase inevitáveis as comparações com a capital da República Checa.

- Bratislava pode ser uma pequena capital europeia mas não é, de maneira nenhuma, uma cidade aborrecida. Quem a definia como tal deve ter passado por aqui há muitos anos, numa época e numa conjuntura bem distintas. Os tempos mudaram e Bratislava está actualmente a desenvolver um conjunto de actividades focadas no ambiente e no entretenimento. Muitos restaurantes, com um toque especial de culinária, abriram nos últimos anos e logo de seguida surgiram novas atracções para os turistas se divertirem, festivais de rua e organização de eventos desportivos. Temos até, durante os meses de Verão, uma praia com bares e campos de voleibol.

Lucia Durackova sente um enorme prazer em caminhar na promenade, escutando os rumores que sobem do Danúbio, perscrutando os barcos que rasgam as suas águas estilhaçadas pela luz do sol como se fossem mil espelhos. Como ela, também Jakub Zilincan tem dificuldade em compreender o cliché que, como um halo, envolve Bratislava. “Eu diria que é uma cidade tranquila, muito calma. Mas não aborrecida. Para ver as principais atracções turísticas um fim-de-semana pode ser suficiente; para sentir o ambiente fantástico que a caracteriza é necessária pelo menos uma semana, especialmente no Verão, com tantos acontecimentos em diferentes áreas que enchem de vida e de cor o centro.”

A ponte liga as duas margens e no topo, num dos extremos, projecta-se contra o céu azul uma estrutura em forma de disco voador onde funciona um restaurante que pratica preços que pouco ou nada têm a ver com a realidade eslovaca. As semelhanças com um ovni são tantas que qualquer cidadão local a conhece por UFO (sigla em inglês para Objecto Voador Não Identificado), designação que também se estende à própria ponte, cuja construção, entre finais da década de 1960 e início de 1970, motivou a destruição de alguns edifícios da cidade antiga, como o bairro judeu e a própria sinagoga.

- Aborrecida? Como é que alguém pode pensar dessa forma? Aceito que Bratislava enfrenta alguns problemas de marketing para promover determinados eventos junto do grande público mas, atendendo ao número de actividades culturais e de lazer que oferece, parece-me de todo injusto considerá-la uma das capitais mais aborrecidas da Europa, defende outro jovem eslovaco, Josef Kleberc, em perfeita sintonia com os amigos Lucia Durackova e Jakub Zilincan.   

A imponência do castelo

Sigo o conselho de Josef Kleberec e embrenho-me pelas ruas órfãs de turistas da parte de trás do castelo que se ergue imponente, relembrando um tempo em que funcionava como vigilante supremo dos invasores que sulcavam as águas do rio. Daqui, com uma panorâmica privilegiada, o olhar tanto cai na parte antiga como em Petrzalka, na área residencial construída ao longo de 45 anos de governação comunista. Os blocos de apartamentos, inestéticos e todos em betão, como uma selva, estendem-se pela outra margem do Danúbio, todos tão iguais que, ainda hoje, em Bratislava, se contam histórias de homens ou de mulheres que, tendo bebido umas poucas (muitas) cervejas, assomavam à porta de outro prédio antes de se aperceberem do equívoco.

Uma suave brisa convida a ficar por mais uns minutos, contemplando com prazer o castelo magnificente com as suas quatro torres que, à primeira vista, lhe dão um formato de cama. O Bratislavsky hrad irá beneficiar, nos próximos meses, de obras de renovação, um projecto (inclui um novo parque de estacionamento) estimado em 26 milhões de euros que será levado a cabo pela Vashotav, uma construtora que, segundo alguma imprensa eslovaca, é controlada por empresas associadas a Juraj Siroky, alegadamente um dos maiores patrocinadores do partido Smer-SD, do Primeiro-Ministro Robert Fico, no poder entre 2006 e 2010 e de novo desde Abril de 2012.

Com ou sem polémica, o castelo, levantando-se no alto da colina, bem próximo do coração da cidade, é o monumento mais visitado pelos turistas em Bratislava, encerrando uma história que é quase tão antiga como a da própria cidade, embora a actual estrutura, na sua forma rectangular, remonte ao século XV. Durante a ocupação turca de Budapeste, o castelo funcionou como residência da realeza húngara (desde a queda da Grande Morávia até ao final da I Guerra Mundial o território hoje ocupado pela Eslováquia era dominado pelos magiares) mas no início do século XIX foi destruído por um incêndio e só em meados do século passado é que as autoridades se empenharam na sua restauração — e restaurado, mas há bem pouco tempo, foi também o Museu de História, no interior do castelo, com interessantes exibições que, entre outras, vão da numismática ao artesanato, da pintura à escultura, num total de mais de 250 mil objectos.

A mítica praça

À meia-noite do dia 31 de Dezembro de 2002, centenas de milhares de eslovacos, reunidos na Praça Slovenske Narodne Povstanie, vulgarmente conhecida como SNP Namestie, dançaram para festejar a independência do país. A praça, uma das maiores da cidade e onde se ergue o monumento que presta homenagem aos homens que integraram a Revolta Nacional Eslovaca, uma insurreição armada do movimento de resistência durante a II Guerra Mundial contra o governo fantoche apoiado por Adolf Hitler, é o habitual palco de concertos (e de celebração de vitórias no desporto, como em 2002, quando a Eslováquia se sagrou campeã do mundo de hóquei no gelo) e de protestos em Bratislava, o mais mediático dos quais em 1989, durante as manifestações da Revolução de Veludo.

No espaço de 20 anos e especialmente depois da adesão, há dez anos, à União Europeia, Bratislava, fundada em 907 d.C. e já no século XII uma grande cidade, transfigurou-se sem, no entanto, perder o charme que se respira quando se caminha pelo seu centro histórico. “Desde a Revolução de Veludo, a cidade tem procurado libertar-se da sua aparência cinzenta socialista, daqui resultando dois movimentos: um, com a construção de múltiplos espaços comerciais e o outro com o aparecimento de pequenos cafés, lojas e restaurantes em que se sente o toque familiar dos seus proprietários, sempre disponíveis para dois dedos de conversa com os clientes”, enfatiza Samuel Kovacik perante um sinal de concordância de Lucia Durackova: “Muitas empresas internacionais instalaram escritórios em Bratislava. Hoje há mais oportunidades de emprego para os eslovacos que falam outras línguas e, ao mesmo tempo, há cada vez mais estrangeiros a viver na cidade.”

O sol brilha com intensidade quando Jakub Zilincan interrompe:

- Bratislava é actualmente uma cidade multicultural.

Josef Kleberc assume, pela primeira vez, algum cepticismo. “Bratislava começou a aperceber-se das suas potencialidades para se tornar uma grande cidade. Mas ainda temos um longo caminho a percorrer para atingir o nível de outras cidades no mundo. Felizmente, a comunidade jovem é ambiciosa e está a provar que melhores ventos de mudança ainda estão para vir.”

A história e o charme

Se a esperança reside no espírito empreendedor dos jovens, os mais idosos continuam a revelar algumas dificuldades para se sintonizarem com uma realidade tão diferente da que viveram no período que antecedeu a revolução. “Como viajo muito, noto que os eslovacos são um povo pessimista e com elevado grau de insatisfação. As pessoas gostam de se queixar mas quero acreditar que é um pouco assim por todo o lado.” Para os mais novos a vida parece correr sobre rodas. Mas há excepções: “É uma pena não termos bicicletas para alugar, como em muitas outras cidades. Em Bratislava, de bicicleta, chega-se a qualquer lado em meia hora mas ainda não há infra-estruturas e, por outro lado, os condutores também não estão preparados”, observa Jakub Zilincan, um entre tantos jovens vivendo a felicidade do presente mas com a memória carregada de memórias. “Do que realmente sinto saudades é dos invernos frios. Nessa altura, ia com os meus pais até um lago gelado em Bratislava sem medo de que o gelo se partisse. Mas também recordo a minha ansiedade nos dias que antecediam a abertura dos mercados de Natal, todo aquele ambiente festivo.”

Partindo da SNP Namestie, a melhor forma de penetrar na zona histórica repleta de edifícios antigos em estilo rococó e barroco é através da Michalska Brana, já depois de percorrer a Obchodná, a artéria comercial de Bratislava. São ruas cheias de história, casas de alegres tonalidades, testemunhos do auge da cidade no século XVIII (sob o reinado de Maria Teresa da Áustria), um percurso que se deve fazer sem pressa e sem grandes planos, deixando apenas que visão tão harmoniosa nos surpreenda de forma natural. Sente-se prazer ao admirar a opulência dos seus teatros, o neobarroco Reduta, a festejar o seu centenário, o ainda mais antigo (data de 1886) Teatro Nacional Eslovaco — o primeiro acolhe a orquestra nacional filarmónica e o segundo é onde os locais (e não só) se deslocam para assistir a concertos de ópera.

Passo agora a Rybárska Brana, a Porta do Pescador, e não tardo a desaguar na Hlavné nám, a praça que se enche de esplanadas e de jovens no Verão, bem como de um mercado de artesanato que ganha maior expressão na época da Páscoa e do Natal. Por aqui fico, durante umas boas horas, ora atirando os olhos para a Fonte Roland no centro da praça, ora para a Stará Radnica, o edifício da câmara construído no século XV, ora para o Palácio Apponyi, agora transformado num museu de artes decorativas dos séculos XVIII e XIX, ora apenas para as gentes que passam sorridentes quando o sol já emite os seus tons dourados de final de tarde. Mas ainda antes que a noite inunde Bratislava, a cidade que até 1848 era conhecida como Pressburg ou Poszony, em alemão e em húngaro, vou ao encontro das suas esculturas espalhadas por aqui e por ali, representando um homem saindo de um esgoto, um fotógrafo, um homem pobre que era um cavalheiro e oferecia flores às mulheres, um outro que se diverte à custa da vizinha que tinha por hábito espiar os transeuntes ou, finalmente, o Soldado de Napoleão, inclinando o corpo para a frente sobre um banco.

O dia esgota-se e o apelo da noite, lançado a partir de bares cheios de jovens, é mais forte do que qualquer sintoma de cansaço. Josef Kleberc tem uma pergunta na ponta da língua: “Em que lugar do mundo se pode dançar com mulheres tão bonitas, comer e beber tão barato? Só em Bratislava. Aqui, todos os dias há uma festa e uma noite para recordar. Achas mesmo que é uma cidade aborrecida?”

Not at all!

Guia prático

Quando ir

O clima da Eslováquia sofre fortes influências da Europa Continental, com verões quentes e secos e invernos razoavelmente frios. Janeiro é, por norma, o mês mais frio, com temperaturas durante o dia na ordem dos zero graus, se bem que, de quando em quando, descem abaixo de zero, com ventos fortes e frios de nordeste (conhecido como Bora), especialmente nas regiões montanhosas, onde a queda de neve é frequente (uma média de 120 dias por ano, que baixa para 40 na parte mais plana do país). O Verão é a melhor altura para visitar a Eslováquia (os termómetros, durante o dia, andam pelos 22/25 graus mas podem chegar aos 30), sendo Julho o mês com melhor média (22 graus). Nessa altura (por vezes entre Maio e Setembro, os dias são quentes e as noites frescas). Ao fim do dia, no Verão, são habituais as trovoadas. Quanto a precipitação, as terras baixas da zona meridional apresentam uma média anual de 400mm, números que mais do que duplicam nas zonas montanhosas. Um corta-vento e um agasalho mais quente são aconselháveis nos meses de Verão, especialmente para os adeptos das caminhadas. 

Como ir

Chegar à capital da Eslováquia, de avião, pode revelar-se uma experiência complicada e demorada, uma vez que não existem voos directos entre Lisboa e o aeroporto internacional com o pomposo nome de Letisko Milana Rastislava Stefánica — em homenagem ao general que combateu ao lado do exército francês durante a I Guerra Mundial e que, de regresso à Eslováquia, pilotando um avião militar italiano, se despenhou próximo de Bratislava, na companhia de outros dois oficiais italianos. Uma das possibilidades passa, para quem vive no Porto, por viajar com a Ryanair até Barcelona, de autocarro até Girona e daqui até Bratislava. Dependendo das datas, a low-cost irlandesa tem tarifas entre Espanha e a Eslováquia a rondar os 60 euros, para um bilhete de ida e volta. De Lisboa, pode utilizar uma das companhias aéreas que servem Barcelona, como a TAP ou a Vueling. A melhor alternativa talvez passe por voar entre Lisboa e Viena e de comboio (apenas uma hora) entre a capital austríaca e Bratislava. Tendo como paralelo a última semana de Setembro, a Iberia, com uma escala curta de uma hora em Madrid, oferecia as melhores tarifas, a rondar os 250 euros. A Niki Air também liga Lisboa e Viena mas os preços ultrapassam, na avaliação feita, o dobro dos praticados pela companhia espanhola. Do Porto, com a Swiss e a Lufthansa, também é possível voar para a Áustria por cerca de 280 euros. Entre o aeroporto e a estação central de comboios, num percurso de 30 minutos e 90 cêntimos, as ligações são efectuadas pelo autocarro número 61, que também tem um serviço nocturno, designado N61.

Onde comer

Um dos espaços mais agradáveis e a preços em conta tendo em atenção que está situado na parte velha é o Bistro St. Germain (www.stgermain.sk), na Rajská, 7, com uma bonita decoração e um ambiente acolhedor, empregados sorridentes e uma gastronomia simples mas saborosa. Outra opção pode ser o Street 54 (www.street54.sk), na Obchodná, 54, que à primeira vista se assemelha a um qualquer fast-food de rua mas que na realidade produz os melhores hambúrgueres (alguns vegetarianos) da capital eslovaca — 80% dos produtos utilizados são provenientes de agricultores locais. O Street 54, com uma bela colecção de fotografias da velha Bratislava nas suas paredes, também oferece outros pratos, todos bem confeccionados e coloridos, mudando com alguma frequência a ementa – porque apenas serve vegetais da época. Por último, os apreciadores de comida italiana ficarão gratos com uma visita ao Gatto Matto (www.gattomatto.sk), na Panská, 17, sentando-se no terraço de Inverno ou na escura mas romântica sala interior. O staff é simpático, aconselha as especialidades e um vinho ideal como companhia — uma boa refeição poderá ficar entre 10 e 15 euros.   

Onde Dormir

Rústico e moderno, sóbrio e elegante, o Marrol’s Boutique Hotel (www.hotelmarrols.sk), na Tobrucka, 4, é talvez a melhor alternativa para quem pernoita em Bratislava mas com preços que não estão ao alcance de todos — variam entre os 165 para um quarto duplo e os 390 para uma grande suíte, ambos com pequeno-almoço incluído. Mais barato e a apenas dez minutos a pé do centro, do castelo e da maior parte das atracções, o Mercure Bratislava Centrum Hotel (www.accorhotels.com), na Zabotova, 2, é outra opção a ponderar, com preços atractivos online (quarto duplo desde 59 euros).

A visitar

O Museu de História não é o único que merece uma visita em Bratislava. A cidade tem outros que justificam um olhar demorado, como o Museu dos Relógios, na Zidvoka, 1, instalado no edifício mais estreito de todo o país, com a sua tonalidade ocre, e, não muito distante, o Museu da Cultura Judaica, no número 17 da mesma artéria, com uma mostra da comunidade aqui residente e desaparecida durante a II Guerra Mundial, incluindo fotos a preto e branco do velho gueto e da sinagoga arrasada pelos comunistas para dar lugar a uma auto-estrada e à Novi Most, a nova ponte. Com a ajuda dos responsáveis do museu, também é possível visitar o mausoléu Chatam Sofer, última morada do altamente venerado rabi do século XIX. A menos de dez quilómetros de Bratislava, na confluência de dois rios e três países, não deve perder a oportunidade de visitar o castelo de Devin (autocarro 29 na parte inferior da Nova Ponte).

 

Informações

A Eslováquia integra a União Europeia desde 1 de Maio de 2004 e a moeda em curso, desde 1 de Janeiro de 2009, é o euro. Os cidadãos portugueses apenas necessitam de passaporte ou do cartão de cidadão para visitar este país com cerca de cinco milhões de habitantes. Para obter informações sobre a cidade, vale a pena dar uma espreitadela no site http://bratislava-slovakia.eu ou em www.facebook.com/bratislava.slovakia.eu. Bratislava disponibiliza um cartão que permite utilizar os transportes públicos (até à meia-noite) e o acesso com descontos entre os 5 e os 20% a mais de 60 instituições, desde galerias a museus, de aluguer de carros a passeios de barco, bem como piscinas, jardim zoológico, restaurantes e até compras. O cartão pode ser comprado em centros culturais ou nos postos de turismo, para um (10 euros), dois (12) ou três (15) dias.

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