Chegámos a Goa sob os efeitos da monção. Depois de uma longa viagem começada na madrugada de sábado, com escala em Barcelona e Doha (no Qatar), o grupo do Centro Nacional de Cultura chegou ao Hotel Forte da Aguada com razoável boa disposição, para quem, com estoicismo, desembarcou na cidade do Mandovi, quando já se anunciavam os primeiros raios da aurora do novo dia. Deu apenas para uma dormida rápida, já que ao meio-dia haveria que preparar com o arquiteto Eduardo Kol de Carvalho e os guias locais o programa da visita a uma cidade sempre tão acolhedora - delineado a regra e esquadro por Luís Filipe Thomaz, retido em Lisboa, mas bem presente no concretizar da expedição…
Apesar de estarmos no final na estação das monções, a verdade é que, depois de alguns meses relativamente secos, os aguaceiros intempestivos foram aparecendo. Começámos em Bardez, a norte de Nova Goa, a visitar o Forte, construído em inícios do século XVII para reforçar a defesa da barra do Mandovi contra o avanço dos holandeses. Depois, visitámos o forte dos Reis Magos, do tempo do Vice-Rei D. Afonso de Noronha (século XVI), recordando a presença dos missionários franciscanos que aqui instalaram um convento e um colégio. A chuva intermitente não impede que gozemos a paisagem luxuriante e os tons avermelhados do ferro da laterite das construções. E o dia primeiro finalizou na Igreja da Imaculada Conceição, na receção afetuosa dos habitantes do Bairro das Fontainhas, emocionados por ouvir português, e na visita à Fundação Oriente, perante as obras de António Xavier Trindade (1870-1935)…
Tendo amanhecido com sol, partimos no dia seguinte para a Senhora do Monte, onde recordámos a primeira tomada da cidade por Afonso de Albuquerque em 1510. Foi aqui que o Idalcão se entrincheirou para que os portugueses abandonassem a cidade. Albuquerque foi para Angediva e reconquistaria Goa no dia de Santa Catarina de Alexandria, em 25 de novembro de 1510, partindo de onde hoje é o Priorado de Nossa Senhora do Rosário. Progressivamente, Goa passará (depois de 1530) a ser o centro de influência portuguesa, ocupando o lugar simbólico até aí exercido por Cochim. Hoje, o lugar é centro de um festival de música de assinalável êxito. Foi a arquitetura maneirista da Sé Catedral que serviu de modelo a este templo.
Sente-se a influência de Inofre de Carvalho, e naturalmente de Júlio Simão, que concluiu a Sé. A igreja dos tietinos ou de São Caetano é inspirada na basílica de São Pedro de Roma, com a inconfundível cúpula, que emerge na massa florestal que é hoje Velha Goa. Obrigatoriamente, passamos pela Porta dos Vizo-Reis, homenagem de D. Francisco da Gama a seu antepassado Vasco da Gama, tendo também a imagem de Santa Catarina. Se começámos com sol o périplo, temos a primeira forte bátega do dia quando visitamos a catedral. Como sabemos, a torre direita foi destruída por um raio no século XVIII, sendo de assinalar no interior a célebre cruz milagrosa e a pia batismal onde oficiou São Francisco Xavier e onde o primeiro japonês se tornou cristão. Há grande afã no templo pois se prepara a exposição das relíquias do missionário jesuíta.
A igreja contígua de São Francisco de Assis está em remodelação e por momentos presenciamos autênticos exercícios de acrobacia na montagem dos andaimes. O portal manuelino é uma reminiscência da primeira construção, tendo sido os franciscanos a primeira ordem a estabelecer-se na cidade. Velha Goa exige-nos o circuito natural: Museu Histórico, galeria dos vice-reis e túmulo de São Francisco Xavier no Bom Jesus.
Alguém diz que o trânsito em Goa é um caos organizado. A Índia é assim. Sobretudo em dias do festival de Ganesh, o filho de Shiva, com a sua cabeça de elefante e inúmeras qualidades benfazejas. Em Ribandar somos obsequiados pelo almoço e pela companhia familiar no Solar dos Colaços, no dia seguinte visitamos a belíssima casa tradicional de D. Maria de Lourdes Figueiredo, e a estada em Goa não termina sem a magnífica receção em Margão em casa do Dr. Eurico Santana da Silva, na qual sentimos um intenso amor português.
Esse mesmo afeto sentimo-lo na homenagem, na presença do cônsul Dr. António Sabido da Costa, a Percival Noronha, agraciado com a comenda da Ordem do Mérito. É um grande estudioso da presença indo-portuguesa que, nos seus 92 anos, se mantém atento e activo, demonstrando a especificidade dessa identidade cultural aberta. A cultura indo-portuguesa é feita de um casamento riquíssimo das componentes indiana, portuguesa, cristã, hindu e muçulmana. Por isso, no restaurante Nostalgia, de Margarida Noronha e Távora, recordámos o melhor dessa identidade, ligando os monumentos ao património imaterial - a gastronomia, a música, a moda ou o intercâmbio linguístico. Fica-nos a lembrança desta cidade, que sempre nos apaixona.
“Quem viu Goa, não precisa ver Lisboa”, dizia-se em quinhentos. As descrições que temos de Velha Goa lembram uma cidade cheia de vida e de conhecimento. Quando partimos para a zona das Novas Conquistas, correspondente aos avanços do século XVIII, encontramos templos hindus e muçulmanos, situados em Pondá, como os de Shantadurga e Shri Manghesh ou a Mesquita de Safa, com os seus 40 nichos a rodear o tanque de purificação. Trata-se de marcas da coexistência de culturas diferentes, num tempo em que houve que dar espaço a outras religiões. O fenómeno religioso em Goa desenvolve-se pelo diálogo entre as diferenças.
Partimos para Diu, por via aérea, com escala em Bombaim. A chuva intensa acompanha-nos nas visitas que realizamos à cidade do Golfo de Cambaia. Foi com D. Nuno da Cunha que os portugueses se estabeleceram em Diu pela necessidade de reduzir a concorrência dos mercadores guzarates, para o controlo do comércio do algodão no Golfo Pérsico. Diu era uma cidade bem fortificada e dominada pelo temível Malik Ayaz. Houve duas tentativas para tomar Diu (em 1520 e 1529).
Só em 1535, em troca do apoio militar dado por Nuno da Cunha ao sultão de Guzarate, o Xá Bahadur, contra o imperador mogol Humayun, é que aquele permite que os portugueses construam um novo forte. Depois dos efeitos de dois cercos muito duros (1538 e 1546), será D. João de Castro a alargar a fortaleza, consolidando a influência portuguesa, que beneficiará das receitas tributárias do comércio do algodão. O sistema de baluarte é usado pela primeira vez no Oriente.
De manhã, quando saímos para o périplo da cidade, a chuva foi-se intensificando até chegar a dimensões diluvianas. Voltámos à muralha de Diu, passando pela porta do campo, cristianizada, com a imagem de Santo Inácio. Nota-se a influência arábica na organização urbana. As grandes referências são o Colégio do Espírito Santo, a Igreja jesuítica de São Paulo ou da Imaculada Conceição (1610) com um cruzeiro no largo fronteiro de profusa decoração de influência hindu.
A fachada de São Paulo é maneirista, com elementos indo-portugueses, pilastras e decoração em estuque com elementos orientais, com conchas sob as janelas. O altar-mor e os púlpitos são em pau-rosa em estilo barroco orientalista. Há apenas meia centena de famílias que falam português. Visitamos o colégio de ensino público, com alunos impecavelmente fardados. O pároco recebe-nos afavelmente, falando inglês. O Museu está na Igreja de São Tomé, muito descaracterizada, mas num lugar proeminente no cimo de uma escadaria. Aí encontramos uma lápide a assinalar o acordo de fronteira entre o Rei de Portugal e Sua Majestade Britânica…
Os duzentos quilómetros entre Diu e Bhavnagar foram épicos. O temporal da manhã deixou tudo alagado e os buracos da estrada exigiam que o autocarro andasse a 10 quilómetros à hora numa verdadeira gincana entre vacas, búfalos, cães e até burros que se iam atravessando placidamente na estrada estreita, sempre sujeita aos constantes sustos das ultrapassagens inusitadas. Resultado: sete horas de caminho. Pernoitamos em Bhavnagar e sentimo-nos num hotel clássico digno de Rudyard Kipling, num ambiente requintado de há cem anos, com quadros representando austeros marajás de cinco gerações. O mais jovem da estirpe vem cumprimentar-nos num tom simpático e distendido. Depois do dilúvio e de uma estrada muito dura foi um bom retemperar energias.
De Bhavnagar a Damão tivemos novo dia inteiro de viagem em autocarro com almoço em Vadodara. E eis-nos no mais importante exemplo português do urbanismo planificado do século XVI, com uma estrutura reticular, à imagem da cidade ideal do Renascimento. Entramos pela porta sul de Damão Grande, com um enquadramento paisagístico excepcional na embocadura do rio Damangaga. A praça foi construída em ligação com a defesa de Diu, de modo a garantir o comércio do Guzarate para o Médio Oriente e Índico. Foi a Armada comandada pelo Vice-Rei D. Constantino de Bragança que concretizou a conquista em 1559, revelando-se depois ser a fortaleza inexpugnável em sucessivos ataques dos mogóis de Deli e dos maratas.
Além do seu valor estratégico, Damão tornou-se no final do século XVIII um centro de construção naval, até 1871, sendo daqui a última Nau da Índia D. Fernando II e Glória. Deve-se a essa atividade a ligação aos territórios de Dadra e Nagar Haveli, onde há florestas de teca, matéria-prima indispensável à construção de navios. A cidade maneirista de João Baptista Cairate é um vasto quadrilátero regular, com cortinas de muralha unidas por uma sequência de dez baluartes poligonais, que no lado de terra são circundados por um fosso, onde entra água na maré-alta. As duas portas estão em alinhamento. Entrando por terra passamos, sucessivamente, a Casa da Câmara, a igreja do Rosário ou da Madre de Deus, com um notável altar-mor de talha dourada e galilé de tradição franciscana. Há quatro conventos: dominicanos (cujas ruínas visitamos), franciscanos, agostinhos e jesuítas.
O Palácio do Governador está a meio da rua principal e tem ainda sobre a porta as armas de Portugal. Aí nasceu António Sérgio. E junto da entrada do mar está a casa onde viveu Bocage. Terminamos a visita em amena conversa com Noémia de Costa, que prepara as festas religiosas na igreja de Nossa Senhora dos Remédios em Damão pequeno e sente-se feliz por poder usar connosco o seu fluente português…
Vindos de Damão, chegamos a Baçaim. Alguém disse maravilhado: “Esta é a nossa Pompeia.” A glória da cidade coincidiu com o período entre 1535 e 1739, a partir da capitania de Garcia de Sá. É uma estrutura fantasma, como se os habitantes tivessem abandonado a povoação deixando intacto o seu tecido urbano, invadido pela floresta. Foi uma cidade próspera e muito salubre que nasceu e morreu com os portugueses. Como em Damão, temos um planeamento reticular, apesar de irregular e mais amplo. A praça é também da autoria de João Baptista Cairate e ao contrário de Damão as cérceas das casas dentro das muralhas podiam ultrapassar a altura destas.
Há dez baluartes e são visíveis os restos de cinco conventos (além das de Damão, a ordem hospitaleira de São João de Deus). O único santo indiano nasceu em Baçaim – São Gonçalo Garcia, OFM, mártir do Japão. A cidade foi arrasada por um terramoto (1618) e totalmente reconstruída. A igreja mais antiga é a de Nossa Senhora da Vida, mas há ainda a do Sagrado Nome de Jesus, fundada por São Francisco Xavier.
Se Baçaim é um deslumbramento, Chaul reserva-nos também uma surpresa. O forte foi também deixado em 1739, quando os maratas ocuparam os territórios do norte e o sistema de defesa obedece às estruturas inexpugnáveis com modelo de Mazagão… Chegados a Bombaim, presenciamos milhões de pessoas nas ruas a lançar as imagens de Ganesh nas águas e terminamos a peregrinação no Bairro português de Mazagão, onde os descendentes de portugueses nos recebem principescamente, como se estivéssemos em Goa ou em Lisboa… Inesquecível.
Guilherme d’Oliveira Martins escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico
Na senda de Fernão Mendes-Percursos Portugueses no Mundo é o título do livro de Guilherme d’Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura, que vai ser brevemente lançado. Trata-se de um livro de viagens onde se relatam “diversas peregrinações” feitas no âmbito do ciclo Os Portugueses ao Encontro da Sua História, organizado anualmente por aquele organismo. A obra é editada pela Gradiva.